CHILCO'

Livro de Daniela Catrileo faz retrato dos contrastes latinos

No impressionante romance 'Chilco', a poeta e escritora mapuche-chilena narra despertar político de dois jovens diante de uma realidade em ruínas

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Maria Fernanda Vomero
Especial para o EM

Quando tudo desaba literal e metaforicamente na cidade Capital, soterrando promessas de futuro e reinvenção, o casal Mari e Pascale empreende uma jornada com repercussões importantes para ambos. No caso dele, trata-se do retorno ao território de origem, a ilha Chilco, contrariando a direção do fluxo migratório que encaminha os jovens insulanos ao continente em busca de trabalho e lá os mantém, mesmo em situação precária. No caso dela, trata-se da descoberta de um espaço de resistência, bastante desafiador ao início, onde o sentido de comunidade se vincula à terra e às manifestações indômitas da natureza.

Enquanto Pascale se adapta rapidamente à rotina insular, Mari, a narradora, não consegue deixar de se sentir forasteira. Ora é o cheiro da casa na qual os dois passam a morar – incômodo, tão diferente dos odores da cidade com os quais estava acostumada –, ora é a desconexão com os hábitos e pensamentos que orientam os nativos da ilha. Sem que se dê conta, a protagonista experimenta uma espécie de luto pela ruína de uma ideia de cidade (e de convivialidade) que a sustentava.

Por meio da trajetória do casal, a poeta e escritora mapuche-chilena Daniela Catrileo consegue, em seu romance “Chilco” (DBA), compor um retrato vívido e pulsante dos contrastes e contradições que permeiam os países latino-americanos, de suas populações miscigenadas e das feridas ainda abertas do colonialismo. A porção continental nunca é nomeada, a não ser pelo genérico “cidade Capital”, embora seja possível deduzir que a história se passe no Chile contemporâneo. Chilco, por sua vez, talvez não conste dos mapas oficiais, mas se revela bastante real na narrativa – há todo um “arquivo portátil” dedicado à ilha, com detalhes extraídos de crônicas coloniais, lâminas botânicas e até fragmentos de um diário de viagem.

A ilha emerge com destino possível para o casal depois que a cidade Capital foi chacoalhada por abalos cívicos e sísmicos. O estopim foi o desabamento de um conjunto de torres da Grande Avenida, provavelmente em razão do “design ruim” e da “fadiga do material”, causando muitas mortes. A revolta pela tragédia somou-se à indignação latente contra a especulação imobiliária. Explodiu, então, uma insurreição popular, cujos contornos fazem lembrar o “estalido social” que tomou conta do Chile entre outubro de 2019 e março de 2020. Em seguida, vieram sucessivos tremores de terra – e, então, o pó e a ruína.

Em “Piñen”, livro de contos da autora publicado no Brasil pela Peabiru e traduzido por René Duarte, a questão da moradia urbana já aparecia como um eixo importante. Os três relatos se passam na periferia da metrópole, em um cenário de “blocks”, como são chamados informalmente os conjuntos habitacionais construídos pelo governo e destinados a famílias de baixa renda. Em “Chilco”, o espaço em disputa é o centro urbano sob ameaça de gentrificação.

Os personagens criados por Daniela Catrileo são marcados por uma experiência diaspórica – como vivência própria ou como memória herdada. Mari é neta de uma imigrante peruana que, embora viva na cidade Capital desde muito jovem, ainda mantém costumes marcadamente quéchuas, andinos. Pascale, por sua vez, é filho de um “lafkenche” – mapuche da área costeira – e de uma mulher branca, continental. Leila, amiga e colega de trabalho da protagonista, é uma imigrante haitiana que deixou seu país para estudar e, ao se mudar para a cidade Capital, conseguiu emprego no arquivo de um museu.

Daniela Catrileo cria, assim, uma narrativa “champurria”. A palavra “champurria” vem do mapudungun (língua mapuche) e alude à ideia de mistura, contaminação. Por muito tempo foi usada com conotação negativa para designar o mestiço, aquele que não era “puramente” mapuche ou espanhol. Hoje tem sido reivindicada para definir uma identidade fronteiriça, heterogênea, múltipla, nada subalterna.

Essa característica “champurria” não aparece apenas no enredo, mas também na linguagem, um dos pontos altos do livro. Catrileo recorre a termos em mapudungun, quéchua e criolo haitiano, permitindo que os idiomas se “contaminem” – e aqui destaco a excelente tradução de Elisa Menezes, que conseguiu combinar essa pujança lexical ao português, mantendo a fluidez. Além disso, a verve de poeta da autora se revela no esmero com a cadência do texto, às vezes febril como na passagem sobre a insurreição popular, quase um manifesto em prol das utopias. Em outros momentos, melancólico ou feroz, como a paisagem de “Chilco”.

Poderia afirmar, em síntese, que “Chilco” é um romance contracolonial, mas assim ofuscaria suas inúmeras qualidades literárias. Digo, então, que é uma obra surpreendente, impregnada de imaginação política e “newen” (força profunda, em mapudungun). Com esse livro, Daniela Catrileo se firma como uma das vozes mais interessantes da literatura contemporânea da América Latina.

MARIA FERNANDA VOMERO é jornalista e doutora em Artes Cênicas (USP)

Trechos

“Uma capital desenhada aos pedaços, com buracos enormes que devoravam tudo que já estava em ruínas. Estávamos aterrorizados, andávamos na ponta dos pés, tudo era material frágil. Nós nos tornamos desconfiados, violentos, briguentos. Pouco a pouco, o movimento político começou a se fragmentar, a se radicalizar, a se amotinar. Cada facção pretendia deter a razão, a identidade revolucionária e, portanto, a verdade. Os pequenos grupos disputavam entre si um poder imaginário numa cidade imaginária.”

*

“Os chilquenhos compartilham um idioma comum, como um quipu emaranhado que os costura por dentro. Isso fica evidente não só quando mencionam certas palavras e sua pronúncia, mas também quando conversam sobre a ilha na frente de estranhos, como se fizessem parte de um afeto comum. Uma dor ou uma alegria em alguma parte do corpo. Falam de Chilco com uma profundidade muito diferente. Não é estranho pensar que concebem a ilha como mais um ser vivo, na sua completude ou no seu fragmento, que os abriga e, ao mesmo tempo, os expulsa.”

*

“O argumento da natureza como um outro inalcançável, indomável, era seu cavalo de batalha. Utilizaram o discurso do ser imprevisível, selvagem, distante. Não era possível discutir sobre cataclismos com uma entidade que estava fora de nós, fora da civilização. A natureza era o bárbaro, a alteridade intraduzível do presente. Como se não fôssemos parte dela, seus braços, seus órgãos, sua vegetação, seu sopro. Como se, na distância excessiva entre nossas espécies, não pudéssemos decifrar sua linguagem.”


Sobre a autora

Nascida em Santiago em 1987, Daniela Catrileo é escritora, professora de filosofia e ativista chilena. Publicou os livros de poesia“Río herido”(2016),“Guerra florida”(2018) e “El territorio del viaje(2021). A coletânea de contos“Piñen”(Peabiru, 2024) e o romance “Chilco”(DBA Literatura, 2025), vencedor do Prêmio Municipal de Literatura de Santiago, foram lançados no Brasil.

Reprodução

“Chilco”
•De Daniela Catrileo
• Tradução de Elisa Meneses
• DBA Editora
• 248 páginas
• R$ 84,90

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