Fabrício Corsaletti lança 'Um milhão de ruas' em Belo Horizonte
Nova coletânea reúne crônicas, aforismos e poemas do autor premiado com o Jabuti, que transforma o cotidiano em narrativa literária
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Siga noNa apresentação de “Um milhão de ruas”, Veronica Stigger afirma que ainda está para ser criado o que não fascine o autor do livro, Fabrício Corsaletti. “Ele se deixa encantar pelos objetos e motivos mais variados: cavalos, música, uma casa colonial perdida no meio do campo, os anjos do Aleijadinho, todos os bares do planeta etc. E, aos seus olhos, um simples passeio se transforma numa aventura”, destaca a escritora.
“Um milhão de ruas” (Editora 34), que tem lançamento neste sábado em Belo Horizonte, reúne dois livros de crônicas publicados anteriormente pelo escritor, “Ela me dá capim e eu zurro” (2014) e “Perambule” (2018), e o inédito “Bar Mastroianni”. Os textos reunidos comprovam a afirmação de Stigger: como faziam os grandes cronistas brasileiros do século 20, Fabrício Corsaletti procura – e encontra – inspiração no cotidiano e avista, no (quase) prosaico, pontos de partida para narrativas divertidas, surpreendentes, inesperadas, encantadoras. E os achados se multiplicam em calçadas, caminhadas, aventuras pelo centro das grandes cidades ou na mais banal das situações, como numa tarde “num botequim andrajoso, bebendo cerveja e maldizendo a vida, na luz selvagem de um país que se destrói”.
Nascido na cidade paulista de Santo Anastácio, Corsaletti tem mais de uma dezena de livros publicados e, com “Engenheiro fantasma”, ganhou o prêmio Jabuti 2023 nas categorias Poesia e Livro do Ano. Além das crônicas, as formas breves reunidas em “Um milhão de ruas”incluem aforismos (“A única diferença entre um assassino e as outras pessoas é o assassinato”) e versos livres de métrica e plenos de alumbramentos. Pois, como afirma o próprio autor na apresentação de “Um milhão de ruas”, “onde há desejo há linguagem e onde há linguagem as coisas não têm fim.”
Leia, a seguir, a entrevista de Fabrício Corsaletti ao Pensar do Estado de Minas.
Por que considera escrever parecido com andar, como afirma na introdução do livro? Porque, enquanto você caminha, descobre a cidade. Vê coisas que nem imaginava que existiam. Escrever tem a ver com isso. Você só descobre o que queria escrever à medida em que o texto vai sendo escrito.
Por que você considera, na nota de abertura do livro, as ruas como a única saída? Para você, sem a rua não tem crônica? Tem um certo posicionamento político nessa afirmação. Eu não engulo essa história de que a internet substituiu a rua. Eu gosto do mundo real. Só acredito que conheci, digamos, uma praça depois de ir até lá e passar um tempo em cima dela. Foto e vídeo são ótimos, mas não bastam. E também tem a ver, é claro, com uma corrente da crônica brasileira, desde João do Rio, que valoriza a relação do cronista com a rua, com o mundo fora do gabinete etc.
Em uma das crônicas, há uma discussão sobre o maior verso da música brasileira. E, para você, qual a maior crônica da literatura brasileira? Qualquer uma das melhores crônicas do Rubem Braga. Para dar 3 exemplos: “Lembrança de um braço direito”, “Os amigos na praia”, “O rei secreto de França”.
São Paulo e Buenos Aires são cenário de algumas das crônicas. O que mais te chama atenção em cada uma das cidades? O que pertence somente a elas? Em São Paulo, gosto dos amigos, tenho muitos amigos, e da agitação mental que a cidade me provoca. É bom pra escrever. Me sinto mais ligado, mais inteligente. Fora de São Paulo, e de vez em quando é bom sair de São Paulo e descansar, sinto que a minha energia criativa fica mais lenta. Não sei explicar. Espero que dê pra entender. Buenos Aires é uma cidade deliciosa. Cheia de livrarias, bares e cafés muito lindos, carne boa a bom preço e vinhos baratos e ótimos. Sem falar que é plana, com calçadas bem cuidadas, inacreditáveis. Você pode andar 15 kms olhando pro topo dos prédios e não tropeçar nenhuma vez. É minha cidade preferida. Ainda pretendo passar uns anos lá.
Há, no livro, algumas referências a Minas. Quais os cronistas mineiros que mais o marcaram? Acima de todos, Paulo Mendes Campos, lírico e trágico. Do Fernando Sabino, admiro a prosa límpida e precisa. Sei que é sacrilégio dizer isso, mas acho o Drummond cronista meio tedioso. Não me convence. Ainda mais se penso na poesia genial que ele escreveu. Otto Lara é muito bom.
“Crônica é a melhor coisa que o Brasil produziu”. Concorda com a afirmação que aparece em “Procurando sombras”? Qual foi a era de ouro da crônica no país? Quem diz isso é um personagem. Concordo mais ou menos. É uma das coisas boas do Brasil, entre outras. A música popular me parece a grande criação brasileira. A poesia é espetacular também. A Era de Ouro vai do fim da Segunda Guerra até o começo dos anos 1970, mais ou menos.
Veronica Stigger, na apresentação do livro, revela ter a impressão que tudo o fascina e o encanta a ponto de o inspirar a escrever. Mas tem algo, alguma situação ou alguém que não rende crônica? Nas mãos de um Rubem Braga (mas Rubem Braga só tem um), tudo pode virar uma boa crônica. Nas minhas, só o que é extraordinário, o que foge à rotina, ao banal. Só sei escrever sobre o que me impressiona, nem que seja minimamente.
Já encontrou assunto para alguma crônica nas ruas de BH? Pra crônica não, mas pra poema sim. Fui duas vezes a BH, fiquei poucos dias. Nas duas vezes comi fígado com jiló no Mercado Central. Adorei. Comeria todo sábado de manhã, se pudesse. Anos depois escrevi um poema sobre mercados. Algumas estrofes. Uma estrofe pra cada mercado. Uma delas é sobre o Mercado Central.
“UM MILHÃO DE RUAS”
De Fabrício Corsaletti
Editora 34
416 páginas
R$ 92
Lançamento em Belo Horizonte neste sábado (27/9), às 11h, em bate-papo do autor com Daniel Arelli. Quixote Livraria (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi)
UMA CRÔNICA DE CORSALETTI
“O álcool tinha acabado de entrar na minha vida, a poesia não”
Em Santo Anastácio, nos anos 1990, houve dois Halloweens. No primeiro eu tinha catorze anos, no segundo quinze. Nas duas vezes o Gustavo e eu fizemos a mesma coisa: num boteco em frente à estação de trem, compramos uma garrafa de vinho Natal pra cada e fomos andando e bebendo pela avenida principal até o clube próximo ao trevo onde aconteceria a festa. O trajeto dava uns quatro quilômetros. Passavam carros de amigos e ofereciam carona, mas a gente recusava, dava mais uma golada no vinho doce e seguia em frente. Àquela hora da noite a cidade parecia outra — mistério nas fachadas conhecidas. o álcool tinha acabado de entrar na minha vida. A poesia ainda não. Eu ouvia Ramones e às vezes, nos terrenos baldios, alguma menina me chupava o pescoço. Não lembro o que eu conversava com o Gustavo. Qualquer besteira sobre o que aconteceria na madrugada, quando todo mundo estivesse louco. então as garrafas ficavam vazias e a gente não conseguia mais falar. E de repente, flutuando no meio do pasto, surgia o galpão de luzes coloridas, de onde saía uma música vagamente idiota. eu olhava pra cima — estrelas borradas e lua universal. Um cara mais velho se aproximava e perguntava se a gente precisava de ajuda. O Gustavo vomitava e, por solidariedade, eu vomitava também. Um outro cara nos levava embora. A mesmíssima cena dois anos consecutivos. Depois pararam de fazer Halloweens. O Gustavo virou boiadeiro. Eu me tranquei no quarto dos fundos pra ler Bandeira e Drummond. Os poetas modernos. As grandes cidades. Um dia meu tio Mário passou em casa às quatro da manhã com a caminhonete abarrotada e me levou pra São Paulo.
TRECHOS
“Quanto a mercados”
(poema inédito)
o de Belo Horizonte
seu fígado com jiló
comido em pé
acompanhado de cerveja
cachaça e jornal mineiro
às onze da manhã
o de Pinheiros
antes e depois da reforma
seu vigor de ginásio de esportes
sardinha da Rainha
baião do Mocotó
carne-seca embalada a vácuo
e bananinhas-passas
na loja do andar de baixo —
o largo da Batata
lembra a cidade do México
o de Lima
muito parecido
com a parte pobre
do de Santiago
boxes de azulejo branco
sopas servidas
em cumbucas de plástico
cabeças de porco
e galinhas
penduradas em ganchos
o de Montevidéu
suas parrillas-fornalhas
medievais
te fazem moleiro
pedindo mollejas
entre o mar gelado
e a Cidade Velha
dos marinheiros cegos
*
“Certos anjos do Aleijadinho”
(Do livro “Um milhão de ruas”)
Certos anjos do Aleijadinho lembram velhos banqueiros bêbados, libidinosos e glutões, com suas bochechas e papadas absurdas. Neles porém não há cinismo. Pelo contrário, parecem aliviados por terem sido salvos de si mesmos pelo artista generoso. São todos gratos a ele. E um pelo menos é feliz.
*
“Poema do tapete”
(Do livro “Um milhão de ruas”)
Não sei por quê, mas sou fascinado por tapetes. Desses grandes de botar na sala, persas ou falsamente persas, com motivos intrincados que a gente nunca decifra. Rosáceas propagando galhos retorcidos de flores que se transformam em arcos que quase encostam em faixas com riscos de fósforos e focinhos de felinos. Quando era criança eu me irritava com a repetição dos padrões. Eles são de fato hipnóticos, e se apoderam da visão como a música que entra no ouvido à nossa revelia. Mas agora eu não ligo de perder o controle. Fico um bom tempo olhando os tapetes que encontro por aí. Não tenho tapete em casa. sou alérgico a poeira e preguiçoso pra usar o aspirador. Vou ao aniversário de Maria e, enquanto se fala de política e artes plásticas, abaixo os olhos e me deixo levar pelas cores e formas do seu tapete. Uma vez passei horas conversando com uma editora de livros em pé em cima de um tapete com bordas que pareciam ripas de madeira entalhadas (janela nova, penteadeira antiga) envolvendo um círculo felpudo de lã azul-turquesa — flocos pretos cintilantes. Foi como pisar no mapa de outro mundo. Agora lembrei do tapete de Lebowski, o protagonista do filme dos irmãos Coen. the dude. ele o usava como se fosse uma rede Deitava no seu rug estendido no centro da sala, acendia um baseado e imaginava uma vida melhor: voando pelo céu sem heroísmo, ouvindo Dylan entre as estrelas. Conheço uma pessoa que reformou o apartamento inteiro, trocou todos os móveis, quadros, talheres e roupas de cama; manteve apenas um velho tapete vermelho desbotado, que estava com ela desde sempre. Um tapete de confiança. Um tapete sentimental. Se eu fosse um sultão das ‘Mil e uma noites’, ia querer só duas coisas: cavalos e tapetes. Cavalos árabes, os mais resistentes, de traços mais delicados — com um rabo que empina e tremula no ar como bandeira no momento em que o animal começa a galopar. E tapetes na areia, sob as tendas do deserto. Nem oca, nem castelo, nem cabana. Tapetes. Tapetes e toalhas, toalhas e cobertas — tecidos de linho puro. Contra a aspereza da realidade que esfola e sem a ilusão de se proteger do fim. alívio e vulnerabilidade. tapetes, olhos e cabelos. e corpos, que se entendem sem razão.
SOBRE O AUTOR
Nascido em 1978 em Santo Anastácio, no interior de São Paulo, Fabrício Corsaletti mora desde 1997 na capital paulista, onde se formou em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). Entre os mais de 20 livros publicados, destaca-se “Engenheiro fantasma”, vencedor do Jabuti de melhor livro de poesia e livro do ano em 2023. O autor estará neste sábado em Belo Horizonte para o lançamento, na Livraria Quixote, de sua mais recente publicação: “Um milhão de ruas”, coletânea de crônicas e outros textos, lançada pela Editora 34.