CINEMA

Livro com roteiro de 'O agente secreto' tem textos e fotos inéditas

Kleber Mendonça Filho conta como o 'período bem sombrio da história contemporânea do Brasil' influenciou a escrita do longa ambientado no Recife de 1977

Publicidade
Carregando...

Há filmes que não saem do papel. “O agente secreto” é um deles. Não o duplamente premiado no Festival de Cannes, representante brasileiro na disputa por uma indicação ao Oscar, já visto por mais de 500 mil espectadores em todo o país. Um anterior, homônimo, que não foi filmado. Um texto interrompido, na definição do diretor. “‘O agente secreto’ foi o título de um filme que eu tentei escrever anos atrás, mas não consegui. Foi a primeira vez que isso aconteceu, uma boa ideia que não virou roteiro ou conto. Eu espero voltar a essa ideia um dia, com outro nome”, afirma o cineasta Kleber Mendonça Filho, no prefácio do livro com o roteiro do segundo “O agente secreto” que escreveu para ter Wagner Moura como protagonista. “Terminei trabalhando num novo roteiro, ambientado no Recife de 1977, e aquele título original foi reaproveitado”, revela. 

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O ESTADO DE MINAS NO Google Discover Icon Google Discover SIGA O EM NO Google Discover Icon Google Discover

Leia: ‘O agente secreto’ conquista prêmios e se prepara para o Globo de Ouro

O Recife de 1977, que tem encantado nas telas pela impecável reconstituição de época, já ressurge nas palavras e desenhos incluídos nas páginas do lançamento da Editora Amarcord, do grupo editorial Record. Além do roteiro, o livro inclui imagens do storyboard e dos bastidores e um posfácio de Wagner Moura. O projeto gráfico da edição caprichada é do designer Gustavo Piqueira, da Casa Rex.

Em nota incluída na edição, a editora Lívia Vianna considera o texto de “O agente secreto” “um romance mesmo, daqueles de reviravoltas mil”. O que eu sinto é que eu tinha lido um romance que virou filme, não que eu li o roteiro antecipado”, afirma a responsável pela edição da Amarcord. “Não há cartilha, não há manual, só a sensibilidade, um conjunto muito particular de referências e o conhecimento enciclopédico que ele (Kleber) tem da história do cinema”, observa Wagner Moura, no posfácio.

Leia: 'O agente secreto' é mais cético do que 'Ainda estou aqui', diz diretor

A experiência de levar para o livro as palavras que guiaram as imagens já havia sido realizada pelo cineasta pernambucano em “Três roteiros” (Companhia das Letras, 2020), reunião dos scripts de “O som ao redor” (2012), “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2019). “Eu gosto muito da ideia de apresentar o roteiro da maneira como ele foi escrito antes de o filme ser filmado”, afirma Kleber. “Não acho tão interessante refazer o roteiro inteiro com base no filme que ficou pronto.”

O desenvolvimento do roteiro de “O agente secreto” ocorreu durante a pandemia, nos anos Bolsonaro, “período bem sombrio da história contemporânea do Brasil”, afirma o diretor, em entrevista ao Estado de Minas. “Foi um laboratório fascinante de baixo astral poder escrever ‘O agente secreto’ numa época em que tantos criminosos se orgulham de serem criminosos”, ressaltou, no prefácio. Ele reconhece que a escrita também foi uma forma de reação ao que via e sentia, inclusive os ataques pessoais recebidos pelo posicionamento político incisivo nos lançamentos de “Aquarius” e “Bacurau” em Cannes e em outros festivais. “Era uma primavera reacionária com tons fascistas acontecendo na frente de todos, e interagir com gente estranha deixa o sujeito mais sóbrio”, garante. Pelo fato de contrariar publicamente as versões oficiais, muitas vezes a “mídia-veneno” o atribuiu a pecha de “polêmico”. “Um dia, quero ser xingado de sensato”, ironiza. 

“Foi escrevendo o roteiro que eu percebi como o conservadorismo do Brasil no século 21 era uma versão nostalgia-cor-de-rosa da ditadura civil-militar do século 20”, analisa, no prefácio, o diretor nascido no Recife em 1968. “A verdade é que o distanciamento do presente que eu esperava sentir no ar histórico de ‘O agente secreto’ nunca existiu. Meus poucos leitores iniciais não viram disfarce algum no roteiro. Wagner também não. De fato, a lógica histórica do Brasil permanece intacta em vários níveis da nossa vida nacional, e não são 50 anos que vão nos distanciar de um país tão íntimo de nós mesmos”, acredita. 

De Nova York, onde participou de eventos promovidos pela distribuidora Neon para divulgação de “O agente secreto”, Kleber Mendonça Filho conversou com o Pensar, do Estado de Minas, sobre o livro que chega às livrarias em dezembro. 

Quais roteiros você gostou de ler depois de assistir aos filmes? Que livros com reprodução de roteiros estão na sua biblioteca?

Eu preciso dizer que a a compra de roteiros para ter na minha biblioteca foi uma das maiores escolas do meu ofício de fazer cinema. Eu pulei toda a parte de oficina de roteiro; master class de roteiristas estabelecidos... Não tive acesso a isso. Eu realmente passei a comprar roteiros como uma maneira de observar como os filmes eram escritos. O primeiro roteiro que eu comprei foi em julho de 1991, na minha primeira visita aos Estados Unidos: “Faça a coisa certa”, do Spike Lee. Foi até uma sorte esse ter sido o primeiro roteiro, porque não era só de um filme que eu até hoje tenho na mais alta conta, mas muito importante para mim estimular e querer me inspirar no sentido de desenvolver um filme, digamos, da mesma escala, semelhantes de alguma forma. Esse filme, “O som ao redor”, levou 20 anos para chegar. No livro que comprei, Spike Lee falava muito sobre o processo que teve para escrever o roteiro; mas também havia fotos, ilustrações. Dava para ver o estilo muito livre de criação da história. Transformei aquele livro numa espécie de manual. Mais à frente, comprei um livro com o roteiro de “Os bons companheiros” (Martin Scorsese) e, depois, o de “Cães de aluguel” (Quentin Tarantino). Este eu lembro que não conseguia parar de ler. 

Sua escrita inclui desenhos, músicas, indicações detalhadas até das marcas de cigarros dos personagens. Há espaço para improviso no set? 

Há muito espaço para improviso na filmagem. De forma alguma dou ordens ou estabeleço que não será possível fazer nenhuma alteração no set. Isso não existe para mim. Dito isso, eu passo tanto tempo trabalhando no roteiro que, de fato, muita coisa chega pronta, pensada durante muito tempo para ser filmada. E alguns atores já me falaram – e me convenceram – que, por mais que seja tudo muito solto e que algumas improvisações sejam possíveis, eles se sentem muito mais seguros voltando para o roteiro.

Você afirma, no prefácio, que o texto do roteiro “foi se escrevendo” e que imaginou até que o desfecho da história pudesse levá-lo de volta ao sertão filmado em “Bacurau”.  O que o surpreendeu durante a criação? O final como está no filme, e que tem provocado reações divisivas, apareceu apenas no fim da escrita?

Durante o processo de escrita eu tentei escrever um final mais convencional. Não consegui nem passar de metade da primeira página. Não tinha o menor interesse em escrever aquilo. Por mais que o final tenha criado algumas reações divisivas, acho que é, talvez, o final mais forte de todos os filmes que fiz até agora. Junto ali, talvez, com o de “Retratos fantasmas”. Que, aliás, não teve roteiro.

Na dedicatória para Wagner Moura do livro com os roteiros dos três longas anteriores, você escreveu que “não deixam de ser mensagens em garrafas”. E qual a ‘mensagem na garrafa’ de ‘O agente secreto’? 

A mensagem na garrafa é que, num filme sobre lembrar e esquecer, a própria existência do filme e do seu roteiro publicado em papel passam a ser documentos a serem guardados – e serão – em bibliotecas particulares. públicas ou de universidades. Acho que, cada vez mais, tenho consciência de que as coisas que a gente faz são documentos. Quando eu fotografo, guardo o negativo porque sou bem pessimista em relação à manutenção dos arquivos digitais. Todas as ideias que consigo transformar em matéria física são mensagens em garrafa.

“Quando ele diz que escreveu Marcelo/Armando pensando em mim, me ocorrem algumas coisas, para além de gratidão. Uma é que esse personagem carrega muito do próprio Kleber, de um sentimento de injustiça e, por vezes, impotência com o qual ele próprio já teve que lidar. Marcelo/Armando tem uma temperatura muito parecida com a de Kleber, o jeito com que ele reage às coisas. É um personagem que diz em várias cenas que não anda armado, e vi que isso era importante para ele. Eu acho que sou um ator mais explosivo, mais sanguíneo, e ele queria explorar uma coisa diferente nesse filme. Esse personagem tem muita vontade de viver, de proteger quem ele ama, mas não o faz como o famoso agente secreto inglês. Não há nunca aquele “momento do herói”, aquela cena catártica, aquela virada dramática lá dos manuais de roteiro. Marcelo/Armando não é herói, não é vilão, é um cara, com qualidades e defeitos tentando seguir vivo e fiel aos seus valores. Não muito diferente da maioria de nós.”


Trecho do texto de Wagner Moura no livro “O agente secreto” (Amarcord), com o roteiro do filme de Kleber Mendonça Filho


“Num filme sobre lembrar e esquecer, a própria existência do filme e do seu roteiro publicado em papel passam a ser documentos a serem guardados – e serão – em bibliotecas particulares. públicas ou de universidades. Acho que, cada vez mais, tenho consciência de que as coisas que a gente faz são documentos.”


Kleber Mendonça Filho, sobre o livro com o roteiro de “O agente secreto”

“O agente secreto”

De Kleber Mendonça Filho

Posfácio de Wagner Moura

Editora Amarcord 

320 páginas

R$ 69,90

  

Acesse o Clube do Assinante

Clique aqui para finalizar a ativação.

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay