O significado de Paulo Henriques Britto na AML
Em artigo, Rafael Fava Belúzio destaca 'a liturgia material da linguagem' na obra do poeta, tradutor e novo integrante da Academia Brasileira de Letras
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Siga noA liturgia material da linguagem
Rafael Fava Belúzio
A posse de Paulo Henriques Britto na Academia Brasileira de Letras representa a celebração da obra de um dos poetas com maior virtuosismo técnico da literatura brasileira contemporânea, autor capaz de articular visão de mundo bastante alinhada à materialidade sonora.
Graduado e mestre na área de Letras pela PUC-Rio, o carioca de 73 anos é professor na instituição, onde também realiza pesquisa e assume diversas funções, muitas delas ligadas a campos de criação literária e tradução de poesia. Já verteu mais de 100 livros de língua inglesa para a portuguesa, traduziu para o inglês escritores brasileiros e elaborou autotraduções. Publicou também um volume infantojuvenil, dois de contos e três de ensaios. Entre estes, o celebrado “A tradução literária”, estudo que reafirma preocupações com o corpo sonoro das palavras.
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O reconhecimento da literatura do novo imortal da ABL, aliás, possui especial atenção no terreno da poesia. Fragmentada e, ao mesmo tempo, mantendo dicção própria, a (anti)lírica de Britto se adensa ao longo das publicações. É uma poética que merece ser lida livro a livro, pois o avançar dos lançamentos realumia produções anteriores e ressalta a guinada que acontece a partir de “Trovar claro” (1997). Em Portugal, no ano de 2021, saiu a compilação “Por ora: poesia reunida (1982-2018)”. Entretanto, no Brasil, falta edição dessa ordem, ainda que seus tomos separados sejam encontrados em livrarias.
Desde a primeira obra, “Liturgia da matéria” (1982), o autor assume posturas materialistas e irreverentes. Isso se observa, mais adiante, em poemas como “O metafísico constipado”, de “Tarde” (2007), e “Horácio no baixo”, de “Formas do nada” (2012). Em “Nenhum mistério” (2018), o título na capa é por si só expressivo; nas páginas internas, consta “Da metafísica”, composição formada por duas quadras, feito o leitor estivesse diante de uma suposta primeira parte de um soneto:
Ser parte de alguém ou algo
tão grande que não se entenda:
toda crença, ao fim e ao cabo,
se resume a essa lenda –
o mais rematado dislate,
coisa jamais entendida,
que eleva ao sumo quilate
o caco mais reles de vida.
Rindo de cacos e lendas, a estética brittiana aos poucos ilumina seus contornos que antes não pareciam tão evidentes. Por exemplo, com o lançamento de “Fim de verão” (2022) e diante dos problemas ligados à pandemia de Covid-19, a ontologia do autor demonstra conter, mais do que nunca, certa política. Isso é forte em “Imunidade de rebanho”, presente em uma série de versos de circunstâncias:
A estupidez é sua própria recompensa.
Graças a ela, o mundo faz sentido,
um só, que é fácil de identificar.
E só o fácil satisfaz a quem não pensa.
Pensar é coisa trabalhosa. A ignorância
é o sumo bem dos cidadãos de bem,
é a verdadeira marca dos eleitos.
Ter sucesso é não ter que saber. Saber cansa,
e o objetivo central de qualquer existência
só pode ser não se cansar. Olhai
as vacas do campo: não lhes faz falta a ciência,
pastam em plena bem-aventurança,
sem que nenhuma antevisão do matadouro
perturbe a santa paz da ruminança.
Com humor, o soneto pensa questões políticas do Brasil no atrito entre o prosaico e o reflexivo, coadunando recursos como o enjambement e a métrica meditada que contrasta na página decassílabos e alexandrinos. Na materialidade da linguagem, ademais, os versos de circunstâncias se valem de uma seleção vocabular entre a fala do dia a dia e as releituras demasiadamente humanas de passagens bíblicas, obtendo graça ao tensionar o profano e o sagrado rebaixado.
Do livro “Macau” (2003), o poema a seguir permanece ressaltando sondagens linguísticas:
A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.
Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.
Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída – falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o “porquê”, o “sim”,
todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.
Seguindo irônico e desconfiado, em quatorze linhas (número emblemático da forma soneto) dispostas de maneira progressiva (havendo 2, 3, 4 e 5 versos nas estrofes), o eu textual está a falar e falar mais e mais. Britto, além disso, com frequência escolhe termos um tanto coloquiais para pensar a realidade, desenvolvendo olhar próximo do mundo material. Se no poeta, por vezes, há incertezas diante da capacidade humana, ainda assim as reflexões recorrem, titubeantes, à linguagem verbal. Mesmo com “humour” cético, são talvez as palavras que suportam o mundo.
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Na liturgia material da linguagem de Paulo Henriques Britto, a expressão poética é política na medida em que se distancia da noção de sublime e lida com as angústias humanas. Repleta de hesitações e metalinguagens, sua estética, não raro, trama variações de formas tradicionais, fraturando no contemporâneo legados da lírica. Nesse sentido, o rito de entrada do escritor na ABL reafirma e avança cânones da poesia.
RAFAEL FAVA BELÚZIO é graduado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com mestrado e doutorado em Estudos Literários também pela UFMG. Publicou o ensaio “Quatro clics em Paulo Leminski” e os poemas “Opus 3” e “Opus 10: ensaio desentranhado”.
Protagonista de sua época
Paulo Henriques Britto
Ao ocupar na semana passada a cadeira nº 30 da Academia Brasileira de Letras, que tem como patrono o jornalista e escritor gaúcho Pardal Mallet, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto lembrou de ocupantes anteriores como Aurélio Buarque de Holanda e Nélida Piñon, E destacou a relevância da trajetória acadêmica e literária de Heloisa Teixeira, que ficou conhecida como Heloisa Buarque de Hollanda. Leia abaixo o trecho do discurso de posse de Paulo Henriques com a homenagem a Heloisa.
(...) Ao longo de sua vida, Heloisa Buarque de Hollanda publicou várias obras importantes sobre literatura, feminismo e cultura alternativa, como “Macunaíma, da literatura ao cinema; Impressões de viagem: cultura e participação nos anos 60”; “Pós-modernismo e política”; e “O feminismo como crítica da cultura”. “Impressões de viagem”, publicado em 1980, foi a versão em livro da tese de doutorado defendida pela autora dois anos antes na UFRJ. Nessa obra Heloisa aborda o CPC, o Centro Popular de Cultura, movimento da maior importância que florescia quando ocorreu o golpe de 1964; a tropicália, surgida pouco antes da instauração do Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5; e a cultura dita marginal dos anos 70, sobre a qual voltaremos a falar adiante.
Mas Heloisa não foi apenas uma cronista e uma estudiosa deste riquíssimo e conturbado período da nossa história: foi também uma protagonista de sua época. Todos os leitores de “1968, o ano que não terminou”, do acadêmico Zuenir Ventura, se lembrarão do famoso réveillon de 1968, comemorado na casa “da professora Heloisa Buarque de Hollanda, bonita, culta e de esquerda”, que era, segundo Zuenir, “mito e ícone da intelectualidade carioca dos anos 60”, e seu então marido, o advogado e galerista Luiz Buarque de Hollanda (...).
Além de pesquisadora e pensadora, Heloisa foi também editora e organizadora de obras; criou a casa editorial Aeroplano nos anos 90; e em anos recentes organizou a coleção Pensamento Feminista em quatro volumes, publicada pela editora Bazar do Tempo, à qual ela estava associada em seus últimos anos.
Assim, Heloisa atuou em múltiplas capacidades: foi crítica literária, professora, ensaísta, antologista, editora e ativista, atuando como feminista e como estudiosa e incentivadora da produção de criadores que vivem mais ou menos à margem do sistema. Ao ingressar nesta Academia em abril de 2023, Heloisa trouxe para cá a Universidade das Quebradas, projeto inicialmente realizado na Faculdade de Letras da URFJ, com apoio do Instituto Odeon, tendo como objetivo formar escritores da periferia (...).
Para mim, pessoalmente, a faceta de Heloisa que mais importância teve foi seu trabalho de antologista. Ao longo de sua vida, ela organizou três coletâneas de poesia: “26 poetas hoje”, de 1976; “Esses poetas: uma antologia dos anos 90”, de 1998; e “As 29 poetas hoje”, de 2021. Todas essas antologias foram relevantes nos momentos em que foram lançadas. Mas a mais marcante das três foi a primeira, “26 poetas hoje”, uma obra que apresentou a um público mais amplo um punhado de poetas ditos marginais, muitos dos quais posteriormente teriam reconhecimento geral — dois deles, aliás, são agora meus colegas nesta Academia. A antologia se tornou uma espécie de divisor de águas na história da poesia brasileira. Eu gostaria de me estender mais um pouco a respeito dessa questão, que me toca de perto, como estudioso de poesia brasileira contemporânea.
Há muito tempo existe um consenso entre os estudiosos de literatura brasileira de que o nosso modernismo começa no ano de 1922. É claro que se pode apontar para algumas publicações anteriores que já antecipam o espírito modernista, mas 1922 é não só o ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo – o evento que chamou a atenção de boa parte do país para o que estava acontecendo na literatura e nas artes em geral – como também é a data da publicação de “Pauliceia desvairada”, de Mário de Andrade. Esse foi o primeiro livro importante de poesia moderna lançado no nosso país, utilizando em larga escala o verso livre e introduzindo tantas outras características formais da nova poesia, que de longa data vinham sendo empregadas no inglês, no francês e em outras línguas europeias, e que mesmo no nosso idioma já tinham sido introduzidas em Portugal, notadamente por Fernando Pessoa. Como marco do final do período modernista, é comum tomar-se o ano de 1945, embora alguns estudiosos falem numa “terceira fase do modernismo”; mas a meu ver o melhor nome para o período então iniciado talvez seja “pós-modernismo”.
Pois 1945 é o ano em que morre Mário de Andrade, o nome central do período modernista, e é o ano adotado por um grupo de poetas que reagem contra algumas características do modernismo para se autodenominar como geração, a “geração de 45”. Nessa mesma fase também vão surgir, em oposição à geração de 45 (na qual João Cabral, é claro, é uma exceção), alguns movimentos neovanguardistas que visam retomar a “linha evolutiva” modernista, o mais famoso e influente deles sendo o concretismo. A tropicália – a última das neovanguardas que marcaram isso que prefiro chamar de período pós-modernista, e que teve como uma de suas figuras centrais um outro membro atual desta Academia – a tropicália teve um aspecto diferencial que foi identificado e analisado por uma das maiores estudiosas do movimento, a antropóloga cultural Santuza Cambraia Naves. Ao contrário das outras neovanguardas, que tinham sempre um lado prescritivo e um lado proscritivo, a tropicália, segundo Santuza, caracterizava-se por defender uma postura inclusiva, cujo lema bem poderia ser “É proibido proibir”, nome de uma canção de Caetano Veloso.
Assim, por exemplo, os concretistas postulavam um poema que fosse basicamente visual, em que a mancha gráfica tivesse mais importância do que a realização sonora, e afirmavam a morte do verso. Já os adeptos de um outro movimento neovanguardista, a poesia-práxis, defendiam que o poeta deveria tratar acima de tudo das questões políticas do momento, e não só afirmavam a morte do verso como também atacavam, mais do que qualquer outra coisa, o concretismo, visto como “alienado”, para usar um termo de época. Os tropicalistas, porém, influenciados por Oswald de Andrade, afirmavam que a cultura brasileira abrangia tudo, desde o programa do Chacrinha até a poesia experimental, do samba mais tradicional ao iê-iê-iê da Jovem Guarda, do sentimentalismo e do mau gosto atroz de “Coração de mãe” de Vicente Celestino ao intelectualismo refinado e cool de “Chega de saudade”, na voz de João Gilberto. Essa inclusividade radical foi a característica mais marcante da tropicália, que a distinguiu de todas as outras neovanguardas de meados do século.
A tropicália foi o último dos movimentos ocorridos nesse período e também o mais breve de todos, porque pouco tempo após ele ser deflagrado veio o AI-5. Por isso, o dia 13 de dezembro de 1968 poderia ser tomado como o fim do período pós-modernista. Mas se quisermos focar especificamente na poesia, um outro marco poderia ser proposto: a publicação de “26 poetas hoje” em 1976. A contribuição de Heloisa Teixeira à historiografia da poesia brasileira foi justamente captar, com sua sensibilidade incomparável, o que estava acontecendo de novo no cenário poético nos anos que se seguiram ao grande cala-boca coletivo do AI-5. Na sua introdução, ela observa: “Frente ao bloqueio sistemático das editoras, um circuito paralelo de produção e distribuição vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia.” Heloisa destaca que nesse novo circuito o autor muitas vezes participa “nas diversas etapas da produção e distribuição do livro”, o que resulta num “produto gráfico integrado”. Escreve também:
No plano específico da linguagem, a subversão dos padrões literários atualmente dominantes é evidente: faz-se clara a recusa tanto da literatura classicizante quanto das correntes experimentais de vanguarda que, ortodoxamente, se impuseram de forma controladora e opressiva no nosso panorama literário.
A autora registra que os novos poetas retomam a “contribuição mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a incorporação poética do coloquial como fator de inovação e rutura com o discurso nobre acadêmico.” Em cinco páginas, Heloisa capta o essencial do novo momento poético com absoluta precisão.
“Geração marginal”
O mensageiro que traz uma notícia é inevitavelmente escorraçado por aqueles que consideram a notícia má. Ao mostrar ao público livresco que a coisa mais nova em matéria de poesia era a produção da chamada “geração marginal” — aquelas plaquetes mimeografadas vendidas ou distribuídas nas portas dos cinemas e teatros das grandes cidades, em particular do Rio de Janeiro – e ao demonstrar, com exemplificação farta, que essa poesia aparentemente descuidada, que vinha desacompanhada de manifestos e rompimentos explícitos com movimentos anteriores, era a que mais revelava a face dos tempos que estávamos vivendo, Heloisa incomodou e chocou boa parte da intelectualidade brasileira. Hoje reconhecemos a dívida que os chamados marginais têm com o modernismo e até mesmo com a vanguarda concretista – afinal, tanto os marginais quanto os concretos têm em Oswald de Andrade um de seus principais precursores. Na época, porém, uma parte do establishment cultural reagiu com intolerância a essa poesia que se fazia fora dos ambientes literários e acadêmicos tradicionais, a contrapelo tanto da versificação clássica quanto das posturas neovanguardistas.
Para mim, pessoalmente, a leitura da antologia da Heloisa foi fundamental. Embora escrevesse poesia desde sempre, eu havia me imposto a condição de só publicar depois que completasse trinta anos de idade, e por isso minha estreia literária se deu apenas no início dos anos 80. A poesia que eu escrevia – mas não publicava – nos anos 70 era diferente da poesia marginal, pois eu tinha a intenção de dominar os metros tradicionais e outros recursos da versificação portuguesa que estavam sendo rechaçados tanto pelas neovanguardas quanto pelos marginais. No entanto, quando li “26 poetas hoje” percebi que eu e aqueles poetas tínhamos muito em comum: a sensação de não pertencermos ao mundo a que pertencíamos inevitavelmente; a repulsa aos valores autoritários e conservadores impostos a toda uma nação; o desejo irrefreável de transgredir; o fascínio pela contracultura; e o impulso de escapar do clima sufocante do Brasil daquele período.
Ana Cristina Cesar, nascida seis meses depois de mim, foi para Londres estudar tradução, alguns anos depois da minha temporada de estudos de cinema em Los Angeles e San Francisco; com ela eu viria a ter contatos profissionais mais tarde, quando nós dois já atuávamos como tradutores. Antonio Carlos Secchin, meu colega nesta Academia, que nasceu oito dias depois de Ana Cristina, foi para a França ensinar literatura e cultura brasileira na Universidade de Bordeaux. Geraldo Carneiro, também meu colega de ABL, nascido apenas um dia depois de Secchin, já era estudante do Departamento de Letras da PUC-Rio um ano antes de eu me matricular lá. E Chacal, sete meses mais velho do que eu, viajou para Londres mais ou menos na época em que fui para a Califórnia, mas não, como eu, Ana Cristina e Secchin, para estudar ou lecionar, e sim para mergulhar de cabeça na Swingin’ London. Esses poetas, portanto, estavam no mesmo barco que eu.
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Graças à antologia da Heloisa, me dei conta de que, também na esfera da poesia, eu fazia parte de uma geração – essa geração que tanto apostou na ideia de juventude, e que, não tendo conseguido melhorar o mundo, nem sequer tendo conseguido evitar a volta triunfal do fascismo, chega agora à velhice – uma coisa que acontece com todos, fora os que, como Ana Cristina Cesar, Torquato Neto e Cacaso, e como o patrono e o primeiro ocupante da cadeira 30 desta Academia, foram agraciados pelos deuses com a duvidosa distinção de morrer jovens (...).