REPARAÇÃO HISTÓRICA

No chão sagrado em Lagoa Santa, ancestralidade abraça o Congado e a Umbanda

Cidade mineira fará o 1º encontro cultural , no dia 31 de maio, em homenagem às tradições afro-brasileira com as bênçãos do Pretos-Velhos 

Publicidade
Carregando...

“Adorei as almas”. Invocando os Pretos-Velhos – entidades de pura bondade, humildade, caridade e amor –, os espíritos de ex-negros escravizados quando chegam, com seus cachimbos, cajados e corpo encurvado, promovem limpeza e cura, que muitos chamam de milagres.

São sábios, guardiões da ancestralidade, que repassam seus ensinamentos do mundo imaterial, sempre com uma mensagem de conforto para almas confusas. A presença deles é vista como divina. Com seu linguajar simples e voz mansa,os Pretos-Velhos levam alívio aos corações apertados, seja por um problema de saúde, familiar, financeiro ou emocional. Ouvi-los, liberta-se de dores, de sofrimentos vividos e renasce para a vida.



Sobre o solo sagrado, os pés tocarão o chão e folhas, por onde benzedeiras e benzedeiros limparam os caminhos. Nesta comunhão de tradição e fé, danças ancestrais dos congadeiros serão regidas ao som dos atabaques e tambores. Os cânticos, de lamúria, em bantu ( língua original africana), será ouvida a quilômetros. E nessa hora, a espiritualidade se manifestará com a chegada das entidades protetoras das matas, das águas, dos ventos, do ar e do fogo. A falange do bem sentirá que neste local, a paz, a bondade, a compaixão, servirá, por algumas horas, como morada. Será um local que acolhe todos os que lá visitarem. 

Representação dos Pretos-Velhos, entidades espirituais que pregam a humildade, o amor e a caridade
Representação dos Pretos-Velhos, entidades espirituais que pregam a humildade, o amor e a caridade Templo Caboclo Pedra Branca/Divulgação


O Templo Umbandista Cabana Caboclo Pedra Branca, de Lagoa Santa, vai promover um grande evento cultural em homenagem à ancestralidade afro-brasileira, no dia 31 de maio, no Parque de Exposições, no Bairro do Campinho. A celebração visa valorizar a cultura africana e indígena, promover a igualdade e combater preconceitos raciais e religiosos.



Reparação

 Pai Erlon Câmara, do Templo Caboclo Pedra Branca, diz que o evento será um reflexão e reparação ao povo negro
Pai Erlon Câmara, do Templo Caboclo Pedra Branca, diz que o evento será um reflexão e reparação ao povo negro Templo Caboclo Pedra Branca/Divulgação

O evento cultural, que vai reverenciar a ancestralidade e a união, contará com integrantes de cerca de 20 templos de Umbanda, Quimbanda e Candomblé que juntos com grupos de Congados e Reinados de municípios vizinhos, localizados no Vetor Norte, como Vespasiano, Pedro Leopoldo, Sete Lagoas, Santa Luzia, Jaboticatubas e Almeida, abrirão o caminho para debates, cantigas, danças, boa comida e benzeção de caboclos e Pretos-Velhos.  

De acordo com o organizador e idealizador do evento, Pai Erlon Campelo Câmara, do Templo Cabana Caboclo Pedra Branca, o encontro vai promover uma reparação histórica através do encontro de Congados e Reinados em homenagem aos Pretos-Velhos: “antes de tudo ele é um resgate, é um desejo de reparar, de valorizar uma cultura que foi por anos, por centenas de anos, ou apagada, ou negligenciada, ou mesmo com o desejo que ela deixasse de existir, como se nós não tivéssemos aqui uma enorme contribuição de todo o povo negro, de todo o povo africano” 

“Não será um evento religioso, é muito mais do que isso. Apesar que os Congados e Reinados estão muito ligados à igreja católica e os pretos velhos fazerem parte das religiões de matriz africana, como a Umbanda, esse evento será de união, de integração. Eu acredito que o propósito, além de todo esse resgate, é confirmar que Lagoa Santa é uma cidade que valoriza, que respeita a história e a ancestralidade dos seus povos”, observa Pai Erlon.



O pai de santo lembra que a proposta do evento é a valorização do povo negro, com suas histórias, suas tradições, seus ritos, os seus cultos, os seus símbolos. “Nós queremos resgatar e recortar a história desse povo. Queremos trazer para gerações atuais e futuras que a ancestralidade não pode ser apagada. A história deles não pode mais ser contada sobre a perspectiva do homem branco. Ela precisa ser contada pelo seu povo. E todos os símbolos eles precisam ser trazidos à tona e serem reverenciados”,

 
 
 
Ver essa foto no Instagram
 
 
 

Uma publicação compartilhada por @tamboresancestrais_




Pai Erlon Câmara vai mais além: “quando a gente fala de resgate às origens de valorização do povo negro, dessas pessoas que foram escravizadas, a gente precisa olhar para essa história com outros olhos, a gente precisa compreender que esse povo, eles não nasceram no Brasil. Aqui, eles perderam seus nomes de origem e viraram Maria, José, João e Joaquins. Além disso nós os batizamos, demos novos ,nomes católicos, nomes bíblicos”

Sobre o Templo Caboclo Pedra Branca

O templo, que semanalmente acolhe mais de 300 pessoas em suas práticas religiosas, é reconhecido por sua atuação em projetos sociais, como doação de mantimentos, horta comunitária e distribuição de itens de higiene, beneficiando dezenas de famílias. Além disso, promove estudos e ações para preservar a cultura afro-brasileira e indígena, pilares da identidade nacional.

Celebração da ancestralidade

O evento deste ano, que terá apoio da Prefeitura Muncipal de Lagoa Santa e OAB, quer ampliar a tradicional Festa dos Pretos-Velhos, realizada desde 2019. O encontro vai celebrar os Congados, Reinados, capoeira, boi-da-manta e outras manifestações culturais. A programação vai incluir: mesas de debate sobre a proteção da cultura ancestral e o combate ao racismo e à intolerância religiosa;  apresentações culturais de grupos de Congado, Reinado e capoeira da região metropolitana e Vetor Norte;  homenagem aos Pretos-Velhos, figuras emblemáticas da espiritualidade afro-brasileira e shows artísticos e manifestações culturais diversas.

Adélia do Carmo, vice-prefeita de Lagoa Santa, se emociona ao falar das tradições como o Congado, Reinado e Umbanda. Mulher preta, vive há 55 anos na comunidade da Lapinha e sabe a importância de preservar a ancestralidade na cidade: “fico muito, muito, muito feliz de saber que a maioria dos congadeiros, a maioria do povo negro, pode cantar, se enfeitar de várias cores, de fitas, de laços, o Congo é de branco, o Moçambique é mais colorido, com chocalhos, tambores. E o canto, de forma forte, faz um louvor à Nossa Senhora. É uma energia que só quem tem fé consegue perceber”

E continua: “ Então, eu fico muito animada de ver que esse evento vai dar oportunidade de pessoas, que ainda não tiveram acesso à essa cultura, de aprender com isso e saber respeitar. E sim, por nossos costumes, nós somos resistência. O povo preto, a nossa vida, é uma vida de resistência.Eu acredito, que a cada dia, a gente vai quebrando mais esse preconceito. A gente vai quebrando a mordaça que tentaram colocar na gente o tempo inteiro. Agora, cabe a nós, que estamos aqui, manter essas tradições. Ser resistência diante de qualquer comunidade, em qualquer cidade, de mostrar a tradição do povo preto e que nós, as pessoas da nossa raça, tenham orgulho disso. Por causa de tanto preconceito, por causa dos antepassados de tantos nossos irmãos, que já foram escravizados, tem pessoas negras que se declaram pardas, se declaram brancas, porque têm medo de sofrer ainda mais retaliação e preconceito.Eu fico muito feliz de ver acontecer uma festa desse porte, pela primeira vez em uma vida inteira”, emociona.



Pretos-Velhos

A celebração coincide com o Dia dos Pretos-Velhos (13 de maio), data que também marca a assinatura da Lei Áurea – que aboliu a escravatura no Brasil – e reforça a luta pela valorização das tradições afro-brasileiras. Ao final, será elaborado um manifesto cultural em defesa das etnias e costumes ancestrais, com a participação de representantes de 120 centros de Umbanda e Candomblé, grupos de Congado e Reinado.



O que é a Umbanda?

Umbanda é uma religião brasileira que surgiu no início do século 20, combinando elementos do espiritismo kardecista, do candomblé, do catolicismo e de tradições indígenas. Fundada por Zélio Fernandino de Moraes em 1908, a Umbanda enfatiza a caridade, a espiritualidade e a conexão com entidades espirituais, como guias, orixás e espíritos de luz.

Seus principais pilares incluem:

Crenças: Monoteísmo (culto a um Deus supremo, Olorum), com veneração a orixás (divindades ligadas à natureza) e entidades como Caboclos, Pretos-Velhos e Erês (crianças).

Práticas: Sessões espirituais (giras) com médiuns que incorporam entidades para oferecer orientação, cura e conselhos. Uso de rituais com velas, incensos, pontos cantados e oferendas.

Valores: Caridade, fraternidade, respeito à diversidade e evolução espiritual através de boas ações.

A Umbanda é estruturada em terreiros, liderados por pais ou mães de santo, e não possui um livro sagrado único, mas valoriza a oralidade e a prática. É uma religião inclusiva, que acolhe pessoas de diferentes origens, e tem forte influência na cultura brasileira, especialmente na música e nas festas populares.

Conheça oito patrimônios imateriais da cultura negra em BH




Lei municipal

O 1º Encontro de Reinados,Congados em homenagem aos Pretos Velhos só foi possível graças ao Projeto de Lei 6428/2025, onde foi instituído no Calendário Oficial do Município de Lagoa Santa sempre no dia 31 de Maio 



3 perguntas para Pai Erlon Câmara 




1) Este será o primeiro encontro dos tambores com o congado? Seria uma volta às origens, quando os negros escravizados foram obrigados a acreditar na crença cristã, em detrimento da religião praticada na África, com os cultos dos orixás do candomblé?

Sim, esse é o primeiro encontro e ele já nasce grandioso, ele já nasce repleto de pessoas que toparam estar conosco nesse momento, tanto os Congados, Reinados, como terreiros, né, casas de Umbanda, de Candomblé, de Omolocô. Eles toparam abraçar essa ideia, de abraçar essa causa, porque a causa é muito boa, a causa é muito justa, a causa é nobre, ela não é, ela não tem um interesse a não ser interesse individual, a não ser um interesse coletivo. E quando a gente fala de resgate às origens de valorização do povo negro, das pessoas que foram escravizadas, a gente precisa olhar para essa história com outros olhos, a gente precisa compreender que esse povo, eles não nasceram no Brasil. Eles chegaram no Brasil e viraram Marias, Anas, Josés, Joãos e Joaquins. Essas pessoas, quando chegaram aqui, tinham um nome, tinham histórias, tinham tradição,tinham uma vida inteira e uma ancestralidade inteira a ser contada. Então nós apagamos essa história quando eles chegaram aqui no Brasil. Nós os batizamos, demos novos nomes, nomes católicos, nomes bíblicos. Até isso a gente não pode apagar, a gente tem que resgatar todas essas comidas que hoje estão servidas em restaurantes finos, em todos os lugares é como se elas existissem aqui, como se elas fossem pratos ocidentais, e assim como várias outras outras formas de cultura e de referência cultura religiosa que a gente tem que resgatar.



2) Qual o convite você faria à comunidade no geral, mesmo àqueles que nunca frequentaram um terreiro de Umbanda? O que os visitantes vão ver, vivenciar no local?

Se a gente pensar que esse povo, essas pessoas que vieram da África, são pessoas que foram escravizadas. A gente tem que pensar que houve uma grande diáspora, uma retirada brusca. Essas pessoas foram retiradas de suas tribos, excluídas de uma vida, de uma condição, de uma possibilidade, mesmo que simples, mesmo que humilde ou mesmo miserável, mas elas foram retiradas, tudo foi tirado do povo. Para além da sua liberdade, para além do seu lugar de existir, elas perderam tudo, a começar pelo nome. Elas perderam a sua identidade. Perderam o seu idioma, elas perderam a sua cultura, o seu alimento, elas perderam o modus operandi, a sua forma de viver, de ver a vida. Elas foram condicionadas a novos lugares, a situações sub-humanas, desumanas. A importância desse evento é trazer uma reflexão, é compreender que a gente não pode olhar pro povo negro e imaginar que esse povo, como já tentaram por diversas vezes, seja inferiorizado. Olhar pro povo negro e falar que eles estão à margem, que eles vivem nas periferias, que são as pessoas mais dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS), que são os que mais estão presentes nas escolas públicas, que fazem parte do grupo com os maiores índices de analfabetismo, enfim, todas as mazelas. A gente não pode enxergar isso sem compreender toda essa história, então, o evento quer discutir essa ancestralidade, que merece nossa atenção.




3) A expectativa é ter a presença de quantos Pretos-Velhos incorporados no dia 31/5? E qual a função espiritual deles no dia?

Nós teremos aproximadamente 20 terreiros de Umbanda e Candomblé presentes. A gente deve ter aí algumas dezenas de entidades trazendo seus Pretos-Velhos em terra para o trabalho. Quem for, val viver algo extraordinário: o visitante tomará um passe. Quem nunca recebeu um abraço de um Preto-Velho, eu aconselho e garanto, que depois do abraço de uma mãe, esse  é o melhor gesto de afeto que existe. É um abraço que traz um carinho, que traz uma força, que por si  só, já é um convite para o evento, no dia 31 de maio. Teremos  a presença de vários médiuns trabalhando. A expectativa é de mais ou menos 2 horas dessa parte espiritual. E qual é a função dos Pretos-velhos?  Eles são um trabalhador espiritual. Eles trazem como mensagem, a humildade e a resignação. A própria figura dessas entidades de luz se faz presente como um  velho,  encurvado, com seu cachimbo e cajado, com sua fala mansa e carinhosa,  cheia de afeto, repleto de amor. Uma imagem que contradiz com tudo o que o povo africano sofreu no Brasil – onde eles foram retirados, à força, de suas histórias, de suas vidas, de suas famílias. Eles foram separados de seus países e trazidos forçados a vir para serem escravizados. Tudo isso nos faz repensar sobre a nossa vida, sobre a nossa caminhada, de como que devemos encarar a própria existência.

Serviço

Data: 31 de maio de 2025.

Horário: A partir das 14h

Local: Parque de Exposições de Lagoa Santa - Av. São Sebastião, 795 - Campinho de Baixo 

Instagram: @cabanacaboclopedrabranca e @tamboresancestrais_

Tópicos relacionados:

congado lagoa-santa minas-gerais umbanda

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay