
Festa junina: o que queremos preservar?
Pratos com marcas locais e histórias longevas cedem espaço a produtos de maior apelo comercial, embalados pelas lógicas do consumo rápido
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Festa junina, para mim, foi, por muito tempo, uma festa que acontecia na escola. Estudei em um colégio de uma pequena cidade do interior de São Paulo chamada Descalvado e esse evento era quase uma disciplina. Tinha ensaio de quadrilha, lista de prendas, barracas organizadas por turma. As famílias participavam, o pátio enchia e o cheiro das muitas comidas tomava tudo. A festa era uma coreografia coletiva – e quase ninguém faltava.
Mas, é verdade, essa não é a única forma de viver as festividades de junho. Há festas religiosas, com procissão, fogueira e bênção dos santos. Outras se concentram em praças públicas ou clubes privados. Essas que ocupam ruas, como no Nordeste, onde a cidade vira festa, sempre me chamaram a atenção. Quadrilhas ensaiam o ano inteiro. E a depender de onde se está no Brasil, podemos encontrar variações das comidas. O milho é o elemento principal. Mas você sabe por quê?
As festas juninas brasileiras remontam tradições europeias e, antes de serem cristianizadas, eram celebrações pagãs relacionadas ao ciclo agrícola, realizadas durante o solstício de verão no Hemisfério Norte como forma de agradecer pela colheita e pedir fartura.
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Com o tempo, essas festividades foram incorporadas pela Igreja Católica, passando a homenagear santos como Santo Antônio, São João e São Pedro. Ao serem trazidas para o Brasil pelos portugueses, durante o período colonial, mantiveram elementos religiosos, mas também se transformaram ao se associar ao contexto local.
No Brasil, a festa se liga à colheita do milho e à cultura agropecuária, incorporando ingredientes e práticas alimentares indígenas, africanas e europeias e reforçando seu caráter simbólico e identitário.
O milho ocupa lugar central nas festas juninas por motivos que envolvem tanto o ciclo agrícola quanto a construção histórica e cultural da alimentação no Brasil. A coincidência entre o período da colheita do milho e as festividades dedicadas a Santo Antônio, São João e São Pedro favoreceu a associação direta desse cereal às celebrações.
Cultivado há pelo menos sete mil anos pelas populações indígenas das Américas, o milho carrega heranças de plantio e práticas alimentares que foram transmitidas por gerações e incorporadas ao repertório culinário brasileiro. A festa junina, marcada por símbolos de fartura, religiosidade e convívio comunitário, tornou-se o espaço privilegiado para expressar essa relação.
No entanto, a presença crescente de alimentos industrializados – como o cachorro-quente ocupando posição de destaque – aponta para um processo de homogeneização alimentar. Pratos com marcas locais e histórias longevas cedem espaço a produtos de maior apelo comercial, embalados pelas lógicas do consumo rápido.
Essa transformação revela uma tensão: preservar a memória alimentar ou ceder às demandas do mercado? É nesse embate que se colocam debates sobre identidade, pertencimento e cultura alimentar no Brasil de hoje. Afinal, tradição não é repetição. É transmissão com movimento – exige mudança para continuar viva.
A festa junina nunca foi a mesma. Nem será. A pergunta que fica é: o que queremos preservar? Ao escolher o que comer numa barraca de festa, escolhemos também as permanências que desejamos. E talvez, sem perceber, apontamos para o futuro daquilo que chamamos de tradição.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.