Revista 'Mutum' propõe ser arquivo literário contra o esquecimento
Criada por Guilherme Pavarin e Luiz Guilherme Fonseca, revista virtual de literatura oferece entrevistas, ensaios e inéditos
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O nome é de uma ave rara das Américas , mas “Mutum” não se dedica à zoologia. A revista literária virtual criada por Guilherme Pavarin e Luiz Guilherme Fonseca propõe-se como um arquivo de resistência: espaço de preservação da literatura latino-americana, de antes e de agora, sem a pressa do mercado editorial.
“Mutum nasceu da ideia de criar um arquivo literário que resistisse ao tempo ”, afirma Pavarin ao Pensar do Estado de Minas. “Nossa intenção foi, desde o início, catalogar escritores latinoamericanos, vivos e mortos, cujos projetos estéticos se provaram consistentes e relevantes. Trabalhamos com a ideia de preservação, mas não só: queremos aproximar a literatura brasileira da hispano-americana.”
As edições reúnem entrevistas, ensaios e textos inéditos de autores da região, todos registrados em fichas on-line com informações sobre suas trajetórias. A revista se organiza em cinco seções fixas. “Com a palavra” publica conversas extensas sobre vida e obra de escritores. “Esboços” traz ensaios e reflexões sobre literatura e cultura na América Latina. “Em que pensa” convida autores a discorrer sobre temas recorrentes em suas obras. Imaginações abre espaço para contos, fragmentos e poemas inéditos. E o “Questionário fantasma” – um exercício de imaginação apoiado em inteligência artificial – promove um ‘diálogo’ entre escritores vivos e mortos. “As perguntas espectrais, obtidas por meio de uma inteligência artificial bem treinada, saíram como algo que o (Roberto) Bolaño talvez rejeitasse depois de ter escrito: com um romantismo selvagem que pode soar, para muitos, como algo exagerado e até afetado. Mas não para nós”, avisam os editores.
Além da revista, uma newsletter mensal oferece conteúdos exclusivos: trechos de obras ainda inéditas no Brasil, indicações de leitura e materiais complementares das entrevistas. O número de estreia traz Joca Reiners Terron, Silvina Ocampo, Ariel Luppino, Piedad Bonnett, João do Rio e os mineiros Adão Ventura (1939-2004) e Edimilson de Almeida Pereira.
“O grande norte de Edimilson nunca deixou de ser a poesia. Seu espírito poético perpassa ca - da linha, versificada ou não, ficcional ou não, como se fosse impossível dissociar criação e pensamento. Para ele, talvez pensar seja como escrever um poema”, afirma o texto de apresentação da entrevista com o poeta de Juiz de Fora, que responde a um questionário póstumo elaborado pelo chileno Roberto Bolaño.
O projeto nasce com ambição de permanência. “Por enquanto, as edições são trimestrais. É a periodicidade possível para nós, editores, conseguirmos trabalhar o material. A intenção, claro, é conseguir apoio para reduzir o intervalo. Quem sabe”, diz Pavarin
Leia, abaixo, trecho do conto de Joca Reiners Terron, publicado na “Mutum” #1, e três respostas de Edimilson de Almeida Pereira ao questionário elaborado por Bolaño.
“Um mendigo vê o sonho da Terra”
Joca Reiners Terron (publicado na revista "Mutum")
Um mendigo vê o sonho da Terra numa pedra transparente que pende do clitóris de uma prostituta: o sonho da Terra que vou contar envolve Jacques Lacan, e não importa que seja apócrifo, algo que vou inventando à medida em que escrevo estas palavras, pois é um sonho que a Terra sonha através de mim. Lacan foi o último proprietário de A Origem do Mundo, a pintura de Courbet. Talvez seja inútil recordar que a pintura exibe uma vulva e o ventre de uma mulher deitada de pernas abertas. Anos antes de se desfazer do quadro, doado ao Musée d'Orsay, o psicanalista decidiu realizar uma experiência. Primeiro, dispôs A Origem do Mundo detrás de um biombo de laca com motivos chineses, diante do qual instalou um telescópio apontado para um furo no biombo. A ideia era convidar homens para observarem A Origem do Mundo pelas lentes do telescópio. Os convidados, compostos na maioria por artistas e amigos de Lacan, formaram uma longa fila que se estendia da frente da casa de campo onde ele vivia, passava pela escadaria em caracol até culminar no cômodo superior aonde ficava o quadro. Quando chegava sua vez, o afortunado dobrava a espinha, encaixava seu melhor olho na lente ocular e ali permanecia por quinze segundos. Uns diziam palavrões, outros soltavam suspiros e dois ou três caíram no pranto, ao terminar seu tempo de observação. Encerrada a visão da origem, todos se afastavam igualmente em direção à saída, sob rigoroso silêncio.
Três perguntas para Edimilson de Almeida Pereira (publicadas na revista “Mutum”)
Qual é a sua ferida mais antiga, aquela que sempre vai acompanhar sua escrita como sombra? A sensação de que a linguagem é incapaz de traduzir os eventos realmente importantes da vida.
Você se senta diante da página em branco e o coração não bate bem. Do que seria esse medo? Ser lido e não ser compreendido.
Se a literatura desaparecesse do mundo dos vivos, onde você se esconderia? Não vejo a literatura como um refúgio. E se temos a consciência em alerta, penso que não há refúgio possível.