João Barile: 'Minas nunca saiu da alma de Silviano Santiago'
Descobertas e "duelos criativos" pontuam notável ensaio biográfico de João Barile sobre Silviano Santiago, com lançamento neste sábado na AML
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Silviano Santiago, leitor voraz e curioso por natureza, adiou ao máximo a leitura dos originais de um livro muito especial: um ensaio biográfico sobre Silviano Santiago. “Só fui ler quando já estava diagramado. Fiz uma leitura objetiva. E não pedi para tirar nada, nada, nada”, conta o ensaísta e ficcionista de 89 anos, professor aposentado, nascido em Formiga, doutor em Letras pela Sorbonne, um dos maiores intelectuais do país.
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A relação irrestrita de confiança estabelecida entre Silviano e o autor do ensaio biográfico, o jornalista João Pombo Barile, é um dos trunfos – e triunfos – do notável “Presente do acaso” (Autêntica), com lançamento neste sábado (8/11) na Academia Mineira de Letras. Outro ponto de destaque é a exposição da feitura do livro, reveladora a ponto de externar a reprimenda de Silviano à hesitante abordagem inicial de Barile. “Se você não sabe por onde começar, não é possível prosseguir”, adverte Silviano em um dos cordiais “duelos criativos”, na adequada definição do professor Karl Posso, que assina o prefácio.
“A forma encontrada por João Pombo Barile para retratar o biografado faz jus à dinâmica inovadora da relação entre sua vida e obra: a conversa como interação ao vivo, da qual o leitor passa a participar entusiasmado”, aponta Wander Melo Miranda, pesquisador e professor emérito da UFMG, na apresentação.
“Não queria simplesmente uma coleção de entrevistas ou a minha versão da minha própria vida, discuti muito com ele (Barile) no início. Deixei claro que eu só começaria a falar no momento em que sentisse que ele se constituía como narrador. Eu estava abrindo mão para deixá-lo conduzir”, explica Silviano. “Se eu tivesse escrito uma biografia convencional, trairia completamente o espírito do biografado. Nada mais anti-Silviano do que um livro com um narrador onisciente, todo certinho”, acredita o jornalista, nascido em 1966 em Campinas (SP), redator e repórter do Suplemento Literário de Minas Gerais e colaborador deste Pensar.
Barile tem razão. Na vida e na obra, Silviano sempre se insurgiu contra o previsível. Morou em Belo Horizonte na juventude nos anos 1950, quando descobriu o cinema por meio do Centro de Estudos Cinematográficos (CEC) e criou a revista literária “Complemento” com amigos como o cineasta Maurício Gomes Leite e o produtor musical Ezequiel Neves (revivido por Silviano em “Mil rosas roubadas”, “escrita literária que tenta deixar que a memória pessoal minha impere”).
Depois estudou na França e lecionou em algumas das mais prestigiadas universidades dos EUA antes de se estabelecer no Rio para dar aulas na PUC e se tornar professor emérito da UFF. Enquanto lecionava, não parou de publicar ensaios, artigos, contos, romances. Uma de suas reflexões de maior impacto no meio acadêmico, o ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano” (em “Uma literatura nos trópicos”, de 1978), sobre as consequências da supremacia do colonialismo europeu na cultura original da América Latina, antecipou discussões do século 21 e se consolidou como referência incontornável nos estudos sobre dependência cultural.
É exemplo raro, talvez, único, de intelectual brasileiro em plena atividade que trafega com idêntica desenvoltura pelos caminhos das ideias e da criação literária. “Ele domina a tradição, mas também a ruptura e a expansão, mapeando territórios novos”, observa Adriano Schwartz, professor de literatura da USP, na ‘orelha’ da mais recente edição de um dos livros definidores da trajetória de Silviano: “Em liberdade”, brilhante exercício ficcional da vida pós-cárcere de Graciliano Ramos publicado em 1981 e que rendeu a Silviano um dos seis Prêmios Jabuti que ganhou. Também recebeu, em 2022, o Prêmio Camões, a mais alta distinção da língua portuguesa. No ano seguinte, pelo conjunto da obra, foi agraciado com o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras.
Barile destaca dois presentes que recebeu do acaso – ou melhor, do trabalho de pesquisa – durante a imersão nos arquivos guardados em Copacabana. A descoberta dos estudos que Hélio Oiticica (1937-1980) fez para um livro de poemas escrito quando Silviano ainda morava nos EUA e completou 35 anos (e, por isso, chama-se “XXXV”). “A segunda descoberta, não menos importante, foram as cartas do Ezequiel Neves (produtor musical e compositor, amigo de Silviano desde a juventude em BH), que começam no início dos anos 1960 e vão até os anos 1970. Lidas em conjunto, têm uma grande força”, acredita o biógrafo, que teve acesso irrestrito à correspondência do “escritor-crítico”, na definição de Alfredo Bosi.
“Mesmo sendo seu amigo há algum tempo, quando comecei a ler os seus papéis, confesso que fiquei surpreso com a quantidade de gente que ele conheceu e conviveu, que eu nem imaginava. Sabia, por exemplo, de sua grande amizade com o Hélio Oiticica e o Benedito Nunes. Mas nem desconfiava que tinha sido tão amigo do Abdias do Nascimento ou do Florestan Fernandes”, afirma Barile.
Graças à dedicação obstinada de Barile e à “confiança e paciência” de Silviano com o entrevistador-confidente-biógrafo-amigo, há dois livros sob o título “Presente do acaso”. Um é o abrangente, minucioso e revelador relato das histórias de família e das trajetórias acadêmica e literária de um dos grandes nomes das letras no Brasil; outro, de leitura igualmente estimulante e prazerosa, também pontuado por surpresas e descobertas, narra as diferentes etapas do desafio de não se intimidar diante de um intelectual que vale quanto pensa.
Entrevista/João Barile
(autor de “Presente do acaso”)
“É impossível entender Silviano sem levar em conta sua fina ironia”
Como foi o seu primeiro contato com a obra de Silviano?
Se a memória não me trai, foi em 1985, durante um seminário da Funarte, organizado pelo filósofo Adauto Novaes, chamado “Cultura Brasileira: Tradição/Contradição”. O texto que Silviano leu, “Permanência do discurso da tradição no modernismo”, me chamou atenção logo de cara: fiquei impactado com a leitura que ele fazia da história do modernismo brasileiro a partir dos ensaios de dois poetas: T. S. Eliot e Octavio Paz. Fiquei hipnotizado.
Como surgiu o interesse em escrever sobre a vida dele?
Muita água passou debaixo da ponte depois que li aquele texto. Tomei contato com os ensaios de “Uma literatura nos trópicos” e “Vale quanto pesa”. Além do romance “Em liberdade”, que fez muito sucesso nos anos 1980. Por conta do jornalismo, a partir da década de 1990 acabei virando seu amigo e passamos a nos falar sempre. Não sou capaz de avaliar o quanto aprendi, ao longo desses anos todos, com ele. O interesse em escrever um livro sobre Silviano surgiu quando me dei conta que ele é um cara muito mais divertido e engraçado do que as pessoas imaginam. E então tive vontade de colocar isso no papel. É claro: Silviano é um dos nomes mais importantes da nossa literatura, autor de textos fundamentais para entendermos a cultura brasileira, professor universitário respeitadíssimo, vencedor do Prêmio Camões e tal. Isso tudo é verdade. Mas não podemos nos esquecer que o melhor amigo de Silviano foi o Ezequiel Neves, que era a ironia em pessoa. E pode te ser certeza: não por acaso. É impossível entender Silviano sem levar em conta sua fina ironia, que acho que se reflete melhor quando ele fala de forma mais desarmada.
Por que optou por não escrever uma biografia convencional?
Por uma razão simples: se tivesse escrito uma biografia convencional trairia completamente o espírito do biografado. Nada mais anti-Silviano do que um livro com um narrador onisciente, todo certinho e dando a impressão de que a coisas se passaram exatamente daquela maneira: a vida é mais confusa. Mas atenção: não estou com isso menosprezando o fundamental trabalho feito por muitos biógrafos brasileiros nas últimas décadas (a maioria deles, curiosamente, jornalistas). Não é isso. Desde o início sabia que teria de levar em consideração a verdadeira obsessão que Silviano sempre teve com a forma. A maneira como se conta uma história, com o narrador. Não se esqueça que Silviano é leitor contumaz de Machado e ninguém sai ileso lendo Machado durante tantas décadas. Meu ensaio biográfico, como prefiro chamar o livro, tentou refletir esta sua obsessão pelo narrador. Não sei se consegui.
“Silviano é um grande estudioso de literatura, um dos nossos maiores ensaístas e um dos melhores professores que já tivemos no país. Mas é também um grande escritor. Na verdade, é um tipo de escritor bastante comum em outros países: na Itália, pense em Umberto Eco ou Italo Calvino. Na Argentina, Ricardo Piglia”
João Barile, autor de “Presente do acaso”
O que torna singular a trajetória de Silviano como ensaísta, professor e ficcionista?
Acho que a maior singularidade da sua trajetória talvez seja mesmo a maneira com que ele sempre aliou ensaio e ficção. Teoria e criação literária sempre foram “junto e misturado” na sua obra. Silviano é um grande estudioso de literatura, um dos nossos maiores ensaístas e também um dos melhores professores que já tivemos no país. Mas é também um grande escritor. Na verdade, é um tipo de escritor bastante comum em outros países: na Itália pense em Umberto Eco ou Italo Calvino. Na Argentina, Ricardo Piglia. Ou ainda no romancista Mario Vargas Llosa, que escrevia ensaios maravilhosos. Todos eles transitavam entre o ensaio e ficção e ninguém achava estranho. Aqui não. Silviano gosta de repetir que no só Brasil o escritor não tem direito de ser inteligente. Pode ser. Herança do romantismo? Sei lá, não sou crítico literário. O fato é que até hoje mistificamos muito a criação artística. Para muitos de nós, a erudição atrapalha a imaginação. E a intuição conta mais. O pior de tudo é que nos últimos anos, com os sabichões da internet e a literatura engajada, a coisa piorou. O grande Alfredo Bosi chamava Silviano de “o escritor-crítico”. E talvez esta seja mesmo a melhor definição para ele.
Qual foi o método que utilizou em seus encontros com o autor?
Método? Sairia melhor na foto se dissesse que tive um. Mas eu estaria mentindo e seria hipocrisia da minha parte. Fui tateando. Como não moramos na mesma cidade, comecei primeiro com as conversas presenciais que fizemos ao longo de dois anos no Rio e Belo Horizonte. Paralelo a estes papos, virei seus papéis de ponta-cabeça e trocamos dezenas de e-mails e telefonemas. E muitos, muitos, zaps. Para minha sorte, esta mistura funcionou: muitos temas delicados, como sua relação com o pai (patrão) ou sua vida amorosa, fluíram melhor por conta desta mistura. Às vezes falar pelo zap é mais fácil do que cara a cara.
Você teve acesso irrestrito à correspondência de Silviano. O que mais chamou sua atenção nestas cartas? Quais descobertas o surpreenderam?
Mesmo sendo seu amigo há algum tempo, quando comecei a ler os seus papéis, confesso que fiquei surpreso com a quantidade de gente que ele conheceu e conviveu, que eu nem imaginava. Sabia, por exemplo, de sua grande amizade com o Hélio Oiticica e o Benedito Nunes. Mas nem desconfiava que tinha sido tão amigo do Abdias do Nascimento ou do Florestan Fernandes. Quanto as maiores descobertas acho que foram duas: a primeira ter encontrado a boneca que o Hélio Oiticica fez para um livro de poemas do Silviano, que foi escrito quando ele fez 35 anos e ainda morava nos EUA. Chama-se “XXXV”. A segunda descoberta, não menos importante, foram as cartas do Ezequiel Neves, que começam no início dos anos 1960 e vão até os anos 1970. Lidas em conjunto, têm uma grande força. Com a leitura, podemos acompanhar as mudanças que o mundo passava no período: o primeiro disco de Bob Dylan, o primeiro show de Maria Bethânia. Zeca era um poeta maravilhoso, um excelente escritor. As cartas são geniais.
Nascido em Formiga, Silviano saiu de Minas Gerais ainda nos anos 1960. Mas como a cultura, a história, a literatura do estado se encontram na obra dele?
Pode parecer lugar comum o que vou dizer agora, mas é a mais pura verdade: Minas nunca saiu da alma do Silviano. E, consequentemente, de sua obra. De maneira explícita, Minas pode ser encontrada em livros como “Heranças” e “Mil rosas roubadas”. Mas não só. Ela aparece ainda em outros textos seus, de forma bem mais discreta, meio escondido. Um exemplo? “Uma história de família”, publicado em 1992. Para falar da Aids, a doença que matou de forma cruel milhares de pessoas e inclusive muitos dos seus amigos, Silviano recorreu a Minas. Não foi por acaso.
Você faz detalhamento minucioso da vida acadêmica de Silviano nos EUA e França. O que mais se destaca nesse período?
Silviano é um cara muito na dele, discreto. Esteve no olho do furacão quando a filosofia francesa invadiu os EUA no final dos anos 1960, mas nunca saiu por aí contando vantagem disso. Não fica falando que conviveu, por exemplo, com Michel Foucault ou Jacques Derrida. Ou que ainda frequentou os famosos cursos de escrita criativa do escritor John Barth. Não é cara deslumbrado. Coisa rara num país de tantos cabotinos.
Durante todo o tempo de apuração, recebeu algum “presente do acaso”?
Vários. O mais importante talvez tenha sido mesmo ter encontrado o seu livro de poemas “XXXV”, que estava desaparecido há mais de 30 anos. Tomei um grande susto quando encontrei, perdida numa caixa de papelão todo empoeirado, a boneca que o Hélio Oiticica fez para o livro. No ano que vem, o livro talvez seja editado.
Quais livros acredita que poderiam funcionar como portas de entrada para quem não conhece a obra de Silviano?
Pergunta difícil, já que não sou um especialista na obra de Silviano. Mas para não ficar sem resposta, sugiro dois: em primeiro lugar “Vale quanto pesa”. Publicado em 1982, os ensaios do volume são ainda (feliz ou infelizmente, não sei dizer) de uma atualidade assustadora. Nas últimas décadas, o modelito “livro engajado” voltou a ser a grande tendencia da passarela na nossa literatura. E este livro de Silviano, publicado há mais de quarenta anos, pode ser um excelente antidoto para evitarmos de cair na velha cilada de tentar definir “o que é e o que não é literatura”. E que, infelizmente, voltou com força nos últimos meses. Em “Vale quanto pensa”, Silviano colocou, lado a lado, a poesia canônica de João Cabral de Melo Neto com a poesia do poeta Adão Ventura, um poeta negro que, na época, não era conhecido no eixo Rio-São Paulo. Fazer isso hoje é fácil: na década de 1970 não era assim. Por último, para não deixar de citar um livro de ficção, sugiro “Em liberdade”, de 1981. Ao encarnar Graciliano, Silviano escreveu um romance que nos ensina como o escritor e intelectual sempre foram tratados pela violenta e atrasada sociedade brasileira.
O nome do livro
O título do livro vem de um trecho do poema “Passagem do ano”, de Carlos Drummond de Andrade, em “A rosa do povo”.
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão esperas amanhecer.
“Presente do acaso: Um ensaio biográfico sobre Silviano Santiago”
• De João Barile
• Autêntica
• 344 páginas
• R$ 94,90
• Lançamento neste sábado (8/11), às 10h, com bate-papo entre João Barile, Silviano Santiago e Wander Melo Miranda, seguido de autógrafos na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1466, Centro, BH).