Sérgio Rodrigues: 'É preciso mostrar ao robô quem manda'
Autor de 'Escrever é humano', com lançamento em BH na próxima terça-feira, alia fluência e perspicácia para narrar os desafios da escrita literária em tempos
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Siga noUma palavra depois da outra. Entre elas ou a cada ponto final, o prazer da leitura e a “alegria da escrita”, expressão da poeta polonesa Wislawa Szymborska citada na epígrafe. É o que propõe Sérgio Rodrigues em “Escrever é humano” (Companhia das Letras), inicialmente um livro sobre a escrita literária – mas que ganhou outra dimensão com o avanço avassalador da inteligência artificial. E eu, escritor, como fico diante da IA? Eis, spoiler!, a resposta: autor de romances premiados como “O drible” e conhecedor como poucos da língua portuguesa, Rodrigues garante que a criação na literatura pode se transformar. Mas irá sobreviver.
“O erro, a imperfeição, a incerteza, o risco, o salto no escuro, o ato falho, o acaso feliz, a intuição, tudo isso são elementos indispensáveis da escrita artística que um robô, com seu simulacro de linguagem, não tem como alcançar. Não teria como alcançar nem em sonho, e ele nem sequer sonha.’’
Sérgio Rodrigues, autor de “Escrever é humano”, com lançamento na proxima terça-feira em belo horizonte
“Pode ser que nosso nicho, que já não era nenhum latifúndio, se torne cada vez mais estreito. Uma comunidade excêntrica que teima em fazer com as próprias mãos um trabalho terceirizado às máquinas por quase todos; seita de cultivadores e consumidores de produtos orgânicos num mundo maciçamente industrializado. Tem tudo para continuar a ser divertido, talvez até mais do que nunca. A literatura sempre teve vocação para a dissidência”, afirma o autor, mineiro de Muriaé e radicado no Rio de Janeiro, no prefácio de “Escrever é humano”, que terá lançamento em Belo Horizonte na próxima terça-feira, no projeto República Jenipapo. “Para lidar com o processamento de informação, o robô é um espanto. Mas literatura é o contrário de informação”, complementa ao Estado de Minas.
Quem procurar “Escrever é humano” para refletir sobre o avanço da IA vai ganhar dezenas de páginas não apenas sobre os impulsos e processos da criação literária mas também sobre o prazer – intransferível, atemporal, único – da leitura. “Este é, em primeiro lugar, um livro para todo mundo que tem paixão por ler romances e contos e, mesmo pouco ou nada interessado em escrever suas próprias histórias, sente curiosidade pelas engrenagens que põem em movimento a imaginação leitora, coautora de toda a literatura jamais escrita”, avisa Rodrigues, ainda no prefácio de um livro que alia fluência e perspicácia, erudição sem pedantismo.
I - Perguntas elaboradas pelo autor da entrevista
Qual o ponto de partida de “Escrever é humano” e como a IA impactou o processo de criação e a estruturação do livro?
Escrever foi a única coisa que aprendi a fazer de verdade na vida, e não falta quem queira aprender, então acredito ter sido esse o pontapé inicial. Desde os tempos do meu blog Todoprosa (todoprosa.com.br, arquivo ainda no ar), que renovei de 2006 a 2016, eu vinha tratando de questões de escrita. Era um blog sobre escritores e para escritores com pauta variada, de resenhas a notícias do mundo editorial, e volta e meia surgiam ali discussões de bastidores sobre a arte de escrever, sobretudo literatura. Tenho uma queda pela metalinguagem, até na minha ficção, e sempre quis sistematizar aqueles pensamentos num guia para iniciantes. Só que eu vinha fazendo isso sem pressa nenhuma até surgir o ChatGPT, na virada de 2022 para 2023. Foi um susto ver a IA generativa entrar em cena bombasticamente, com sua capacidade de escrever melhor do que a imensa maioria dos humanos – o que, convém ressaltar, não significa escrever bem, e sim escrever algo que dá para o gasto na maior parte das situações do dia a dia. Aquela prodigiosa máquina de clichês trouxe um sentido de urgência para o livro, mas mais do que isso, me fez enxergar com clareza o que eu vinha tateando para enunciar como cerne do texto literário: o anticlichê, o oposto de todos os automatismos de linguagem, aquilo que a gente descobre enquanto escreve.
“Por um lado, a questão que se coloca é fácil: qualquer pessoa que tenha uma relação amorosa com a literatura sabe, sem mesmo saber como sabe, que a IA aqui não entra. É algo intuitivo, indiscutível, uma espécie de dogma (...). Fazer literatura, arte com palavras, significa escrever devagar, à moda humana – uma palavra, um espaço, outra palavra, outro espaço, uma dúvida a cada encruzilhada.”
Trecho de “Escrever é humano”, de Sérgio Rodrigues
O título do livro faz alusão à máxima “Errar é humano”. O erro, e o que fazemos com ele, é um dos diferenciais da escrita humana para a dos robôs? O que é possível aprender com os erros? O que você já aprendeu?
O erro, a imperfeição, a incerteza, o risco, o salto no escuro, o ato falho, o acaso feliz, a intuição, tudo isso são elementos indispensáveis da escrita artística que um robô, com seu simulacro de linguagem, não tem como alcançar. Não teria como alcançar nem em sonho, e ele nem sequer sonha. Vale acrescentar aí também o verbo errar no sentido de andar sem rumo certo, ou seja, escrever sem saber exatamente aonde se quer chegar, com a racionalidade em volume baixo, deixando que o espírito coletivo da linguagem fale por nós. No caso da escrita de literatura, posso dizer sem medo de errar que o que eu aprendi com os erros foi basicamente tudo. Encontrar um caminho próprio nas letras é, ou pelo menos foi para mim, um longo processo de tentativa e erro.
O início do capítulo 3, “Uma voz no mundo”, traz uma pergunta: Como descobrir a sua voz literária? O que é preciso saber para tentar encontrar esta resposta?
Não existem fórmulas na literatura, como aliás em arte alguma. Há mesmo casos de escritores e escritoras que encontram muito cedo uma voz própria, como se já tivessem nascido prontos. Minha experiência foi bem diferente, como acredito que seja para a maioria das pessoas, e no livro eu falo de como foi destilar uma voz não genérica depois de leituras muito variadas, muita experimentação, muita imitação de estilos preferidos etc. No fim das contas, trata-se de uma jornada de autoconhecimento textual, de descoberta de quais são seus pontos mais fortes e mais fracos, seguida da criação de um projeto artístico em que os primeiros sejam realçados e os últimos, minimizados. Isso pode ser feito de forma mais ou menos consciente, é claro, e até mesmo sem pensar. Mas a aposta do livro é que sempre vale a pena refletir sobre esses processos.
Acredita que “Escrever é humano” pode ser lido não apenas como uma aventura pela escrita, mas sobre a experiência da leitura?
Sem dúvida. A escrita tem raízes profundamente fincadas na leitura, ninguém vai conseguir escrever nada muito significativo se não for primeiro um bom leitor. Como toda obra literária só se realiza ao ser lida, no momento exato em que a imaginação de quem escreveu encontra a imaginação de quem lê, o personagem do leitor – ou da leitora, para fazer justiça à maioria feminina que sustenta a leitura de ficção no Brasil e no mundo – está muito presente no livro. Assim como ler é um verbo mais feliz e desencanado do que escrever, acho que “Escrever é humano” tem tudo para ser apreciado com um prazer até mais puro, não contaminado por aflição alguma, por quem se interessar em esmiuçar as engrenagens que movem a ficção de um ponto de vista exclusivamente leitor.
Você menciona, no livro, que o Brasil formou, ao longo dos anos, multidões de não-leitores convictos. Como foram formadas estas multidões? Elas serão impactadas pela IA?
A formação de nossas multidões de não-leitores convictos, e muitas vezes até agressivos, começa com um anti-intelectualismo atávico e passa por uma série de equívocos curriculares no uso de literatura em sala de aula, como o de obrigar adolescentes cheios de hormônios e precariamente letrados a ler autores românticos que não poderiam estar mais distantes do seu mundo. Por que começar por aí? É uma completa dissociação das ideias de leitura e prazer. Temo que a IA caia nesse terreno já árido como uma bomba atômica, porque agora é oficial: ninguém vai precisar ler ou escrever mais nada se não quiser.
Você defende, no livro, que um escritor tenha a sua própria “cesta básica” de autores prediletos. Quais deles entraram na cesta de “Escrever é humano”? E quais estão permanentemente em sua cesta de ficcionista?
Isso é algo natural, que todo leitor e toda leitora acabam desenvolvendo, o equivalente a encontrar sua turma no mundo social. No caso desse livro, como sempre faço, acabei por montar uma pequena biblioteca sobre o tema. Entre esses títulos eu destacaria o delicioso “Correio literário” (Âyiné), da grande poeta polonesa Wislsawa Szymborska, com seus conselhos cruéis e muito engraçados, mas sempre iluminadores, aos escritores aspirantes que lhe escreviam em busca de orientação. Na minha cesta de ficcionista, como influências, cabe gente à beça. Tem os mais evidentes, como Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Jorge Luis Borges. Os que foram fundamentais, mas deixados para trás com afinco, como Rubem Fonseca, e os menos óbvios, como Raymond Chandler, Patricia Highsmith e muita gente.
Por que a escrita literária é o paradigma daquela em que a IA não vai entrar?
Porque é a única forma de escrita em que a linguagem não é um meio para a obtenção de um fim exterior a ela, como comunicar, relatar, argumentar, resumir, requerer, denunciar, expor, argumentar, peticionar, inventariar etc. Na escrita literária, a linguagem é o meio e também o fim, tudo o que se passa na página se passa dentro de seu âmbito. Isso requer um mergulho vertical no mundo das palavras que é o exato oposto da superficialidade horizontal em que a IA nos humilha, com sua imitação instantânea e cada vez mais competente da linguagem humana. Para lidar com o processamento de informação, o robô é um espanto. Mas literatura é o contrário de informação.
II- Perguntas geradas por IA
(prompt: elabore questões a um escritor a respeito do livro lançado por ele sobre a escrita literária em tempo de robôs)
Você acredita que a escrita literária pode se beneficiar da colaboração entre humanos e robôs? De que forma?
Acredito que não. Escrever literatura é pôr uma palavra depois da outra, fazer mil escolhas por linha e assumir a responsabilidade por todas elas – responsabilidade ética, política, estética. Não vejo como possa ser de outro jeito. O robô pode nos ajudar a pesquisar, a resumir, a realizar uma série de tarefas mais braçais, mas não a escrever. A escrita literária não me parece terceirizável em absoluto. Mas deixo a ressalva de que, não sendo um nativo digital, posso estar redondamente enganado. De todo modo, sei que vou continuar a escrever minhas próprias palavras. Meu interesse por uma parceria literária homem-máquina se situa abaixo de zero.
Que conselhos você daria para jovens escritores que estão começando sua jornada num cenário com cada vez mais tecnologia?
Aprendam a escrever por sua própria conta, quer dizer, de modo orgânico, analógico ou que nome se dê àquela habilidade que foi exclusiva da humanidade por muitos milênios, até mais ou menos anteontem. Mesmo que se decida encarar a IA como uma ferramenta incrível para auxiliar escritores, vai ser preciso chegar a essa conversa já dominando as manhas da arte. Para que o robô seja uma ferramenta, será preciso mostrar quem manda, ou então ele é que mandará.
III - Pergunta elaborada pelo autor da entrevista em nome da IA
Você tem medo de mim?
Pessoalmente, nenhum. Eu sei fazer um monte de coisas que você não sabe, por que teria medo? Por outro lado, tenho muito medo daquilo que você pode fazer com a minha espécie, do seu potencial incalculável de desumanização e alienação. De uma forma ou de outra, acho que estamos condenados a ficar de olho um no outro, não é?
Depoimentos
A professora e editora Ana Elisa Ribeiro e as tradutoras Mariana Sanchez e Silvia Massimini Felix analisam o impacto da inteligência artificial no contexto da produção editorial
“É fundamental criar regulações e pensar na humanidade”
ANA ELISA RIBEIRO, professora titular do CEFET-MG e editora
“O que se sabe sobre as práticas com IA, em especial a gerativa, na região, considerando a América Latina, é que ela ainda é incipiente em contexto editorial, embora a maioria dos profissionais considere que ela veio para ficar. Entre a aceitação animada e o rechaço radical, há uma gradação de modos de admiti-la em contexto de trabalho, e isso depende também da função que a pessoa exerce, isto é, em que etapa do fluxo de edição se trabalha. Tradutores e ilustradores se mostram, em geral, mais preocupados, isto é, profissionais da etapa criativa, enquanto trabalhadores da gestão percebem efeitos melhores. Sem dúvida, a maior questão está ligada aos direitos de autor, tanto para escritores quanto para ilustradores e tradutores. Na sequência, há muitos problemas relacionados ao trabalho, à precarização e à concentração de tecnologias nas mãos de poucos. Percebe-se que isso já esteja em curso e que a IA possa aprofundar tais desigualdades. É fundamental criar regulações e estar atentos às boas práticas e à ética, isto é, pensar na humanidade.”
“Um caminho sem volta, desafiador e preocupante”
Silvia Massimini Felix, Tradutora
“Como tradutora, venho acompanhado com atenção, e um pouco de apreensão, o avanço da inteligência artificial na produção de textos. Os tradutores automáticos de nova geração, que utilizam inteligência artificial, estão transformando profundamente a forma como se produz e se consome conteúdo. Se, por um lado, o uso de IA no mercado editorial reduz custos e acelera processos, por outro levanta questões cruciais sobre qualidade, autoria e sensibilidade cultural.
A tradução literária, por exemplo, exige muito mais do que equivalência lexical. É preciso entender nuances, o estilo do autor, suas referências culturais — algo que até agora, acredito, nenhuma IA consegue fazer com a sensibilidade de um ser humano. No entanto, o que já se vê acontecer é o uso da inteligência artificial para fazer uma prévia da tradução que depois será “pós-editada” por outros profissionais (preparadores de texto e revisores). Isso muda o papel do tradutor: de criador de texto passa a ser revisor de uma máquina, e essa desvalorização e precarização do trabalho humano, a meu ver, é preocupante.
Acredito, no entanto, que a inteligência artificial — cada vez mais avançada — é um caminho sem volta. Seria ingênuo pensar que ela não alcançaria o mercado editorial. O desafio agora é encontrar formas de trabalhar com essa ferramenta sem abrir mão de uma tradução autoral.”
“O texto final continuará exigindo soluções tradutórias criativas e autorais”
Mariana Sanchez, Jornalista e tradutora
“A tradução literária, como qualquer atividade criativa, envolve escolhas sensíveis e autorais que, a meu ver, não podem ser tomadas por uma ferramenta generativa que apenas reproduz padrões algorítmicos. Porém, essa ferramenta vem sendo treinada por nós mesmos, e é inevitável que seus resultados melhorem no curto prazo, em especial para textos técnicos, com menor trabalho de linguagem e de ambiguidade semântica. Não vejo problema que no futuro tradutores(as) se tornem responsáveis apenas pela pós-edição de um texto traduzido por IA, desde que essa tarefa seja muito bem remunerada e garanta sua assinatura, pois este texto final continuará exigindo soluções tradutórias criativas e autorais. Pela minha experiência, acho que essa mudança editorial deve demorar, pelo menos no par linguístico português-espanhol, em que as ambivalências ainda geram confusões e erros pra lá de grosseiros. No mais, a literatura que interessa é a que força a língua, que transborda, que segue pelo desvio. Não creio que máquinas possam dar conta satisfatoriamente destas singularidades.”