Primeira leitura: 'Um século em poesia: Drummond Essencial'
'Drummond essencial' reúne cinco títulos em edição especial com capa dura, ensaio inédito, cronologia e revisão baseada nos manuscritos do poeta
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Tarso de Melo
Em abril de 1957, o poeta Mário Faustino (1930-1962) recebeu um exemplar de “50 poemas escolhidos pelo autor: Carlos Drummond de Andrade”. Os leitores do Jornal do Brasil já acompanhavam o jovem e impetuoso leitor de poesia em sua página semanal “Poesia-Experiência”, sempre disposto a apontar o melhor e o pior da produção poética com a mesma verve. Não seria diferente com Drummond, que já havia lançado, até então, seus principais livros de poesia e se estabelecido como referência incontornável nesse mundo que Faustino esquadrinhava com sua inteligência rara.
Severo como de costume, acaba sendo engraçada a forma como Faustino declara sua admiração por Drummond. Como um fã inconformado, ele diz que o poeta, claro, pode escolher seus 50 poemas: “não há que discutir, mas há que lamentar”. E faz uma lista dos poemas que não poderiam ter ficado de fora e daqueles cuja inclusão na antologia Drummond “deveria explicar”. Mas não para por aí a reclamação do resenhista. Faustino sugere aos editores a publicação de um segundo volume, agora selecionado por “conhecedores e admiradores”, entre os quais, obviamente, ele se inclui: “não parece restar dúvida de que Carlos Drummond de Andrade é um de nossos raros masters, ao lado de Camões, de Fernando Pessoa, de Jorge de Lima”.
Num elogio que começou enviesado, logo vai se revelar uma das afirmações mais apaixonadas — e certeiras — sobre a importância da obra de Drummond:
“A poesia de Carlos Drummond de Andrade é documento crítico de um país e de uma época (no futuro, quem quiser conhecer o Geist [espírito] brasileiro, pelo menos de entre 1930 e 1945, terá que recorrer muito mais a Drummond que a certos historiadores, sociólogos, antropólogos e “filósofos” nossos...) e um documento humano “apologético do Homem”.
Faustino resume assim o que os leitores, entre eles alguns dos principais nomes da crítica literária e, também, da teoria social no Brasil, começaram a perceber tão logo despontaram, nas revistas modernistas da década de 1920, os primeiros versos do poeta mineiro. E foi justamente essa dupla natureza — “documento crítico” e “documento humano” —, intensificada com o passar do tempo, de livro a livro, que fez com que cada nova obra lançada por Drummond viesse a ser recebida com atenção e paixão raras para um poeta (como prova o texto de Faustino), até formar um dos mais agudos e necessários retratos da realidade brasileira (e mundial) durante o século 20.
E é preciso mesmo falar do século para dimensionar Drummond. Nascido em 1902, em Itabira do Mato Dentro, no interior de Minas Gerais, Carlos Drummond de Andrade escreveu e publicou intensamente (poesia, crônica, contos etc.) até sua morte, em agosto de 1987, no Rio de Janeiro, onde vivia desde os anos 1930. Trata-se, portanto, de um autor que atravessou o “breve século 20”, para usar a expressão de Eric Hobsbawm (que situa essa “era dos extremos” entre o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e a dissolução da União Soviética, em 1991),[oportunamente lembrada por Silviano Santiago, para quem o poeta e o século são “irmãos”, nascidos com apenas um ano de diferença. Nas palavras de Santiago, assim se dá essa irmandade:
“[...] os dois [Drummond e o século] seguem percurso paralelo e íntimo. O caminhar conflituoso do século XX está indissoluvelmente interligado ao desenvolvimento em ritmo de vai e vem de sua poesia. Ler a obra poética do irmão mais novo pode servir para compreender melhor a história do irmão mais velho. Ler a história do mais velho pode ajudar a analisar e interpretar melhor a obra poética do mais novo. [...] Nos poemas de Carlos Drummond de Andrade, os grandes acontecimentos públicos do século são expressos através duma atormentada, galhofeira ou benévola autoanálise. A esta se acopla uma reflexão poética de ordem pessoal e transferível sobre a vivência do cidadão brasileiro e do intelectual cosmopolita em tempos que podem ser trágicos, dramáticos, nostálgicos, pessimistas ou alegres. Experiência privada e fatos públicos nacionais e estrangeiros, em correlação e sistema de troca entranháveis, compõem a textura das sucessivas coletâneas de poemas publicadas entre 1930 e 1996.”
Olhar desse modo para os livros de Drummond não é uma chave entre outras para sua interpretação. É uma condição para entender como essa obra se forma e cada um de seus passos, suas diferenças internas, suas idas e vindas. Diferentemente de outros poetas, que tentaram escapar (se é que isso é possível) ou se proteger de seu tempo, Drummond se lançou como um repórter na “matéria” que a vida no século XX (no Brasil, no mundo) lhe ofereceu e, assim, fez-se, voluntária e inevitavelmente, poeta “[d]o tempo presente, [d]os homens presentes, // [d]a vida presente” (“Mãos dadas”).
Nessa longa trajetória de quase sete décadas escrevendo e publicando poesia, os conjuntos aqui destacados, “Alguma poesia” (1930), “Sentimento do mundo” (1940), “José” (1942), “A rosa do povo” (1945), “Novos poemas” (1948) e “Claro enigma” (1951), são, de fato, momentos de alta concentração das principais linhas de força da poesia de Drummond. São os livros que o consagram como o grande poeta brasileiro de um século em que não foram poucos os excelentes poetas que escreveram neste país.
Em termos históricos, tais livros correspondem (respondem, reagem) a um período de grande conturbação, passando, no plano internacional, pela Segunda Guerra Mundial (com toda a turbulência e incerteza do pré e do pós-guerra) e, no Brasil, pela instauração da ditadura do Estado Novo. É esse, portanto, o “tempo presente” em meio ao qual Drummond põe-se a “lutar com palavras”. Segui-lo através das páginas em que “seu” século se inscreveu é deslumbrante — e tormentoso. n
Sobre a edição e o organizador
A editora Record acaba de lançar “Drummond essencial”, box com edições em capa dura e pintura trilateral de cinco livros de Carlos Drummond de Andrade: “Alguma poesia”, “Sentimento do mundo”, “José & Novos poemas”, “A rosa do povo” e “Claro enigma”. Com projeto gráfico de Mayumi Okyama, o box inclui livreto com ensaio inédito do poeta e editor Tarso de Melo, do qual o Pensar publica trecho acima, além de cronologia completa da vida e obra de Drummond. Os livros trazem fixação de texto por Edmílson Caminha, que teve acesso inédito ao acervo de exemplares anotados e manuscritos deixados pelo poeta. A caixa traz ainda seis cards com autocaricaturas de Drummond e versos retirados de cada um dos livros: “Alguma poesia”, “Sentimento do mundo”, “José”, “A rosa do povo”, “Novos poemas” e “Claro enigma”.
“Essencial”
De Carlos Drummond de Andrade
Editora Record
632 páginas
R$ 279,90