POESIA

Negritude, poética e experimentos de Adão Ventura

Livro reúne décadas de criação poética e mostra como o poeta de Santo Antônio do Itambé fez da negritude uma linguagem, e da palavra, um ato político

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Matheus José dos Santos

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Especial para o EM

A publicação da poesia reunida de Adão Ventura surge para manter em relevo as potencialidades de um poeta que experimentou, com arrojo, as possibilidades de expressão da negritude nas estruturas da linguagem poética.

A publicação de “A cor da pele: poesia reunida”, de Adão Ventura, pelo Círculo de Poemas, da Editora Fósforo, é um ato extraordinário no cenário da poesia brasileira e significa o acesso pleno à negritude poética de um escritor que concilia, com habilidade, sua consciência racial a manejos sempre ousados e inusitados com a linguagem. O lançamento da poesia reunida do afro-mineiro Adão Ventura tem uma importância incomensurável para o panorama da literatura brasileira uma vez que registra e partilha esse projeto poético negro-brasileiro até então desconhecido em sua totalidade e diversidade.

Leia: Curso e reedição celebram a poesia de Adão Ventura

Assim, ao concentrar as obras de Adão Ventura (1939-2004) em único volume, além de contextualizar uma produção em potencial, o Círculo de Poemas também encerra ciclo de baixa circulação editorial e teórica que envolvia a obra do poeta, possibilitando, assim, a nutrição e a consolidação de uma comunidade leitora mais atenciosa e mais diversificada.

É de salientar a magnitude da reunião da poesia do autor de Santo Antônio do Itambé, a saber, os livros “Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul” (1970), “As musculaturas do arco do triunfo” (1975), “A cor da pele” (1980), “Jequitinhonha: poemas do Vale” (1980/1997), “Texturaafro” (1992), “Litanias de cão” (2002) e “Costura de nuvens” (2006).

Organizado por Fabrício Marques, com texto de orelha assinado por Jaime Prado Gouvêa e com ensaio de Silviano Santiago no anexo, o volume inédito disponibiliza ainda uma seleção de poemas dispersos publicados em revistas, antologias, periódicos e suplementos literários que ampliam ainda mais a experiência da leitura e certificam o compromisso de Adão Ventura com um programa de escrita de poesia.

Diante da leitura do poema em prosa de Adão, marcado nos projetos de estreia “Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul” (1970) e “As musculaturas do arco do triunfo” (1975), leitoras e leitores perceberão as intensas voltagens de conotação oriundas, de alguma maneira, dos estilos e das estéticas das poéticas de vanguarda, como demonstra o poema “águas de testamento II”:


“[...]. também fomos escravos de ga-/leras, redutos de agudas fomes; eu vento – rumo de mim/ mesmo, eu-habitante dessa máquina de construir sombras, [...].”


Nessas obras experimentais registradas por Adão durante a década de 1970, período de recrudescimento do regime civil-militar, existem, de algum modo, intenções críticas afrodiaspóricas, como sugere, também, o poema “dos porcos e algumas de suas obsessões":

“eles adoram comidas finas. seus pratos são feitos de/ ouro, ouro maciço, puro, suas salas são finamente/ atapetadas e amplas como as de um castelo. [..]”


Na sequência da leitura da poesia reunida de Adão Ventura, em um outro momento surgem os poemas explicitamente racializados, em que a poesia, concisa e objetiva, é lugar de expressão de uma dicção mais combativa da negritude, como poderá ser constatado a partir de 1980, por meio do livro “A cor da pele”.

Na ocasião, prefaciado por Rui Mourão e Fábio Lucas, “A cor da pele”, obra precursora e de edição independente, está em interlocução de alguma maneira com outras vozes da poesia negra brasileira, como as de Arnaldo Xavier, Cuti, Edmilson Pereira, Éle Semog, Geni Guimarães, Jussara Santos, Ivan Cupertino, Mirian Alves, Oliveira Silveira, Oswaldo Camargo, Paulo Colina, Ricardo Aleixo. 

Esse livro seminal e precursor de Adão apresenta quatro seções intensas: “Das Biografias”, “Da Servidão e Chumbo”, “Raízes” e “Livro último”, e que abarcam poemas viscerais como “Eu, pássaro-preto”:

“eu,

pássaro-preto,

cicatrizo

queimaduras de ferro em brasa

fecho corpo de escravo fugido

e

monto guarda

na porta dos quilombos”.

No estudo “Constelações do poeta negro: imagens de Adão Ventura no arquivo literário”, o pesquisador Gustavo Tanus de Souza compartilha uma interpretação que comungo acerca do “A cor da pele”: que esse livro reúne diversas contranarrativas e contradiscursos sobre a pele negra, sobre os seus indivíduos, suas histórias, suas condições e seus corpos. O poema “Negro forro” colabora com essa possibilidade de leitura: 

“minha carta de alforria/ não me deu fazendas,/ nem dinheiro no banco,/ nem bigodes retorcidos.// minha carta de alforria/ costurou meus passos/ aos corredores da noite/ de minha pele.”.

Essa perspectiva prossegue no livro “Texturaafro”, publicado em 1992. Dividido cirurgicamente em quatro partes, comporta composições intrigantes em todas elas, como o poema que inaugura a obra, intitulado “Origem”:

“Vestir a camisa/ de um poeta negro/ - espetar seu coração/ com uma fina/ ponta de faca/ - dessas antigas,/ marca Curvelo, em aço sem corte,/ feito para a morte./ E acomodar/ no exíguo espaço/ de uma bainha/ sua dor-senzala.”

A publicação desta poesia reunida possibilita ainda a oportunidade de leitura de outras produções em que o poeta mineiro mobiliza diferentes conteúdos e instrumentos, e que confirmam a diversidade, seja está formal ou temática, como eixo deste empreendimento negro-poético de Adão Ventura. 

Como exemplo, em “Jequitinhonha: poemas do vale (1992/1997)”, o poeta, além de rever suas origens após seu êxodo para a capital mineira, também se inclina em problemáticas, paradoxos e nas tradições culturais da sua região. Realizando um percurso lírico e antropológico, Adão apresenta poemas motivados pela religiosidade, como a Festa do Rosário na cidade de Serro ou a Festa de Agosto em Virgem da Lapa, sobre a qual o autor assina um poema homônimo; “Virgem da Lapa (milagres – romarias)”:

“Em Virgem da Lapa

deposito

o meu peso de ter nascido

nesse mundo torto.”


Em “Litanias de cão”, lançado em 2002, Adão Ventura estica ainda mais seu campo temático e crítico apresentando outras complexidades, como aponta o poema “Visita de Desmond Tutu ao Brasil”:

“ele vem de um país sombrio

onde a palavra DIREITO

é um mero espaço

entre um tiro e outro.

[…]”


O livro “Litanias de cão” é, em certo ponto, a fatura da experiência de Adão Ventura no Distrito Federal à frente da Fundação Palmares. Nesta obra, os poemas da seção “Brasília: ou reflexões sobre o poder” são manejos em que Adão pôde tratar de outros tópicos bastante sensíveis e polêmicos como a usura, as violências urbanas, as submissões, as desigualdades, as lutas de classes e as desonestidades do funcionalismo público, como indica o poema “Corrupção”;

primeiro

o câncer começa a roer

o nó da gravata.

Depois

os óculos

depois

os ossos.


Já na leitura do “Costura de nuvens”, livro póstumo, publicado em 2006, obra interrompida pelo falecimento em 2004, novamente a potência do projeto de Adão em tensionar provocação e invenção será demonstrada. Destaque para os poemas “Recenseamento”, “Zumbi”, “Festa na fazenda”, “Clima”, “Preconceito”, “Recusa” e “Nesta mão”:


“[...]Indico apenas as correntes que

possuo no nó do sangue,

herança corrosiva de comarcas

de muitas eras.

- O meu mundo é limitado por

selos, números e ossos.”


De algum modo o lançamento desta poesia reunida aponta ainda para uma biografia em que constam atividades como redator do Suplemento Literário de Minas Gerais, coordenador do Núcleo de Cultura Afro-brasileira na Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, egresso do curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, vencedor do Prêmio Belo Horizonte de Literatura e, ainda, participação no Congresso Internacional de Escritores promovido pela Universidade de Iowa e ministração de aulas de Literatura Brasileira Contemporânea na Universidade do Novo México – ambas nos Estados Unidos.

Coube a nossa geração e às posteriores presenciarmos e recepcionarmos a realização deste ato extraordinário no panorama da literatura brasileira. A publicação da poesia reunida de Adão Ventura surge para manter em relevo as potencialidades de um poeta que experimentou, com arrojo, as possibilidades de expressão da negritude nas estruturas da linguagem poética.

MATHEUS JOSÉ DOS SANTOS é discente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisa a poesia negra-brasileira. Trabalhou no inventário arquivístico da coleção de Adão Ventura como bolsista do Acervo dos Escritores Mineiros FALE/UFMG. Coordena a oficina de “Imersão a cor da pele: poética e acervo de Adão Ventura”. Realizou estágio Fundep no Literafro/UFMG. Autor de “Poema ou pomar em meio ao caos” (Editora Primata).

“A cor da pele: poesia reunida”

De Adão Ventura 

Organização e posfácio de Fabrício Marques

Círculo de Poemas/Editora Fósforo

320 páginas

R$ 94,90 (e-book: R$ 75,90)

Lançamento na próxima terça-feira (11/11) na Academia Mineira de Letras (AML) em mesa com Sônia Queiroz, Maria Nazareth Fonseca e o organizador, Fabrício Marques. Mediação de Rogério Faria Tavares. 

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