Maltrataram tanto o "Buraco do Neymar" que agora ninguém pode entrar
Uma foto transformou uma piscina natural intocada em ponto turístico superlotado; interditada pelo ICMBio, polêmica reacende o debate sobre turismo predatório
Jornalista, com MBA em Mídias Digitais e subeditor da Editoria de Turismo. Atua há 28 anos no jornal Estado de Minas onde passou por várias editorias: fotografia, EM Digital e Redes Sociais
Em 2018, Neymar e Bruna Marquezine escolheram Noronha para passar as férias e conheceram o 'Buraco do Galego' crédito: Reprodução Redes Sociais
No coração de Fernando de Noronha, onde o Atlântico esculpe piscinas naturais como joias azuis cravadas em rochas vulcânicas, um buraco simples ganhou nome de celebridade e, com ele, o peso de uma nação inteira de olhares vorazes. O "Buraco do Galego" – ou "Buraco do Neymar", como o apelido viralizou – era, até pouco tempo, um recanto escondido na Praia dos Cachorros, acessível por uma trilha íngreme e um mergulho arriscado.
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Mas uma foto postada pelo craque em 2018, com a então namorada Bruna Marquezine posando nas águas cristalinas, mudou tudo. O que era segredo dos mergulhadores virou meta de milhares de turistas, e na segunda-feira (17/11) o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) baixou o martelo: interdição por tempo indeterminado, junto com a vizinha Lasca da Velha. Motivo? Degradação ambiental irreversível, ameaça à fauna marinha e um colapso ecológico acelerado pelo turismo descontrolado.
A história começa inocente, como tantas polêmicas modernas: uma imagem no Instagram. Neymar, então no auge da glória pelo PSG, compartilhou o clique romântico, e pronto – o algoritmo do mundo cuidou do resto. De um paraíso preservado, o local se transformou em um point obrigatório para selfies. Filas de até uma hora sob o sol escaldante, drones zumbindo sobre tartarugas marinhas, mergulhadores amadores chutando corais frágeis.
"Era um lugar mágico, agora é um caos de pegadas e lixo fotogênico", desabafa um guia local à reportagem do UOL, que acompanhou a superlotação nos últimos anos. O arquipélago, tombado pela Unesco como Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade desde 2001, recebe anualmente cerca de 100 mil visitantes – limite imposto para proteger sua biodiversidade única, lar de mais de 20 mil focas e aves endêmicas. Mas o 'Buraco do Neymar' quebrou as regras: o acesso desordenado erodiu trilhas, poluiu recifes com protetores solares químicos e estressou a vida subaquática, com relatos de golfinhos fugindo de multidões barulhentas.
A interdição, anunciada em nota oficial pelo ICMBio, não é punição isolada, mas um grito de alerta em uma ilha que já sangra sob o peso do turismo. "A pressão antrópica comprometeu a integridade ecológica das piscinas naturais, essenciais para a reprodução de espécies marinhas", explica o comunicado, citando estudos que apontam para a morte de corais em 30% da área afetada. Especialistas como o oceanógrafo Fábio Homs, da Universidade Federal de Pernambuco, vão além: "É o clássico dilema do overturismo.
Noronha vive de visitantes, mas sem regulação, vira vítima do próprio sucesso. O 'efeito Neymar' acelera o que o aquecimento global já ameaça". Críticos, porém, miram no craque: posts nas redes sociais acusam o jogador de "invadir e descartar", comparando-o a outros influenciadores que renomeiam paraísos para lucrar likes. Neymar, que não se pronunciou até o momento, já foi alvo de debates semelhantes – de festas em cruzeiros a projetos de luxo no Nordeste que flertam com a privatização de praias.
Um dos destinos paradisíacos do Brasil, a Ilha de Fernando de Noronha já foi conhecida como a “Ilha Maldita”. Entenda essa história curiosa. Imagem de DEZALB por Pixabay
Localizado a uma distância de 545 quilômetros de Recife, a ilha de Fernando de Noronha serviu como um lugar onde diferentes prisões foram construídas ao longo de sua história. Imagem de Eduardo Domingos por Pixabay
A intenção era manter pessoas isoladas, como exilados políticos, ciganos, combatentes da Revolução Farroupilha em 1844, prisioneiros da Revolução Praieira em 1849 e até mesmo capoeiristas, considerados arruaceiros no fim do século 19. Imagem de carlosemluz por Pixabay
A ilha desempenhava um papel importante como uma espécie de prisão em um local estratégico entre a Europa e o "Novo Mundo". Imagem de Eduardo Domingos por Pixabay
Nos século 19 e 20, Fernando de Noronha, conhecida também como a "ilha Fora do Mundo", abrigava prisões com celas estreitas que sequer protegiam contra o clima extremo do lugar. Divulgação Governo de Pernanbuco
Essas prisões foram construídas pelos próprios presos. Divulgação Governo de Pernanbuco
Homens eram acorrentados por bolas de ferro e sofriam tortura psicológica na Ilha Rata, que funcionava como uma espécie de solitária ao ar livre. Divulgação Governo de Pernanbuco
Os prisioneiros, sem perceber, não apenas cumpriam suas penas, mas também contribuíam para a história de uma ilha que foi encontrada em 1503 e depois deixada de lado por seus primeiros descobridores. Divulgação Governo de Pernanbuco
O isolamento era tão intenso que os moradores locais não tinham conhecimento da independência do Brasil em 1822 e continuaram a erguer a bandeira portuguesa na Fortaleza dos Remédios por mais dois anos. Manuel Costa Unsplash
Para consolidar o domínio sobre essas terras, a ilha foi convertida em uma prisão para pessoas condenadas a longas penas e passou a ser chamada de Colônia Correcional de Fernando de Noronha. Divulgação Governo de Pernanbuco
As construções que existem hoje na Vila dos Remédios foram construídas por prisioneiros que também trabalhavam na agricultura, marcenaria, ferraria e sapataria. wikimedia commons Hudson Rodrigues Lima
Outro exemplo de construção da época é o sistema de defesa que inclui dez fortificações, sendo chamado de "o maior sistema de fortificação do século 18 no Brasil". Flickr Jorge from Brazil
A Fortaleza de Nossa Senhora dos Remédios tem ruínas que ainda estão visíveis no topo de uma colina, perto do centro histórico da Vila dos Remédios. flickr Mtur destinos
Para conhecer o local, há um passeio que se inicia no casarão colonial do Palácio de São Miguel que leva os visitantes a explorar outras construções históricas, incluindo a Aldeia dos Sentenciados. flickr mtur destinos
Neste local, os presos com mau comportamento eram obrigados a passar a noite em camas de madeira ou leitos de pedra. Divulgação Governo de Pernanbuco
As atuais ruínas do forte Forte de Nossa Senhora dos Remédios já foram usadas como prisão e, durante a Segunda Guerra Mundial, serviram de abrigo para soldados americanos. wikimedia commons Carlos Scorzato
A prisão comum operou até 1938, quando a ilha foi transferida para o controle da União e se tornou o local do Presídio Político Federal. wikimedia commons Enrique Piñeiro
Em 1938, o presidente Getúlio Vargas requisitou o arquipélago, que passou a abrigar cerca de 600 homens considerados subversivos, incluindo o guerrilheiro e poeta Carlos Marighella. Youtube/ CAR.BLOG.BR
No entanto, em 1942, esses presos foram transferidos para a penitenciária de Ilha Grande, localizada em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. wikimedia commons Yasmin Rollemberg
Após o Golpe Militar de 1964, que destituiu o presidente eleito João Goulart, o arquipélago passou a abrigar o Presídio Político Especial a partir de abril. Flickr Amom Mandel Lins
Durante o breve período em que essa nova forma de prisão foi utilizada em Noronha, de 1964 a 1967, 34 prisioneiros foram enviados para lá, incluindo o então governador de Pernambuco, Miguel Arrais, que ficou detido na ilha por 11 meses antes de ser exilado na Argélia. Domínio público / Acervo Arquivo Nacional
A ilha voltou a fazer parte de Pernambuco após a promulgação da Constituição de 1988, que encerrou o status de Território Federal de Fernando de Noronha. Acervo ICMBio
Por fim, Miguel Arrais se tornou novamente governador de Pernambuco e tomou posse no mesmo lugar onde anteriormente havia sido preso na ilha. Divulgação Governo de Pernanbuco
Mas o 'Buraco do Neymar' não é só sobre um atleta; é um espelho da contradição brasileira. Fernando de Noronha, com suas 21 ilhas intocadas, gera R$ 100 milhões anuais em ecoturismo, mas cobra o preço em multas ambientais e comunidades locais espremidas. A taxa de preservação, de R$ 97 por turista (brasileiro), mal cobre os danos. Ativistas como o coletivo Noronha Viva pedem mais: "Queremos visitantes, não invasores. Hora de multar quem transforma patrimônio em playground particular". Enquanto isso, a Praia do Sueste, vizinha e já interditada para banhos por tubarões – ironia da natureza reafirmando seu território –, serve de lembrete. O arquipélago resiste, mas por quanto tempo?
A interdição pode durar meses, ou anos, dependendo de relatórios de recuperação. Para os fãs de Neymar, é uma ferida aberta; para o meio ambiente, uma trégua necessária. Em Noronha, o mar sussurra lições antigas: o que se quebra com um clique, leva gerações para curar. E enquanto o sol se põe sobre águas agora vazias, o buraco – de pedra e de memória – permanece, esperando quem o respeite de verdade.