María Ospina Pizano transforma em palavras a dor dos animais
Escritora colombiana imagina a voz de cães, pássaros, porco-espinho e besouros atingidos pela devastação ambiental no livro 'Só um pouco aqui'
compartilhe
Siga no
Nahima Maciel
Especial para o EM
A colombiana María Ospina Pizano encontrou, na varanda de seu apartamento em Bogotá, uma saíra-escarlate com sinais de exaustão. A jornada interrompida do pequeno pássaro migratório, que estava no meio de sua migração anual dos Andes à América do Norte, foi o ponto de partida da escritora para “Só um pouco aqui”, romance que coloca animais como protagonistas em um mundo no qual eles estão cada vez mais ameaçados.
Nascida na capital colombiana em 1977, María Ospina Pizano faz parte de uma geração de autoras latino-americanas que têm colocado a natureza em primeiro plano e a atuação humana sobre o planeta e seus outros habitantes em evidência. Naturalmente herdeiras de um realismo fantástico que contaminou toda a literatura da América Latina, em maior ou menor grau, elas são também expoentes de uma geração que tem se dedicado a escrever narrativas que mesclam situações relacionadas a meio ambiente, ecologia, destruição e terror. São romances pautados pelo colonialismo ambiental, com narrativas profundamente ancoradas em noções como a exploração humana de terras e bichos e o extrativismo desenfreado.
“A literatura latino-americana há séculos pensa nesse tema. Não é algo novo, nem algo que surja a partir do realismo mágico, embora muitos autores e autoras tenham interesse em brincar com os limites da realidade e da razão para narrar histórias do extrativismo”, avisa María Ospina, que hoje se divide entre a Colômbia e os Estados Unidos. “Não estamos diante de um novo gênero só porque muitas escritoras estejam interessadas nesse tema e escrevam sobre ele, embora me pareça maravilhoso que o façamos e que estejamos sendo publicadas — coisa que antes não acontecia.” Para a autora, a literatura latina vive um novo momento de experimentação literária rico e emocionante, capaz de renovar e ampliar uma corrente forte e heterogênea na região.
Em “Só um pouco aqui”, Ospina dá voz não apenas a passarinhos desorientados, mas a duas cachorras abandonadas, uma besoura perdida e uma filhote de porcos-espinho. São seres deslocados por variadas intervenções humanas no cenário urbano e rural. “Só um pouco aqui” usa a delicadeza na tentativa de imaginar a voz desses animais cuja convivência com a humanidade é inevitável e, eventualmente, cruel e fatal. “Um livro lindo, raro e poético. Uma história sobre a vida como viagem através do olhar animal. Impossível resistir à ternura e nitidez das palavras de Ospina”, afirmou a equatoriana Mónica Ojeda, autora de “Mandíbula”.
“Só por aqui” rendeu a María Ospina Pizano o Prêmio Sor Juana Inés de la Cruz de 2023, outorgado pela Feira Internacional do Livro de Guadalajara, e ainda o Prêmio Nacional de Novela 2024, da Biblioteca Nacional da Colômbia. A autora esteve em São Paulo em junho para participar da Feira do Livro e, em mesa com a poeta paulistana Sofia Mariutti, explicou o título da obra. “Para mim, com as histórias desses animais, o que me interessou foi pensar na impermanência da casa. Por isso o título do meu livro tem essa ideia de que nossas fantasias humanas da permanência da casa, de sua materialidade, de que é nossa propriedade, todas essas lógicas capitalistas contemporâneas são muito limitadas”, afirmou Ospina. Leia, ao lado, a entrevista da autora aos Diários Associados.
Como nasceu “Só um pouco aqui”? Como surgiu a ideia de transformar os animais em personagens?
Este livro vem sendo gestado desde que, pequena, eu caminhava com minha avó, minha mãe e vários cães por antigos caminhos entre bosques andinos da Colômbia, onde cresci. Foi ali que nasceu minha curiosidade profunda pelas formas como os animais não humanos e outros seres participam da ampla história do mundo e de dimensões de espaço e tempo que nos transcendem, mas que se cruzam com as nossas. Meu deslumbramento com o movimento e as migrações dos pássaros, minha curiosidade por como atravessam o território, foi outro dos motores deste relato. Há uma década observo aves e as busco nos bosques dos Estados Unidos e da Colômbia, para onde vou e venho. Uma tangará-escarlate, um pequeno pássaro migratório que é um dos personagens do livro, que encontrei exausto na minha varanda em abril, no meio de sua migração anual dos Andes à América do Norte, me inspirou a escrever a obra. Também meu encontro com outros animais não humanos no bosque de neblina andino onde vive minha mãe, que visito em vários momentos do ano. E os cães de rua de Bogotá, cuja soberania admiro.
Qual o interesse em investigar, em forma de ficção, essa dinâmica entre os animais, as paisagens em ruínas e os humanos?
A ficção, para mim um território fértil de exploração das possibilidades e limites da linguagem, me permitiu especular sobre as relações entre espécies, ou seja, as complexas redes e fricções afetivas e materiais que surgem entre nós e outros seres. Também a ficção me deu a possibilidade de me perguntar sobre a maneira profunda em que, a partir de uma racionalidade diferente da nossa, desde outras ontologias de espaço e tempo, os animais não humanos concebem o mundo e testemunham o que fazemos com ele. Como o sofrimento deles está atado às nossas vidas e como alguns de nós nos comovemos com isso? Interessava-me concebê-los como pessoas não humanas, e perguntar por sua subjetividade, sua vida emocional, sua forma de percorrer o mundo. Para mim, essas perguntas só poderiam ser feitas a partir da ficção, como linguagem que permite dar conta do que é deslumbrante, misterioso e intrincado no mundo em que vivemos – e celebrá-lo.
Leia Mais
Como deslocamento e transitoriedade se tornaram temas de interesse?
Quando comecei a escrever este livro, havia acabado de perder um lugar que sempre foi o centro dos meus peregrinos, uma terra rural no planalto cundiboyacense onde cresci grande parte da vida e para onde sempre retornava para pensar e me recompor de tudo. Nesse momento, precisei investigar mais a fundo a errância e a natureza transitória de qualquer lar. Especular sobre como os animais vivem a mudança de casa (tantas vezes provocada por nós), o que poderia constituir um lar para eles e como seu ato de habitar complica as noções de propriedade e pertença, foi a forma mais lúcida que encontrei para abordar esses temas, que sempre transcendem a dimensão humana. Em qualquer reflexão sobre o lar humano, sobre sua brevidade, está implícita a pergunta: quais animais deslocamos e quais ficam? Quem testemunha nossa errância? Ou seja, a pergunta política de quem é o hóspede e quem é o anfitrião. E há ainda a consideração sobre os direitos dos animais – refiro-me a um direito que transcende a dimensão legal, ao direito que eles têm de considerar o mundo sua casa.
A literatura latino-americana tem uma vocação particular para falar sobre devastação ambiental?
O extrativismo, em suas diversas manifestações, definiu a história da América Latina desde a época colonial e continua marcando a vida cotidiana da região. Por isso não é coincidência que sua literatura sempre tenha desempenhado um papel fundamental em narrar essas dinâmicas tão complexas e em criticá-las, dada sua função de dar conta da história e questionar dinâmicas de poder. Mas em muitas regiões do sul global – como na África ou no sudeste asiático, cujos legados coloniais também foram determinados pelo extrativismo – também houve interesse em narrar as relações entre humanos e natureza. O que é certo é que, na América Latina, quem escreve está marcado por uma tradição literária, fílmica e cultural ampla, de enorme força, que não podemos ignorar. Estamos sempre, de algum modo, respondendo a ela.
A dimensão não humana dos personagens é uma forma de resistência? Ou uma especulação sobre o futuro?
Talvez minha tentativa de descentralizar os relatos dominantes, que narram a vida humana como se não existissem outros seres e espaços que a excedem, seja uma forma humilde e sutil de resistência. Este é um livro sobre o presente: sobre as viagens a que submetemos os animais em um mundo marcado pelas transformações que a sociedade dominante produz, derivadas de uma concepção antropocêntrica muito violenta. Para mim, o fato de as aves continuarem migrando apesar de todos os obstáculos que encontram – esse ato heroico de atravessar um continente – já contém o germe de um futuro. Também o bosque, como espaço de vida e memória, e as pessoas que o defendem, são o futuro. E devemos mencionar as práticas e pensamentos de diversas comunidades que propõem e praticam outros modos de viver, os quais complicam a violenta ideia ocidental de superioridade humana baseada na suposta diferença entre cultura e natureza.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
Como você construiu os personagens?
Minha inquietação sempre foi como me aproximar dos animais não humanos, de suas vidas marcadas pelas nossas, sem cair na armadilha simplista de dar-lhes uma voz – não porque careçam dela (claro que têm, apenas sua comunicação difere do que entendemos por linguagem) – mas porque considero haver um problema ético em assumir que suas emoções, pensamentos, formas de escutar, cheirar e ver o mundo podem ser totalmente traduzidos a nossos parâmetros. Não é que a existência dos animais não deva ser conceitualizada – é urgente perguntar sobre sua experiência –, mas, se quisermos escrever a história a partir de um ponto de vista que abranja mais que o humano, temos que evitar o impulso violento de projetar significado sobre o outro animal, equiparando suas emoções às nossas ou catalogando-as como inferiores. Respeitar sua soberania é aceitar que o animal não humano participa do mundo desde outras margens, alturas e superfícies, com ontologias espaciais, temporais, sonoras e visuais próprias que diferem das nossas, embora se cruzem. Isso implicava para mim me afastar de um legado filosófico e científico dominante na tradição ocidental, que postulou que os animais carecem de emoções e pensamento complexo ou que se recusou a fazer tais perguntas. Meu desafio foi me aproximar o máximo possível da compreensão do animal, abordá-lo como pessoa não humana, com personalidade irredutível aos nossos parâmetros.
“Só um pouco aqui”
• De María Ospina Pizano
• Tradução de Silvia Massimini Felix
• Instante
• 176 páginas
• R$ 74,90