Um suspiro de poesia no ruído da realidade

Edição reúne crônicas de Drummond inéditas em livro

"A intensa palavra" inclui textos publicados pelo poeta mineiro no jornal Correio da Manhã em período conturbado do país nos anos 1950 e 1960

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Fabrício Marques/ Especial para o EM

Carlos Drummond de Andrade, o poeta de personalidade ao mesmo tempo secreta e pública, mercurial e complexa – na síntese acertada de Armando Freitas Filho – foi sobretudo um personagem bifonte: o poeta cronista, na definição de Flora Sussekind. Como a ensaísta e pesquisadora escreveu no Portal da Crônica Brasileira: “Poeta com olhos de cronista, cronista com traços de poeta, o duplo ofício torna difícil traçar-lhe um perfil intelectual coeso. Não seria suficiente, no entanto, dizer que oscilava entre poesia e crônica. Ou que se tratava de um poeta também cronista. Trata-se, sim, de uma obra em que se imbricam marcas ligadas tanto ao trabalho como cronista, quanto ao exercício poético”.

Nessa perspectiva, sua vertente de cronista pode ser colocada à prova com o lançamento de “A intensa palavra” – Crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969”, organização e apresentação de Luís Henrique Pellanda, também cronista, que selecionou 150 crônicas desse período incendiário da história – do suicídio de Vargas à construção de Brasília, do golpe militar de 1964 à chegada à Lua, do lançamento do primeiro satélite artificial da Terra ao fechamento provisório do Correio da Manhã.

O poeta de Minas chegou ao Rio de Janeiro em 1934. Quando começou a escrever três crônicas semanais no Correio da Manhã, no espaço “Imagens”, já haviam se passado 20 anos que morava na cidade, apresentava uma longa folha corrida como jornalista e funcionário público – duas experiências fundamentais em sua vida, como reconheceu diversas vezes – e estava com o charme e a barafunda do Rio devidamente introjetados em seu sentimento do mundo.

Sensível à agitação da vida carioca, Drummond ia de braços dados com a amiga e escritora Eneida de Moraes na avenida Rio Branco, levando sua crônica para o jornal, como registrou José Maria Cançado em “Os sapatos de Orfeu”. Nessas crônicas, o autor deixa a ver os estímulos que recebia diariamente das cenas cariocas: a passagem do ano diante do mar, os sucessivos natais e carnavais, as lojas que funcionam ao ar livre, e a presença de flores na paisagem, como o agapanto, a camélia, a flor-de-maio.

Utilizava como pretexto, ainda, os acontecimentos, fait-divers e efemérides colhidos no próprio jornal: concurso de miss, congresso de mágicos, festival de cerveja, um circo incendiado em Niterói, o bonde da zona sul, a prisão de um casal na Pedra de Guaratiba, o roubo da carteira de Lygia Fagundes Telles, em visita ao Rio.

Para completar, ganham merecido espaço os moradores da cidade e seus detalhes, como o garoto de dez anos que vendia limões, o bigode de Manuel Bandeira, Madame Azaleia, a cartomante, aeromoças, telefonistas, a moça descalça andando pela avenida Copacabana, o umbigo das moças em flor, a moda dos joelhos de fora. E, evidentemente, acrescentava a esse molho algum grau de invenção, pois Drummond já cravara num dos aforismos de “O avesso das coisas”: “o cronista serve-se às vezes de fatos imaginários para zombar dos reais”.

Muito embora partam de um solo factual, as crônicas de Drummond constroem um jogo entre o real e o imaginado que afirmam seu valor literário, constituindo-se, portanto, atemporais. Ao longo dos anos, foram caindo cada vez mais no gosto popular, alcançando o grande público, em escala nacional, algo que se somava ao interesse gradativo do próprio brasileiro pelo gênero. No verbete Crônica, do “Dicionário Drummond”, Sérgio Alcides explicita uma característica que poderia explicar a razão desse elo fecundo com o leitor: “Ao reivindicar o exercício do livre imaginar em face das circunstâncias, a crônica participa do nexo indissolúvel, para Drummond, entre literatura, liberdade e crítica da modernidade”.

Ou, como disse certa vez Gilberto Mendonça Telles, o segredo dessa popularidade reside em grande parte “na habilidade com que ele sabe trabalhar a língua, respeitando-lhe as tradições e ativando-lhe as tendências renovadoras. A sua linguagem é o modelo da linguagem coloquial brasileira, sabendo elevar-se nos momentos mais solenes e tomando a naturalidade, a graça e o atrevimento para tratar do broto de Ipanema, dos vaivéns políticos etc”.

E não se pode esquecer que sempre, à espreita, o poeta incorpora no cronista. São passagens em que um alto lirismo atravessa as crônicas. Como nessas passagens, entre tantas: “No ar, sob o ruído das obras, passava um suspiro de folhagem”, da crônica “Árvore faladeira”; e “transitava entre a areia e o céu essa jubilação das coisas que se exprimem na luz”, de “O outono, o céu”.

Um outro ingrediente que não poderia estar de fora é o humor e suas derivações. Nesse sentido, toda a ironia do poeta está sintetizada na crônica “Autor completo”, de 1965, em que desanca, como se fosse um terceiro, o lançamento do próprio livro “Obra completa”: “é apenas mais um com a mania de botar coisas no papel, com defeitos e qualidades normais: deixa-o!”

Na crônica “Os 4”, Drummond oferece uma possível definição para sua personalidade bifonte: “A crônica e a poesia têm caminhos batidos, por onde autor e leitor podem trotar folgados e em paz com as instituições seculares, as ideias adquiridas e os nobres sentimentos. Esses caminhos podem até ser cheios de atrações, brilhos e vidrilhos; o essencial é que não conduzam a lugar nenhum.” Isso, claro, é uma artimanha do autor de “A intensa palavra”. Na verdade, esses caminhos, tão conhecidos quanto misteriosos, tão urgentes quanto necessários, conduzem ao coração do leitor.

FABRÍCIO MARQUES é poeta, jornalista, doutor em Literatura Comparada na Faculdade de Letras da UFMG.

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Trechos do livro

DORES DO MUNDO

“O mundo é uma coleção de dores produzidas pela nossa mania de querer viver, como ensina Schopenhauer, e as teorias mais recentes não o invalidaram. O mundo é representação ilusória e vontade absurda. Você toma a providência mais insignificante, abre, por exemplo, uma porta, e logo se desenrolam grandes e hostis consequências. O ato inicial do amor é um ato pleno de dores imediatas e remotas, estas últimas gentilmente legadas às gerações futuras. Nessa constelação de dores fatais, porque resultantes do processo vital, a dor de cabeça, como a dor de barriga, a de cotovelo e todas as suas colegas são outras tantas manifestações de que continuamos vivendo, e vivendo sob o império da lei.”
(27 de março de 1954) 

TESTEMUNHA DA NOITE

“Com a morte de Antônio Maria, que vi apenas uma vez na vida, perco o meu informante em coisas noturnas. Podia dar-me ao descanso de ficar em casa, pois sabia que ele, vigilante, fazia a ronda da noite, e no dia seguinte contaria o essencial. E o essencial não estava em nomes de pessoas, notícias de comidas,vinhos e shows que constituíam aparentemente sua especialidade de cronista. Era o ar da noite, essa emanação filtrada entre luzes mortiças, fragmentos musicais ou simples ruído de pratos, na perspectiva alongada de ruas que se tornaram maiores, ganharam outra fisionomia; era uma espécie de resina escorrendo da face diversa da cidade, que esta não se desvenda à luz do dia.”
(18 de outubro de 1964)

“FIM”

Na verdade, a bomba já explodiu e explode todos os dias. Explode em nós e em nosso sentimento de vida. Somos uma poeira de gente desintegrada pela poeira radioativa que a bomba espalhou em nossas consciências. Que fizemos para impedir que isso acontecesse? Fizemos discursos, manifestos, artigos, poemas contra a bomba, mas também fizemos a bomba, que nos desfaz.”
(1º de novembro de 1961)

Reprodução


“A intensa palavra: crônicas inéditas do Correio da Manhã, 1954-1969”
• De Carlos Drummond de Andrade
• Editora Record
• 350 páginas
• R$ 119,90

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