Brasil colonial

Companhia de Jesus: o 'genocídio' dos povos da floresta em nome de Deus

Sob o pretexto de salvar as almas dos indígenas, jesuítas arrancaram nomes ancestrais, impuseram a fé católica e apagaram seus deuses e crenças

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Por volta de 1720, nas margens do Rio Madeira, no coração da Amazônia colonial, um líder indígena da etnia Mura – cujo nome ancestral se perdeu nas brumas da oralidade – comandava rituais xamânicos com maracás que ecoavam invocações aos espíritos da floresta, guardiões de uma cosmologia onde o mundo era tecido de ciclos vitais, não de pecados originais. Capturado em uma expedição de "resgate" armada, liderada por jesuítas da missão de Borba, ele foi acorrentado e arrastado para o aldeamento. 

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Pará: as cidades com nomes portugueses que apagaram a história original

Lá, 'em batismo coletivo com outros 47 prisioneiros, sua identidade foi ritualisticamente executada: cabelo cortado à moda portuguesa, vestes de algodão impostas, e o nome João da Cruz cravado como estigma cristão. Obrigado a abjurar solenemente "os erros da gentilidade", queimou publicamente seus maracás perante a aldeia, declarando falsos os deuses que o definiam. Recusa inicial rendeu-lhe 30 açoites no pelourinho. Tornou-se "principal" controlado, morrendo de varíola em 1732 – um espectro de sua etnia original' (João Daniel, Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas, vol. 2, pp. 145–147, ed. 2004).

Esse caso, documentado pelos próprios algozes, encapsula o apagamento etiológico sistemático imposto pela Companhia de Jesus: não mera conversão, mas aniquilação ontológica, onde nomes ancestrais – portais para linhagens, territórios e mitos etiológicos que explicavam a origem do mundo (o dilúvio de Tupã, a criação por Guaraci) – eram substituídos por significantes europeus, reduzindo o indígena a tábula rasa cristã. Crenças polifônicas, com panteões dinâmicos e xamanismo como epistemologia viva, eram demonizadas como "pactos diabólicos", queimadas em autos de fé improvisados, extinguindo narrativas que teciam o cosmos indígena em harmonia com a floresta.



Missões e massacres

A Companhia de Jesus, fundada em 1540 por Inácio de Loyola, chegou ao Brasil em 1549 com a primeira expedição liderada por Manuel da Nóbrega. Inicialmente concebida como uma ordem missionária militante, os jesuítas rapidamente se tornaram protagonistas na colonização portuguesa, especialmente na Amazônia, onde sua influência se estendeu do século 17 ao 18. Regiões como o Grão-Pará e Maranhão viram a instalação de aldeamentos indígenas – as chamadas "reduções" ou missões – que, sob o pretexto de catequese e proteção, mascaravam um sistema de controle social, exploração econômica e repressão cultural.

Essa presença não foi mero acidente histórico, mas uma extensão deliberada do projeto colonial europeu, que via nos indígenas não almas a salvar, mas recursos a domar. Uma análise crítica revela absurdos profundos: a imposição de uma inquisição informal, perseguições sistemáticas e mortes em massa, tudo justificado por uma teologia que elevava o europeu ao centro do universo divino.

As reduções como prisões disfarçadas

Os jesuítas justificavam sua intervenção na Amazônia alegando a necessidade de "civilizar" os povos nativos, isolando-os de colonos portugueses que praticavam a escravização direta. Figuras como Antônio Vieira, o "Apóstolo do Brasil", pregavam sermões inflamados contra a escravidão indígena, mas na prática, os aldeamentos funcionavam como enclaves de trabalho forçado. No Maranhão e Pará, missões como as de Marajó ou Tapajós reuniam milhares de indígenas – tupis, omáguas, mundurucus – em vilas regimentadas, onde o dia era ditado por sinos: orações ao amanhecer, trabalho agrícola ou extrativista até o entardecer, e doutrinação noturna. Crônicas jesuíticas, como as de João Daniel em 'Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas(escrito na prisão, ironicamente), descrevem esses espaços como paraísos de ordem, mas relatos de viajantes e indígenas revelam o oposto: fome crônica, epidemias introduzidas por europeus (varíola, sarampo) e punições corporais por "recusas" à fé.

O absurdo reside na hipocrisia: os jesuítas condenavam a escravidão laica, mas criavam uma forma de servidão eclesiástica. Indígenas eram "descidos" dos rios em expedições armadas – os famosos "resgates" –, forçados a abandonar territórios ancestrais. Quem resistia era rotulado de "infiel" ou "bárbaro", justificando guerras santas. No século 17, o padre Vieira defendia em cartas ao rei que os indígenas só progrediriam sob tutela jesuítica, ecoando uma visão paternalista que negava agência nativa. Essa tutela, porém, era econômica: as missões produziam cacau, cravo, madeira e drogas do sertão para exportação, enriquecendo a Companhia e a Coroa, enquanto indígenas morriam de exaustão.

Perseguição, inquisição informal e mortes em massa

A evangelização jesuítica na Amazônia não era diálogo, mas imposição violenta. A Inquisição oficial portuguesa, centrada em Lisboa, delegava aos jesuítas poderes inquisitoriais locais, criando um tribunal paralelo nas missões. Práticas indígenas – xamanismo, poligamia, rituais de ayahuasca ou cauim – eram demonizadas como "pactos com o diabo". Padres realizavam "auto de fé" improvisados: confissões forçadas, flagelações públicas e exílios internos. O padre Samuel Fritz, missionário no Alto Amazonas no final do século XVII, relatava em diários a destruição de malocas e a queima de objetos sagrados para "extirpar idolatrias", mas omitia as rebeliões que isso provocava.

Perseguições escalavam para genocídio. Durante as Guerras Guaraníticas (1754-1756), embora mais ao Sul, o modelo amazônico era similar: jesuítas armavam indígenas contra resistentes, resultando em massacres. No Pará, a Revolta dos Tapuias (1650) e a Cabanagem (1835) tiveram raízes em abusos jesuítas. Milhares morreram em "guerras justas" declaradas por padres – absurdamente, em nome de um Deus de amor. Epidemias, introduzidas deliberadamente ou não, dizimaram populações: estimativas indicam que, cerca de dois milhões de indígenas na Amazônia pré-colombiana, restaram menos de 100 mil no final do século 18, com jesuítas contribuindo via aglomeração forçada em aldeamentos insalubres.

O ápice do absurdo foi a escravização espiritual: batismos em massa sem consentimento, renomeação forçada (índios ganhavam nomes portugueses, apagando identidades), e proibição de línguas nativas. Crianças eram separadas das famílias para "educação" em colégios jesuítas em Belém ou São Luís, retornando como intérpretes ou traidores de suas comunidades. Mulheres indígenas sofriam abusos sexuais rotineiros, justificados como "conversões pelo corpo". Essa violência não era exceção, mas norma: a Companhia via o indígena como tabula rasa, um "selvagem" a ser moldado à imagem europeia, ignorando cosmologias complexas como as dos tupis, com mitos ricos em dualidades e ciclos naturais.

Legado e expulsão: O fim de uma era de absurdos

A expulsão dos jesuítas em 1759, por decreto de Marquês de Pombal, expôs as contradições: acusados de enriquecimento ilícito e conspirações, mas também de "proteger demais" os indígenas contra a Coroa. Pombal dissolveu as missões, leiloando terras e escravizando ex-aldeados. No entanto, o dano era irreversível: culturas extintas, demografia devastada, e um trauma que persiste em comunidades amazônicas atuais, onde descendentes relatam histórias de "padres negros" como sinônimo de terror.

Criticamente, os jesuítas na Amazônia encarnaram o paradoxo do colonialismo católico: missionários que salvavam almas enquanto destruíam corpos e mundos. Seus absurdos – inquisição sem tribunal, perseguição em nome da salvação, mortes por "progresso" – revelam não fé genuína, mas poder disfarçado de piedade. Hoje, em um Brasil que debate reparações indígenas, revisitar essa história não é revanchismo, mas justiça epistemológica: reconhecer que a "civilização" jesuítica foi, na essência, uma guerra cultural perdida para os vencidos. A Amazônia, com suas cicatrizes, clama por narrativas que priorizem vozes nativas sobre crônicas eurocêntricas.



Mitos dos Mura: Cosmologias da Floresta e do Rio

Os Mura (autodenominados Buhude ou "gente de verdade") são um povo indígena da Amazônia Central, historicamente nômades fluviais entre os rios Madeira, Purus e Médio Amazonas (atual Amazonas e Rondônia). Sua mitologia é profundamente hidrocentrada – o rio não é cenário, mas protagonista vivo, serpente cósmica que conecta mundos. Apesar do apagamento colonial (jesuítas queimaram maracás e proibiram rituais no séc. 18), fragmentos sobreviveram via tradição oral e registros etnográficos do séc. 19 e 20. Abaixo, os principais mitos documentados, com fontes confiáveis:

1. A criação pelo dilúvio e a Grande Cobra (Mito Etiológico Central)

Narrativa: No início, o mundo era só água. A Grande Cobra d’Água (Yurupari ou Boiúna em variantes) nadava no vazio. Ela vomitou a terra (ilhas flutuantes) e criou os rios ao se contorcer. Os primeiros humanos surgiram de ovos de jacaré depositados em praias de areia.

Simbolismo: O dilúvio não é castigo (como no Gênesis), mas renascimento cíclico. Secas e cheias são respirações da Cobra.

Fonte:

Agostinho da Silva (1906), Relatório da Comissão de Linhas Telegráficas (Rondônia). Registrou versão contada por informante Mura em 1900.

Curt Nimuendajú (1948), Os Mura (Revista do Museu Paulista). Versão coletada em 1920 com idosos em Autazes (AM).




2. O Roubo do fogo por Curupira

Narrativa: Os Mura viviam no escuro, comendo peixe cru. Curupira (guardião da mata, pés virados para trás) roubou o fogo do trovão (Tupã) e o escondeu num bambu. Um menino Mura o encontrou, acendendo a primeira fogueira. Em troca, Curupira exigiu respeito à caça (nunca matar fêmeas grávidas).

Simbolismo: Fogo = conhecimento, mas com regras ecológicas. Quebra-las traz maldição (caçador some na mata).

Fonte: João Barbosa Rodrigues (1880s), relatos em Exploração do Rio Madeira.

Etnografia moderna: Davi Kopenawa (influência Mura em Yanomami próximos) menciona variante.




3. A origem das estrelas: as filhas do jacaré

Narrativa: Um jacaré gigante raptou sete irmãs Mura para seu palácio subaquático. Elas fugiram subindo uma árvore até o céu, virando as Plêiades (Sete Estrelas). O jacaré as persegue todo ano – quando some no horizonte, é inverno; quando volta, é cheia.

Simbolismo: Calendário agrícola/fluvial. Plêiades marcam plantio de mandioca e pesca de pirarucu.

Fonte: Stradelli (1929), Vocabulário da Língua Geral – cita mito Mura.

Entrevistas recentes (2020s): Liderança Mura em Careiro (AM), via FOIRN/ISA.




4. O Espírito do Rio: Mboia-yara ("Dona da Cobra")

Narrativa: Uma mulher Mura que se afogou virou Mboia-yara, serpente encantada que protege os peixes. Pescadores oferecem tabaco antes de lançar rede; se não, ela vira canoa ou encalha a embarcação.

Simbolismo: Sustentabilidade – pesca é pacto, não dominação.

Fonte:

Padre João Daniel (1757, ironicamente): Em Tesouro Descoberto, chama de "superstição" mas registra o medo jesuítico dela.

Herbert Smith (1879), Brazil, the Amazons and the Coast.




Status atual e resistência cultural

População: aproximadamente 15 mil (2023, FUNAI), em 12 Territórios Indígenas (ex.: TI Coatá-Laranjal, AM).

Língua: Mura (família isolada), quase extinta – só idosos falam fluentemente. Revitalização via escolas indígenas.

Resistência aos jesuítas: No séc.18, Mura eram temidos como "piratas do rio" – atacavam missões, afundavam canoas de padres. Expulsão jesuítica (1759) foi celebrada em cantos orais.

"O padre queimou nosso maracá, mas não apagou a Cobra. Ela vive no fundo do rio, esperando."

— Anciã Mura, entrevista ISA (2018).

Fontes para aprofundamento

Nimuendajú, Curt (1948). Os Mura e os Pirahã.

ISA – Instituto Socioambiental (pib.socioambiental.br – verbete "Mura").

FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) – arquivos orais.

João Daniel (2004 ed.). Tesouro Descoberto – ler com olhar crítico.



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