José Castello encara a velhice em "Devastação"
Jornalista e escritor mergulha no delírio, na solidão e nas inquietações existenciais de Anita Vogler, protagonista de seu novo romance
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Siga noIdosa e doente, quase sempre solitária, Anita Vogler observa a mulher no espelho herdado da avó. Não a reconhece, não se reconhece. Acredita estar diante de uma impostora capaz de imitá-la à perfeição até que cogita possibilidade igualmente aterradora. “Meu Deus, e se for eu, e não uma falsária, quem está dentro do espelho?”, ela se questiona. A ideia, “súbita e absurda”, a arrepia. “Se estou encarcerada no espelho, se sou eu quem atuo atrás da parede de vidro, e não uma plagiadora qualquer, uma atriz barata, então quem é essa mulher que, aqui do lado de fora, ocupa meu lugar e age e fala por mim? E como fui parar lá dentro?”. As perguntas se multiplicam na cabeça da protagonista de “Devastação”. A perturbação se converte em desespero. Não há como Anita evitar a própria imagem, impossível escapar do próprio corpo. O eclipse se aproxima.
Com o subtítulo “drama cósmico”, “Devastação” marca a volta do jornalista e escritor José Castello, autor de biografias conhecidas como “Vinicius: o poeta da paixão”, às narrativas ficcionais depois de “Fantasma” (2001) e “Ribamar” (vencedor do Prêmio Jabuti de melhor romance em 2010). “Incluí o subtítulo como uma advertência ao leitor”, conta Castello. “Nos últimos tempos, grande parte das mais importantes narrativas brasileiras trata de temas sociais – de raça, identidade, gênero, minorias. Em ‘Devastação’, ao contrário, tentei desenhar um retrato mais amplo do mundo”, explica o autor, nascido no Rio de Janeiro em 1951 e radicado em Curitiba.
Com as lembranças da própria mãe, que viveu “perplexa e assombrada” antes de falecer em 2015, José Castello ergue um vertiginoso e devastador inventário das sombras de uma existência perturbada de uma mulher que encarou o casamento como uma escravidão e se insurge contra o tratamento destinado aos idosos. “Fazem isso sempre com os velhos: somos anulados. Viramos uma terceira pessoa muito distante, que talvez viva em algum mundo paralelo”, reclama Anita, enquanto atormenta – e é atormentada – por uma cuidadora “sonsa” e um neto que vive no computador, “também capturado por uma imagem”. “A velhice extrema é uma espécie de exílio existencial”, acredita o colunista do jornal literário Rascunho e do suplemento Pernambuco.
Leia, a seguir, a entrevista de José Castello ao Pensar do Estado de Minas com perguntas formuladas a partir de passagens de “Devastação” e dos romances anteriores, “Fantasma” e “Ribamar”.
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Como surge “Devastação”? Por que o subtítulo “drama cósmico”?
Meu livro surgiu de uma lembrança específica da velhice extrema de minha mãe, dona Lucy, falecida em 2015. Falo da confusa relação que ela teve, em seus últimos anos, com os espelhos. Também dona Anita Vogler, minha protagonista, se sente ameaçada e até subjugada por um espelho. Diante dele, perde o controle de si, e já não sabe se está dentro, ou fora do espelho. Quanto ao subtítulo “drama cósmico”, eu o incluí como uma advertência ao leitor. Nos últimos tempos, grande parte das mais importantes narrativas brasileiras trata de temas sociais – de raça, identidade, gênero, minorias. Em “Devastação”, ao contrário, tentei desenhar um retrato mais amplo do mundo, que ultrapassa as circunstâncias sociais e se alarga em direção a questões universais, ou “cósmicas”. Vivemos em um mundo que se despedaça, se desintegra, se decompõe. As florestas queimam, as instituições políticas estão sob ataque, os jovens se afogam na tela de seus smartphones, aumenta o número dos que desprezam a lei e se sentem acima dela. Também dona Anita vive em um mundo que despenca e se corrói. Um mundo em estado de decomposição.
“A velhice é um tema que não me interessa. Só interessa às pessoas que ainda levam o tempo a sério”, afirma a narradora. Em outro momento, ela constata sobre os velhos: “Somos anulados, viramos uma terceira pessoa muito distante, que talvez viva em algum mundo paralelo”. Acredita que a velhice é percebida na literatura com mais respeito do que na vida real? Como o que observou da vida de sua mãe foi incorporado ao livro? Poderia citar exemplos de livros que tratam dignamente personagens velhos?
Copacabana, onde vive dona Anita Vogler, está cheia de velhos solitários, que mal conseguem pagar seus cuidadores e que vagam pelas ruas sob o olhar indiferente dos jovens. A velhice os torna “invisíveis”. A vida desmorona a seu redor, mas quase ninguém os ouve e acolhe seu sofrimento. Também minha mãe viveu seus últimos anos num velho apartamento de Copacabana. Nem a ajuda de cuidadoras abrandava sua solidão. Vivia perplexa e assombrada. O presente a intrigava. Sempre que eu a visitava, tentava me aproximar de sua dor, mas era como se um muro invisível nos separasse. A velhice extrema é uma espécie de exílio existencial. No entanto, se conseguimos escutar os velhos, em meio a seus delírios e assombros encontramos uma grande riqueza. Quanto à literatura, penso que os japoneses têm, em geral, um olhar mais sensível a esse “drama cósmico”. Aprendi muito lendo grandes autores como Kawabata, Tanizaki e Mishima. Em seus livros, hoje, aos 74 anos, como em um velho espelho, encontro muito de mim.
“Quem ainda pode saber onde está a verdade? O mundo anda muito poluído”, lamenta a narradora. Neste mundo poluído, o que pode a literatura? Onde pode ser encontrada a verdade literária?
Em geral, se associa a literatura à mentira e à astúcia. Penso, ao contrário, que o papel da ficção é alargar nossa ideia de verdade. A ficção não é a negação da realidade, ao contrário, ela expande os limites da realidade. Não que nos forneça novos dogmas, ou certezas. Ao contrário, ao multiplicar os limites da verdade, ela nos defronta com novas dúvidas e novas incoerências. Se pensarmos honestamente, veremos o quanto de ficção existe em nossas vidas. Não falo das “fake news” – que são apenas uma manipulação monstruosa e criminosa da verdade. Para além disso, a verdade também está na fantasia, nos devaneios e nos sonhos. A verdade é uma construção humana e, como tal, é sempre instável e provisória. A ficção tira partido dessa precariedade e a transforma em energia.
“E se eu estiver dentro do espelho, e não fora dele?”, pergunta-se a narradora. Este é apenas um dos questionamentos e o livro os traz em grande quantidade, parece que aumentam a cada capítulo. Você o escreveu para tentar responder essas perguntas ou para compartilhá-las com os leitores?
Quando comecei a rascunhar “Devastação”, eu acreditava que escrevia uma narrativa para crianças. O avançar da escrita, porém, me mostrou que o drama de dona Anita Vogler com seu espelho era muito mais grave e complexo do que podia supor. A escrita nos submete e nos arrasta – e logo a história ultrapassou tudo o que eu planejara. A ficção tem esse poder. Por mais que você esboce e arquitete, a escrita sempre nos move para direções imprevistas. É nesse momento de desconforto e descontrole que a literatura toma corpo. Quanto menos dominamos nossa escrita, mais viva ela se torna. E é a vida, penso, que todos estamos sempre a buscar.
“Preciso me acostumar a viver uma vida falsa. Uma vida dupla”. Esta também é a vida do jornalista que escreve ficção? Como a formação jornalística inspira as suas criações literárias e como a ficção influenciou suas biografias?
Alguns já me disseram que “O poeta da paixão”, minha biografia de Vinicius de Moraes, é, na verdade, um romance envergonhado. Foi muito difícil determinar se os textos reunidos em “As melhores crônicas de José Castello”, livro organizado por Leyla Perrone Moisés, eram, de fato, crônicas ou contos. Vários leitores já me disseram que os retratos biográficos que reuni em meu “Inventário das sombras”, na verdade, são contos. Formei-me nessa fronteira fluida entre o jornalismo e a literatura. Sou filho dessa instabilidade e dessa liquidez. Quando escrevo, não me preocupo com o gênero do que escrevo. Não sou eu quem decide isso, é a própria escrita. Gosto de dizer que faço uma literatura “trans”. Estou sempre no meio do caminho. Meus escritos, eu penso, são móveis, instáveis, volúveis e aprendi a aceitá-los assim. No meu entender, dogmas e conceitos não levam à boa literatura. A matéria da literatura é a liberdade.
Consegue enxergar conexões entre “Devastação” e os romances anteriores, “Fantasma” e “Ribamar”?
Essa é uma pergunta que deve ser feita aos leitores, não a mim. E estou certo de que cada leitor dará uma resposta diferente. Não há nada mais nocivo à literatura do que a certeza. Talvez não só à literatura – também a história da ciência é uma história de desmentidos. Sei, apenas, que tanto em “Fantasma”, como em “Ribamar”, se guarda muito de mim. É perigoso dizer isso, porque induzo meus leitores ao erro de que são narrativas autobiográficas. A vida se infiltra sempre na ficção, ela é o sangue que percorre suas veias. Mas também a ficção se infiltra na vida, e é nesse contínuo movimento que está a beleza da existência.
“A matéria da literatura é o esquecimento, e não a memória”, afirma um dos personagens de “Fantasma”. Concorda com o seu personagem? E para você?
A memória é uma espécie de cola da existência. Ela empresta coerência e sentido à agitação devastadora do presente. Contudo, a própria memória está impregnada de esquecimento. Quando lembramos, estamos sempre esquecendo. E reinventando o passado. É como na música: sem as pausas e os silêncios, uma partitura musical não se sustenta. Penso que lembrar é tão importante quanto esquecer. Memória e esquecimento são a matéria prima a partir da qual construímos o presente. Dizendo melhor: a partir da qual nós o criamos.
“Deixo-me conduzir por uma força que, no fundo, vem só das palavras. Desde o início, elas me arrastam, não a cidade, ou Leminski”, conta o narrador de “Fantasma”. Foi essa força que o levou a escrever “Devastação”?
Levo sempre comigo um caderno de notas, no qual anoto ideias soltas, pensamentos, frases. Na hora de escrever, porém, raramente o consulto. Penso que a escrita é feita, sobretudo, do improviso. A matéria da literatura é o inesperado. Em nenhum momento, esperei de dona Anita Vogler qualquer tipo de coerência, ou de “sentido”. É justamente porque ela é ambivalente e cheia de paradoxos, porque é uma personagem agitada pela dúvida, que dona Anita se tornou, em penso, uma personagem viva. Infelizmente, nosso mundo está, cada vez mais, dominado pelos dogmas e pelos fundamentalismos. Nesse sentido, a ficção se torna cada dia mais importante. Ela injeta hesitação e perplexidade em um mundo que se agarra, cada vez mais, às verdades prontas. A ficção torna o mundo mais vivo.
“Vantagens da ficção: aqui eu posso tudo”, afirma o narrador de “Ribamar”. Essa liberdade o atrai, neste momento de sua vida, mais do que o jornalismo?
Agora, aos 74 anos, esse é um pensamento inútil, mas penso que minha opção pelo jornalismo foi um grande erro. Nunca me senti à vontade no papel de repórter. O contato com as pessoas, sem dúvida, me enriqueceu muito, mas depois eu nunca sabia direito o que fazer com o que ouvia. O jornalismo exige clareza, e sempre preferi as sombras. Exige histórias narradas com nitidez e segurança, quando eu me interesso muito mais pela instabilidade e pela dúvida. Busca obsessivamente os fatos, mas, se formos pensar honestamente, veremos que tudo o que temos são os restos, que a realidade é feita de suposições e de destroços. Acho, francamente, que sempre fui um péssimo repórter. Enquanto eu ouvia e anotava, sempre duvidava do que escrevia.
Ainda em “Ribamar”, o narrador sentencia: “Escreve-se, sempre, por linhas tortas” e “O escritor é um viajante que, contando apenas com uma precária bússola, chega a um destino que nunca planejou.” Escrever biografias, ensaios, críticas e romances também foi um destino que você nunca planejou? Pelas suas “linhas tortas”, chegou aonde quis chegar?
Nunca planejei escrever biografias. Às vésperas dos 40 anos de idade, porém, recebi um honroso convite do editor Luiz Schwarcz para me tornar biógrafo de Vinicius de Moraes. Desde muito cedo planejava me dedicar à literatura, mas a rotina sufocante do jornalismo não permitia isso. Estava em uma encruzilhada. Aceitar o convite era, de uma forma inteiramente torta, chegar à literatura, e só por isso aceitei. Orgulho-me do livro que escrevi, sei que tem muitas limitações, mas foi o resultado de um trabalho insano. Alguém escreveu que ele tem a estrutura de um romance do século 19. Nele, provavelmente, eu já rascunhava minha literatura. Em 1999, nos retratos literários do “Inventário das sombras”, senti claramente que chegava, enfim, à vizinhança da literatura fronteiriça que sempre sonhei em fazer.
Leminski em “Fantasma”, Kafka em “Ribamar”. Qual é o escritor a assombrar “Devastação”?
Durante a escrita de “Devastação”, pensei muitas vezes em Ionesco, Beckett, Pirandello e no “teatro do absurdo”. No meio da escrita, cheguei a me perguntar se não estava escrevendo, na verdade, uma peça de teatro, e não um romance. Todo o relato se concentra no quarto de dona Anita Vogler – ali é a cena. Há um contínuo entra e sai de personagens que lembra, às vezes, o vaudeville. Também minha história se baseia, antes de tudo, no equívoco. A preocupação com as luzes fala, talvez, dos recursos de iluminação. A própria dona Anita se pergunta, várias vezes, se não existe um encenador oculto que dirige o desempenho de sua imagem no espelho. Hoje entendo que há muito de teatro em meu livro. Não planejei isso, mas foi assim que o livro me saiu. E eu o aceitei e assinei. Não somos inteiramente os autores dos livros que escrevemos e é sempre com um misto de vergonha e de dúvida que assino os meus.
Como o crítico José Castello vê o atual momento da literatura brasileira? O que mais o encanta e o que, definitivamente, não o atrai?
Vou dizer uma coisa desagradável: não sei responder. Nos últimos anos, leio muito mais os clássicos do que os contemporâneos. Quase não leio os escritores de hoje. Mas preciso falar dos narradores com quem tenho “vínculos espirituais”. Penso em nomes como Cristovão Tezza, Luis Henrique Pellanda, Rogério Pereira, Raimundo Carrero, Sidney Rocha, Humberto Werneck. Não formamos um grupo literário, muito longe disso. Muitos deles nem se conhecem. Mas, na minha cabeça, formam um grupo que está sempre por perto, a quem sempre recorro e que sempre me amparam e estimulam. Estamos na mesma trincheira, são meus companheiros de luta. É claro, sempre os leio. São, sobretudo, escritores movidos por uma paixão intensa pela escrita. Somos ligados não pelo estilo, ou pelas ideias, mas pela mesma paixão. Sempre afirmo que não sou um crítico literário. Talvez não passe de um “leitor sentimental”. A paixão pela literatura me move, e é com ela que trabalho quando escrevo minhas supostas “críticas”.
Dos escritores mineiros, quais são os seus favoritos?
Sou um admirador fanático das crônicas de Humberto Werneck. É sempre com assombro que leio os poemas de Ana Martins Marques e de Edimilson de Almeida Pereira. Mas, como já disse, não sou um leitor confiável, pois hoje leio mais os autores do passado, então prefiro não me deter nos nomes. Aproveito sua pergunta para celebrar Adélia Prado, uma poeta que, no meu entender, encarna o espírito da poesia. Ela é uma prova viva de que, muito mais da lógica e dos conceitos, a poesia vem da intuição e do corpo. A poesia corre nas veias de Adélia Prado. Só por isso ela escreve uma poesia viva.
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Trecho
“Ficam todos aqui, encenando esse circo, me distraindo, enquanto o principal eles não enfrentam. Há uma prisioneira dentro do espelho e essa prisioneira sou eu, Anita Vogler. Isso sim precisa ser desvendado, mas ninguém se importa. Quem me sequestrou e me aprisionou? Quem fez do espelho um cárcere? Acho melhor eu me calar. Ninguém me entende mesmo.”
“Devastação”
• De José Castello
• Arquipélago
• 128 páginas
• R$ 69,90