
O futebol não importa nesse estado baratinado de coisas
Na quinta, sendo um CAM X GOD, de Godoy Cruz, nem Deus saiu ileso. O atleticano aboletado no sofá, como a minha pessoa, fez pacto com o Diabo
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Ofereço a algum psicólogo ou psicóloga, na vascaína, a oportunidade de incrementar seus rendimentos: conceda ao atleticano, apenas a ele, um bom desconto na sessão. Mas prepare-se para o combo básico que inclui bipolaridade, traumas diversos, amor excessivo e ódios inconfessáveis. Com um detalhe perturbador: no fundo, no fundo, ninguém deseja ser curado.
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O novo paciente ao menos não carrega consigo nenhuma culpa. A culpa é do outro, e é mesmo, sempre. Como estudo de caso, você, psicólogo ou psicóloga, pode se ater ao jogo de quinta-feira passada. Nele estarão presentes todos os elementos que levam ao flagelo mental do atleticano. E o motivo pelo qual só um doido desejaria a erradicação de sua doença.
Se quiser compreender de onde advém sua bipolaridade, saiba que, sem dolo de sua parte, foi um jogo horroroso e sensacional. Memorável, ainda que para ser esquecido. O Galo mereceu ganhar, mesmo sem merecer. E ganhou, conferindo ao seu povo a falsa esperança que, em negação, é sempre esperança.
Para ganhar como ganhou, impôs ao seu torcedor o revés primeiro. É uma prática de tortura absolutamente corriqueira a que submetem o pobre diabo desde sempre. A derrota parcial invoca traumas passados, cujo remédio é o transe coletivo vindo dos atabaques no Terreirão do Galo, e daquele ponto de sua macumba: “O Galo é o time da virada, o Galo é o time do amor, lelelê, lelelê, lelelê, oooooô”.
A aflição se abate sobre o paciente. Ansiedade é mato, e não há entre esse pessoal um único exemplar que não seja um roedor de unhas em seu modelo mais grotesco. Nesse processo de degradação física e mental, em que concorre o trauma e a esperança, o emputecimento com a derrota e a certeza infundada na incontornável virada, é aí que mora o atleticano patológico, em infarto iminente.
Não há nada na experiência humana que possa explicitar com tamanha clareza a proximidade entre o amor e o ódio, senão esse sujeito parcialmente derrotado. O amor e o ódio convivem em união estável em seu coração carcomido de atleticano sofredor. Ele xinga. Suas veias do pescoço ficam estufadas. Ele deseja a morte do inimigo. Ele quer matar o juiz que, na quinta, apenas premiava o antijogo daqueles argentinos desgraçados. Toda sorte de palavrões é incapaz de abarcar tamanha fúria.
Na quinta, sendo um CAM X GOD, de Godoy Cruz, nem Deus saiu ileso. O atleticano aboletado no sofá, como a minha pessoa, fez pacto com o Diabo.
Ao mesmo tempo, minha cara psicóloga, meu caro psicólogo, psicólogues em geral, o atleticano estava pleno de amor. Se nos dessem 5 minutos de bola rolando naquela catimba em estado de arte, todos sabiam do óbvio roteiro. Apenas a versão remasterizada do ocorrido há poucos dias, contra o Flamengo, esse sim o cramulhão.
O ódio no ventríloquo direito, o amor no ventríloquo esquerdo, essa briga interna, yin e yang, o preto e o branco. Cantam louvores ao alvinegro, o hino mais bonito do mundo, a Marselhesa desse pessoal. Pensam nos antepassados, recordam a virada que compete a cada um – o relacionamento que deu errado, um filho distante, o boleto vencido.
E a página, depois, virada. O Baggio paraguaio chutando no travessão na madrugada de 25 de julho de 2013. Os 4 a 1 sobre o Flamengaço Classificadaço. Os 4 a 1 no Corinthians e tantas, tantas outras. Há uma verdade que você, psicólogue, tem que considerar: não há sobre a face da Terra um povo que mereça mais.
Então lá vem Cuello. A bola no Reinier, o estreante que por aqui já esteve em outras vidas. Um peito estufado, como o do mascote dos caras, antes um galo, hoje um chester. Aquele peito que agora ostentamos nas ruas, todos nós a Pamela Anderson. A bola de peito e de bandeja para o nosso maior herói. Tudo é mágica no mundo desse pessoal. E então a bola morrendo na rede, a virada, o Rivotril Litrão.
E o futebol é o que menos importa nesse estado baratinado de coisas.
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