Viagem de ventania: Lô Borges e a a obra que sempre buscou o infinito
Entre estrada, desejo e experimentação, o compositor mineiro construiu músicas que desafiam limites físicos e simbólicos
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Bruno Viveiros Martins
Especial para o EM
A música de Lô Borges, ao longo de sua trajetória artística, traduz de maneira própria e particular as experiências humanas em suas mais diversas significações. Uma de suas características primordiais é o olhar em movimento lançado sobre a realidade à sua volta. Essa tentativa de conhecer o mundo se orienta a partir do ângulo de visão semelhante ao de um viajante que coloca o pé na estrada sem bussola, diário de bordo, plano de voo, rotas regulares ou destino preestabelecido. A viagem experimentada não apenas como deslocamento físico entre distâncias predeterminadas, mas como vivência da alteridade que diferencia o próprio sujeito em busca de si mesmo, afastando-o de um mundo antes fechado dentro de seus próprios limites e, portanto, desprovido de sentido é uma das questões essenciais da obra de Lô Borges.
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As cartografias do mundo real nunca inibiram o artista. Pelo contrário, quanto mais fronteiras a serem divisadas, mais era a vontade do cantor e compositor em conhecer outros universos cada vez mais distantes do lugar comum e preso à tabus, padrões e verdades cristalizadas. A curiosidade fez com que ele criasse fantasias em torno da descoberta do novo, do encontro com algo ou lugar sonhado. Com a mente sempre aberta para vários horizontes possíveis, Lô Borges convidou seus ouvintes a experimentar outras dimensões da vida levada ao sabor dos ventos.
É isso que o compositor fez, desde 1972 quando lançou o “Disco do Tênis” com quinze composições de sua autoria recheadas de desejos e aspirações que ladeiam as estradas – ao melhor de estilo de Jack Kerouac em “On the road” – construindo aforismos baseados em visões psicodélicas, que mesclam vivência passadas e presentes; propiciam insubordinações perante a ordem estabelecida; formulam contraposições a uma sociedade massiva e abrem outras percepções para além da realidade imediata.
No segundo disco solo, “A via-láctea”, de 1979, e em todos outros lançados posteriormente, Lô Borges manteve seu percurso dinâmico no rumo do infinito. Suas canções desprezam as distâncias, revelam relevos e desníveis, levando consigo as fronteiras de um conhecimento que se estende aos lugares por onde passa, incluindo o novo, o distante, o diferente. Seu olhar procura, provoca, investiga e interroga; enfim, quebra certezas. Em muitos casos, a curiosidade e a vontade de observar o desconhecido de perto levaram o artista à beira de precipícios como em “A olho Nu”, parceria com Márcio Borges:
Quero ver você sair ao mar
Amar o precipício solto numa boa
E deixar atrás o velho cais
E na distância ver a olho nu
Com asa fechada ninguém voa
Vamos juntos nessa lição aprender
Arriscar até secar as lágrimas
E deixar atrás todo o cais
Nessa composição, e em várias outras de seu repertório de canções estradeiras, as experiências ao longo dos caminhos modificam tanto a fisionomia quanto a alma do narrador que se apresenta, na maioria das vezes, em primeira pessoa. Desde os tempos mais remotos, o caminhar errante pelas estradas sempre foi um meio de conhecer o mundo. Esse tipo de deslocamento possibilitou ao sujeito entrar em contato com outros lugares, outras condições de vida, outras formas de civilização. Quando associada à ideia de aventura, a viagem (repleta de riscos e perigos), além de se notabilizar como um desafio a ser enfrentado, nos aproxima ainda mais da percepção que Lô Borges e seus parceiros lançam sobre valores como autonomia, independência e liberdade. A decisão pela viagem aventureira implica em um ato de coragem diante do imprevisível. Em troca do conforto da vida cotidiana, os narradores presentes em suas canções escolhem um mundo a ser conhecido e experimentado à beira dos caminhos.
A viagem de Lô Borges não terminou na esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis onde seus fãs, parceiros e amigos cantaram em sua homenagem na segunda-feira, dia 3 de novembro, após a informação de que ele havia deixado o plano terreno. Sua jornada apenas mudou de direção para ganhar outros rumos. E possível que ele jamais tenha pisado esse mundo com os dois pés no chão. Talvez Lô Borges tenha sido herdeiro de Hermes, que com suas sandálias aladas tornou-se um mensageiro do Olimpo entre a terra e o céu e, por consequência, patrono de todos os viajantes que o veneravam nas encruzilhadas dos caminhos para afastar o medo, garantir passagens seguras e evitar maus encontros.
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Ao mesmo tempo, ele foi amante da música, inventor da lira e da flauta com as quais presenteou Apolo em troca de sua iniciação nas magias divinatórias utilizadas na expansão da consciência. Com elas, tornou-se o deus dos ventos que correm pelos quatro pontos cardiais, reunindo os mistérios do universo e a arte de decifrá-los. Assim como as sandálias desse deus pagão, quem sabe se o tênis velho e sujo do adulto de alma eternamente jovem, Lô Borges, também seja alado e com ele o fundador do Clube da Esquina continue a viajar por novos caminhos entre sonhos e sons? Quem pode assegurar que a essa voz não seguirá sua jornada cantando ainda mais livremente – acompanhada pela lira de Hermes – nas encruzilhadas e desvãos do mundo? Essas são perguntas sem respostas que ressoam feito “frases que o vento vem às vezes me lembrar”. Afinal ....
Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem se lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, asso, asso
BRUNO VIVEIROS MARTINS é historiador, autor do livro “Clube da Esquina - Trajetória Musical” (Oca Editorial/ Azougue Press)