
‘Absolutamente insalubre, emocionalmente corrosivo, gloriosamente inviável’
É possível que o jogo de quarta seja lembrado como o mais importante dos últimos anos. O roteiro épico, o adversário histórico, o goleiro que opera milagres
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O inglês Gideon Boulting foi o diretor da série de não-ficção O Infiltrado, apresentada e escrita por este colunista. Não tivera qualquer relação com o universo do futebol até a gravação do último episódio da primeira temporada, quando nos debruçamos sobre o tema das torcidas. Tínhamos em mente a seguinte premissa: para entender o mundo dos torcedores fanáticos, eu tentaria me livrar do meu próprio fanatismo.
Desembarcados para a filmagem em Belo Horizonte, mergulhamos, assim, na mais completa galoucura. Busquei compreender as raízes da minha atleticanidade patológica, e livrar-me dela numa sessão de hipnose. Com açúcar e com afeto, fui dar-me com o Fubá, da Máfia Azul, num encontro desastrado. Abracei cruzeirenses, de modo a tentar, no amor ao próximo, uma saída.
Não apenas fracassei no meu intento, como arrastei o Gideon para dentro da seita. Antes ateu, acabou convertido à Igreja Universal do Reino do Galo. Mandou emoldurar o nosso pavilhão e botou na sala de casa, no Rio de Janeiro. Nos anos seguintes, tornou-se o mais improvável personagem da Cariogalo, o consulado do Galo naquela Arquidiocese.
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Na quinta-feira, cerca de 10 anos depois dessa sua conversão, ele me mandou um áudio, o português com sotacão inglês, a voz embargada do atleticano emocionado, o fiel da seita a falar em línguas:
“Entre as melhores coisas que aconteceu na minha vida, foi você me apresentar o Clube Atlético Mineiro. Cada vitória como a de ontem, eu sinto uma esperança renovada, uma possibilidade utópica pra esse país. São experiências tão raras, libertações que valem dez anos de terapia. E de graça, só paga com ressaca e rotina desequilibrada. Hoje desmarquei tudo. Ontem foi uma alegria tão intensa, tão amorosa... É inexplicável. Agora as crianças da Cariogalo são adolescentes, e as pessoas são tão lindas, que povo bonito é a nação atleticana. Nunca vou conseguir colocar em palavras adequadas a gratidão que sinto por você ter me levado a isso, e deixar minha alma ser abduzida por esse disco voador.”
Na quinta-feira em que fingimos trabalhar enquanto nossos dedinhos em delírio sorviam toda a infinidade de Reels, tuítes, memes e tudo o mais a rir do Real Madrid de Realengo, encontro o alpinista e comunicador Gustavo Ziller, amigo querido, a explicar o inexplicável:
“Torcer pro Galo é um ato de insanidade consentida. É como amar um trem desgovernado descendo a ladeira com a buzina travada. Absolutamente insalubre. O Galo não existe, ele se alastra. É uma entidade instável, emocionalmente corrosiva e gloriosamente inviável. Vou te contar: só ama quem já desistiu de entender.”
É possível que o jogo de quarta seja lembrado como o mais importante dos últimos anos. O roteiro épico, o adversário histórico, o goleiro que opera milagres. A desforra, a vingança, sempre a nos remeter a José Roberto Wright e José de Assis Aragão. Sempre te odiei, sempre vou te odiar! A arena virada no Jiraya, um estádio outra vez. O pênalti pra fora do flamenguista mascarado, o gol do Everson e tchau.
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No entanto, não é por esse maravilhoso conjunto da obra que o jogo de quarta será o que será. Mas porque ele devolve pra gente aquilo sem o qual somos apenas mais um time de futebol – ele devolve a nossa alma. Ela, a alma, pode não ser um ativo para a Sociedade Anônima do Futebol. Mas, desde a quarta, sabemos que isso não importa. Porque é no conluio dos jogadores lá embaixo com os milhões de anônimos lá em cima que ela renasce. E nunca, nunca vai morrer.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.