O Rei é o maior, e o Flamengo não vai me roubar mais essa
Passei os últimos dias a tentar interpretar o Rei, de quem sou um amigo orgulhoso. O Rei, que era, é e sempre será o meu ídolo maior
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A declaração de Reinaldo sobre o desejo de ter se transferido para o Flamengo no início da década de 1980 pegou a gente de jeito. Logo o Rei, inimigo da Ditadura que, via CBF, tanto fez para prejudicá-lo. Logo o Flamengo, time oficial da “Ditadura acabada”, termo usado pelo jornalista Elio Gaspari para qualificar o último período do regime militar e dar título ao derradeiro livro de sua famosa série.
Na finalíssima de 1980, enquanto José de Assis Aragão expulsava Reinaldo de graça, enquanto assinalava um impedimento bizarro de tão inexistente, e entregava ao Flamengo seu primeiro título nacional, o ditador João Batista Figueiredo, embora Grêmio e Fluminense, surfava a onda que pretendia fazer da inédita taça nacional o mesmo uso que a Ditadura fizera da Copa do Mundo de 70. “Entre um time e uma nação”, disse Figueiredo, “eu fico com a nação”. O presidente do Brasil, senhores. Um torcedor do Grêmio com pendores pelo rival Fluminense.
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O jogo estava 2 a 2 quando Reinaldo foi expulso, sob a ridícula justificativa de atrasar a batida de uma falta. Figueiredo assistia à partida nas tribunas do Maracanã. O Rei saiu de campo e desceu as escadas para o vestiário com o punho erguido e cerrado, a cabeça erguida. Nas barbas do general. Depois do empate com outro gol do Rei, o que nos dava o título, veio o impedimento inacreditável. Quando ainda caminhava para o vestiário, Reinaldo pôde ouvir o 3 a 2 para o time da casa.
Veio então a Libertadores de 1981. Atlético e Flamengo eram os dois melhores times do planeta. Todo mundo sabia que daquela disputa sairia o campeão não apenas da Libertadores. “O maior roubo da história do futebol”, segundo o respeitado jornal inglês The Guardian, garantiu ambos os títulos ao Flamengo, a Liberta e o Mundial. O Rei, de novo, fora protagonista: expulso primeiro, depois de uma falta absolutamente comum em Zico, no campo de defesa do Flamengo.
Os dois jogos – 80 e 81 – marcaram profundamente o atleticano. Diria até que, somados à final de 77, quando Reinaldo é retirado do jogo por uma manobra de bastidor e o Galo é vice invicto, ali se inaugura um outro jeito de torcer. Um modo atleticano, resiliente como nenhum outro, aguerrido, fanático, o injustiçado com o coquetel molotov nas mãos.
É ela, a injustiça, o nosso Xande de Pilares: “Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé, manda essa tristeza embora. Basta acreditar que um novo dia vai raiar, sua hora vai chegar”. E como chegou! Pra mim, em 2013 e, mais particularmente, naqueles 4 a 1 de 2014 sobre o Flamengaço Classificadaço. Ali, tava tudo posto.
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Eu tinha 9 anos em 81. Descobri a maldade dos homens e a inexistência de Deus vendo o Flamengo roubar. Reinaldo era o meu Jesus Cristo. Naquele tempo eu não podia ver uma camisa do Flamengo sem me sentir o Roberto Jefferson diante do José Dirceu: Vossa excelência, o Flamengo, provocava em mim os instintos mais primitivos.
Em 81, enquanto eu desejava caçar flamenguistas como o Brad Pitt em “Inglourious Basterds”, o meu Jesus Cristo queria descer da cruz, abraçar o Judas e jogar no Flamengo. Só ia me restar o satanismo, agora sei que foi Elias Kalil quem me salvou.
Passei os últimos dias a tentar interpretar o Rei, de quem sou um amigo orgulhoso. O Rei, que era, é e sempre será o meu ídolo maior. Meu Mick Jagger, meu Joe Strummer, meu Caetano Veloso, meu Gay Talese, meu Che Guevara.
Fiquei a me perguntar se Reinaldo compreende de fato a simbologia do seu punho cerrado, a resistência e a resiliência que inaugurou a partir de sua coragem, mas, sobretudo, das sacanagens que fizeram com ele e com o nosso Galo. Espero trocar essa ideia com meu ídolo muito em breve, na mesa do bar, onde tão bem as pessoas se entendiam e se desentendiam antes que as redes sociais viessem entornar o caldinho de feijão.
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Pois eu acho que o Rei tem a exata compreensão da sacanagem, sabe o que seu gesto e sua pessoa significaram e significam, e para além do futebol. Sabe que a pedra fundamental da atleticanidade é ele próprio e seus infortúnios, que de tal forma se misturam aos infortúnios do Galo, que acabam sendo os dois a mesma pessoa.
O lance é que o Rei tem o coração mole, não quer guerra com ninguém, é ser humano por demais humano, e isso faz com que você, por vezes, diga o que o outro deseja escutar. No podcast de Luiz Penido (o histórico locutor do “Flamengaço classificadaço”), caiu na arapuca e fez a alegria dos urubus.
Não digo que tenha dito alguma inverdade. Mas fico a pensar que me deixei preencher por um ódio que ele próprio, o Rei, tratou de eliminar, ser humano diferente que é. Eu queria atacar o Zico com um taco de beisebol numa rua escura. O Reinaldo sempre foi seu amigo. O Rei é diferente.
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Que atleticanos bolsominions estejam agora a atacá-lo por suas posições políticas, nada além do normal dessa gente estranha. Que atleticanos normais o reneguem, é parte do jogo e da maneira como cada um lidou com as feridas daqueles tempos. Não os condeno, compreendo.
Mas, da minha parte, escolho ficar com a pessoa amorosa do Rei. Fico com o Reinaldo chorando na arquibancada ao ver o Galo finalmente campeão brasileiro em 2021, numa das mais belas imagens que o futebol já produziu. Fico com o punho cerrado do Rei a calar o Maracanã e, depois, sob as barbas do general. O Rei é o maior, e o Flamengo não vai me roubar mais essa. Nem precisam. Já têm Zico, Wright e Aragão.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
