Livro traz Paulo Mendes Campos com saudade de Minas
Nova antologia, "Minhas janelas" inclui crônicas com lembranças do mineiro, radicado no Rio, e comentário do escritor sobre "Grande sertão: veredas"
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Siga noFlávio Pinheiro/ Especial para o EM
Prosa decantada em invenção poética deu durabilidade às crônicas de Paulo Mendes Campos. Poucas vezes contingências datam o que foi escrito pelo escritor nascido em Belo Horizonte em 1922. Com “Minhas janelas”, nova coletânea publicada pela editora Companhia das Letras, conclui-se precioso legado de um gênero que por equívoco foi tratado como ligeiro e efêmero. O apetite onívoro para leituras de PMC dá sabor especial às suas crônicas literárias. Em 1956, foi instantemente capturado no lançamento de “Grande sertão: veredas” pela novidade e a estupenda grandeza do livro de Guimarães Rosa. “Riobaldo é a ação que se contempla e o pensamento que sai armado cavaleiro”, escreveu em crônica para a revista Manchete. E Riobaldo, que atravessou a história humana, estava também ao seu lado.
Ele fala ainda de “Orlando”, de Virginia Woolf, ou de W.H.Auden, gigante da poesia. Em “Meditações imaginárias”, define-se: “Ao meu avô Cesário devo este horror pelos cães, o pescoço musculoso, a implicância com países nublados, o riso acima de minhas posses, o pressentimento de uma velhice turbulenta”. E mais adiante: “A Picasso (devo) a reacomodação do nervo óptico”.
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Nas crônicas sobre futebol, louva Garrincha. “Como poeta tocado por um anjo, como um compositor seguindo a melodia que lhe cai do céu, como bailarino atrelado ao ritmo, Garrincha joga por inspiração, por magia, sem sofrimento, sem reserva, sem planos”. E não perde o humor: “Anchieta escrevia na praia poemas em latim porque os índios não sabiam português”. Paulo Mendes Campos morreu em 1991 com 69 anos. Ainda está vivo. E é necessário.
FLÁVIO PINHEIRO é jornalista
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Minhas lembranças mineiras
Leia trechos de crônicas de Paulo Mendes Campos, já radicado no Rio de Janeiro, com lembranças da infância e outros momentos da vida em Minas Gerais
“Meditações imaginárias”
A meu avô Cesário devo este horror pelos cães, o pescoço musculoso, a implicância com os países nublados, o riso acima de minhas posses, o pressentimento de uma velhice turbulenta.
(...)
A minha mãe, o manejo do revólver, o gosto do claustro, o recolhimento na hora do crepúsculo, o entendimento da passarela entre o efêmero e o símbolo.
(...)
A meu pai, os artelhos nodosos, os teoremas abstratos do espírito, timidez diante do dinheiro, hábito de verduras e leite, o sentimento (incomodamente impreciso) de uma flauta que se esvai nunca sei onde.
(...)
Devo aos poetas de todos os tempos a sobrevivência da minha alma: aos franceses, a ordenação das mais altas hierarquias semânticas; aos espanhóis, a guitarra tocando em duas cordas o diálogo entre o erudito e o popular, inextricáveis; a portugueses e brasileiros, o sabor; aos alemães, o ter-me tornado quem sou; aos melhores britânicos, as muitas flores que desabrocham nas trevas, despercebidas.
(...)
Aos mestres russos, tudo o que aprendi e vale a pena; a Stendhal, o sentimento de minhas carências; a André Gide, um chemin borde d’aristoloches.
A minha avó, Margarida, a maneira leve de pisar e fechar portas.
A Minas Gerais, a minha sede, o jeito oblíquo e contraditório, os movimentos de bondade (todos), o hábito de andanças pela noite escura (da alma, naturalmente), a procrastinação interminável, como um negócio de cavalos à porta de uma venda.
(Diário Carioca, 2/6/1959)
*
“Trem de ferro”
“A infância era ferroviária. Meninos de meu tempo iam ser maquinistas. Pé descalço no calor do trilho. Cabeleira de capim esvoaçando. Pontilhões me enternecendo. Os êmbolos poéticos do espaço ferroviário. Minha fantasia não era morada de entes sobrenaturais. Máquinas eram sobrenaturais. Sonhos engrenados pelo homem cabiam em nossa medida. Entro no túnel com o sobressalto musical de quem começa um improviso. A penumbra, menos inteligível, mais alusiva que a luz. Divaga nessas entranhas um divertimento perverso de túmulo. Mas a boca de saída berra pelo sol (...).
(Jornal do Brasil, 11/7/1990)*
“Pai de família sem plantação”
“(...) Às vezes morro de uma nostalgia aguda. São os meus momentos de sinceridade total, nos quais todo o meu ser denuncia a minha falsa condição de morador do Rio de Janeiro. A trepidação desta cidade grande não é minha. Sou mais, muito mais, querendo ou não querendo, de uma indolência de sol parado e gerânios. Minha terra é outra, muito outra, minha gente não é esta, meu tempo é mais pausado, meu espaço não é asfaltado, meus assuntos são mais humildes, minha fala, mais arrastada. O milho pendoou? Vamos ao pasto dos Macacos matar codorna? A vaca do coronel já deu cria? Desta literatura rural é que preciso.”
(...)
“Se aqui não vou à igreja, lá pelo menos frequentaria a doçura do adro, olhando o cemitério em aclive sobre a encosta, emoldurado em muros brancos. Aqui jaz Paulo Mendes Campos. Por favor, engavetem-me com a máxima simplicidade e do lado da sombra. É tudo o que peço. E não é preciso rezar por minha alma desgovernada.”
(Manchete, 8/8/1959)
“Minhas janelas”
• De Paulo Mendes Campos
• Organização de Flávio Pinheiro
• Companhia das Letras
• 312 páginas
• R$ 99,90
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