O intrigante encontro entre Fanon, Sartre e Beauvoir
No centenário de Fanon, saiba como foi a reunião dele com o casal francês em Roma, em 1961
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Siga noAtração pela convergência intelectual e afastamento pela maneira como esses conhecimentos se traduzem (ou não) para a vida prática. A relação entre Frantz Fanon e o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi conturbada na mesma proporção que notável para o pensamento anticolonial do século 20 – como conta a biografia “A clínica rebelde”, de Adam Shatz, lançada no Brasil recentemente pela Editora Todavia, com tradução de Érika Nogueira Vieira.
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Os dois já “trocavam figurinhas” muito antes de se conhecerem pessoalmente em 1961. Sartre e sua companheira, Simone de Beauvoir, exerceram influência na formação política de Fanon a partir, sobretudo, do existencialismo – a linha de pensamento que se baseia nas experiências individuais como molde para formação de cada um.
Apesar de compreender as benesses da corporeidade de Maurice Merleau-Ponty (como podemos, a partir do nosso corpo físico, experienciar o mundo), Fanon privilegia a corrente filosófica de Sartre e Beauvoir por entender que a corporeidade ignora o racismo estrutural. “A dialética genuína entre o corpo negro e o mundo era impedida”, escreve em “Pele negra, máscaras brancas”, sua primeira obra.
“Crítica da razão dialética”, de Sartre, promove reflexões ainda mais profundas em Fanon. Nessa obra, Sartre se concentra no aspecto coletivo da humanidade e reflete como o pensamento marxista influencia um grupo de pessoas que defendem um ideal, como a luta anticolonialista, a principal bandeira da vida de Fanon, por exemplo.
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É nessa obra que o filósofo francês cunha o conceito de fraternidade-terror, fundamental em “Os condenados da terra”, título mais cultuado de Fanon. Segundo a linha de pensamento, uma pessoa segregada tende a afastar seu agressor de maneira coercitiva ao responder o medo com terror. Assim, as pessoas que integravam a luta anticolonial, ao olhos de Fanon, “se tornam irmãs de armas”, ao mesmo tempo que fazem um juramento contra a traição, que deve ser punida com coerção. Para Fanon, é a partir da fraternidade-terror e sua coerção e reação violenta que grupos revolucionários se mantêm fiéis à luta, mesmo em desvantagem bélica na maior parte das vezes.
Após a leitura de “Crítica da razão dialética”, Fanon procura o cineasta Claude Lanzmann (1925-2018) para intermediar um encontro com Sartre. Lanzmann havia visitado o psiquiatra antilhano em Túnis meses antes e era companheiro do filósofo francês na histórica revista “Les temps modernes”, editada até 2019. É ele quem consegue articular um encontro entre os dois pensadores em Roma em 1961. Beauvoir também esteve presente, apesar de Fanon confidenciar a Lanzmann que “pagaria 20 mil francos para falar somente com Sartre da manhã até a noite, durante 15 dias”.
O encontro
A conversa entre os três foi marcada pela dicotomia: de um lado, a convergência pelo pensamento anticolonialista como aspecto inegociável da democracia francesa; por outro, a divergência entre a trajetória de vida dos franceses e do antilhano. Fanon chega a alfinetar Sartre em um momento em que ele e Beauvoir falam em descansar após horas de conversa: “Eu não gosto de pessoas que poupam energia”, teria dito aos dois, quando já enfrentava os sintomas da leucemia que o mataria.
Essa provocação segue a linha de um mundo completamente diferente entre os dois lados do diálogo. Como brancos, Sartre e Beauvoir permaneciam fiéis à cultura e à sociedade francesas que tanto criticavam na escrita. Eram incapazes de romper o vínculo com a metrópole e de renunciar aos privilégios como colonos – uma hipocrisia imperdoável aos olhos de Fanon. Essa repulsa não atinge somente o casal, mas a maior parte dos intelectuais alinhados à metrópole, como o escritor estadunidense Richard Wright (1908-1960) e o ativista francês Francis Jeanson (1922-2009).
Ao mesmo tempo, o casal não tinha conhecimento prático sobre a realidade enfrentada por Fanon durante a infância na Martinica, na linha de frente na Segunda Guerra e, muito menos, no conflito armado e no expediente psiquiátrico na África. Ele era um homem preto, que nunca alcançou o pertencimento e a libertação do racismo, apesar de buscá-los durante toda sua trajetória com afinco. “A vida para ele parecia uma aventura trágica, muitas vezes horrível, mas de um valor infinito. Quando eu apertava sua mão febril, pensava em tocar a paixão que o queimava”, escreveu Beauvoir sobre Fanon anos depois.
Serviço
“A CLÍNICA REBELDE: UMA BIOGRAFIA DE FRANZ FANON”
- De Adam Shatz
- Tradução: Érika Nogueira Vieira
- Editora Todavia
- 576 páginas
- R$ 85,90