100 anos de Frantz Fanon: o psiquiatra que defendia a luta armada
Chega ao Brasil a biografia "A clínica rebelde", que disseca a vida revolucionária, humanista, antirracista e anticolonialista do pensador martinicano
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Siga no“Se a palavra comprometimento tem significado, é em Frantz Fanon que ele se encontra”. A citação comovente feita pelo autor martinicano Aimé Césaire (1913-2008) ao seu compatriota não parece vir de alguém duramente criticado pelo homenageado em questão. Apesar de curtíssima para descrever a trajetória de alguém tão profundamente complexo, a descrição de Césaire se encaixa perfeitamente no objetivo central da vida do psiquiatra, escritor e pensador político Frantz Fanon (1925-1961), que tem sua história dissecada na biografia “A clínica rebelde”, de Adam Shatz, lançada no Brasil recentemente pela Editora Todavia, com tradução de Érika Nogueira Vieira.
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Quinto filho de uma família de classe média, Fanon nasceu em 20 de julho de 1925, em Fort-de-France, a capital da Martinica, pequena ilha no Caribe, até hoje território ultramarino da França. Deixou sua terra natal ainda jovem para representar as forças de Charles de Gaulle (1890-1970) na Segunda Guerra Mundial. Após a vitória dos aliados, o jovem antilhano teve sua primeira grande decepção sociopolítica: se viu completamente abandonado pela sociedade francesa, que preferia valorizar soldados brancos dos Estados Unidos aos negros que a representaram na linha de frente do conflito.
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A saída da Martinica por causa das proximidades da ilha com o nazismo e o tratamento incoerente dos franceses no pós-guerra alimentaram um sentimento de revolta e busca por pertencimento para Fanon. Já na faculdade de medicina, em Lyon, ele convive com o racismo no transporte público e nas aulas de anatomia – sempre realizadas em um cadáver negro, o que motivava piadas de colegas de turma (e um irreversível sentimento de raiva no futuro psiquiatra).
O racismo colonial sentido por Fanon na França o leva a autores pretos que discutiam a questão, como o citado Aimé Césaire e o futuro presidente do Senegal independente, Léopold Sédar Senghor (1906-2001) – expoentes do movimento literário Négritude. Ambos, porém, viriam a ser alvos de críticas de um Fanon mais experiente, pelo entendimento do psiquiatra de que a luta contra o colonialismo não passava somente pelo resgate cultural, mas por uma inadiável e fundamental luta armada. “A vida do colonizado só pode surgir do cadáver em decomposição do colono”, escreveria em “Os condenados da terra”, sua obra mais celebrada.
Pertencimento
A sede pelo pertencimento e pelo anticolonialismo leva Fanon à Argélia – país que travou uma guerra por oito anos, entre 1954 e 1962, por sua independência da França. Em um primeiro momento, sua influência sobre o país do norte da África se concentra na psiquiatria, a partir de uma abordagem mais humana em hospitais dedicados a pacientes com sofrimento mental em Blida, cidade a cerca de 50 quilômetros da capital Argel.
Com o endurecimento do conflito entre a Frente de Libertação Nacional (FNL) e a França, Frantz Fanon se envolve diretamente, trabalhando como porta-voz da luta armada em conferências internacionais e como médico dos combatentes. Fanon só deixa Blida em 1957, quando a França, sob comando do sanguinário Raoul Salan (1899-1984), invade o hospital no qual ele trabalha e mata amigos do psiquiatra e pacientes.
Ele deixa a Argélia, mas permanece fiel à luta anticolonial em Túnis, capital da vizinha Tunísia, onde escreve “Sociologia de uma revolução” com apoio de sua secretária, Marie-Jeanne Manuellan, descrita pelo autor da biografia como “a gravadora” de Fanon. Apesar de sua já citada discordância junto aos pensadores Négritude, Fanon aborda nessa obra, entre outros pontos, como a manutenção das vestimentas árabes (haïk) por parte das mulheres da FNL era um ato de resistência contra a colonização francesa.
África preta
Apesar de sua eterna busca por pertencimento ter encontrado rumo com a luta pela libertação da Argélia, Fanon continuava se sentindo um “peixe fora d’água” no norte da África. Para a biografia, a principal explicação para isso passa pela questão religiosa: o movimento da FNL era por uma independência com a manutenção dos aspectos islâmicos e árabes, nunca bem compreendidos por ele, um antilhano.
Essas divergências levaram Fanon a articular, internacionalmente, por uma expansão da luta armada para outros países colonizados da África. Ele amplia sua admiração para dois líderes, sobretudo: o angolano Holden Roberto (1923-2007) e Ahmed Sékou Touré (1922-1984), de Guiné, o único líder africano a rejeitar o projeto de independência, sem autonomia, de Charles De Gaulle.
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Resistentes à saída pacífica para a colonização, Roberto e Sékou Touré se somam a Patrice Lumumba (1925-1961), da República Democrática do Congo, no panteão de líderes africanos admirados pelo psiquiatria antilhano – sem contar o ex-líder da FNL Abane Ramdane (1920-1957), amigo pessoal de Fanon e assassinado pelos próprios argelinos. A principal linha de convergência de Fanon com essas lideranças estava além da luta armada. Estava na convicção de que a resistência precisa ter os excluídos sociais como protagonistas, como o campesinato, os mais pobres, as prostitutas e até criminosos – recrutados por alguns desses regimes, inclusive pela FNL na Argélia, durante as guerras.
Apesar de sempre estar na linha de frente dos conflitos a partir da psiquiatria, Fanon só pega em armas, efetivamente, em Bamako, capital do Mali – durante sua estada no continente africano, desconsiderando a Segunda Guerra. Com objetivo de garantir a chegada de suprimentos até a Argélia, a expedição ocorreu no início dos anos 1960, em um momento de caçada brutal a líderes africanos, após os assassinatos de líderes anticolonialistas, como o camaronês Félix-Roland Moumié (1925-1960) e Patrice Lumumba. O que há de mais valioso na expedição em Bamako é o diário de Fanon, que guarda arquivos que motivaram a produção de “Os condenados da terra” – escrito já em Accra, capital de Gana, sua última estada africana antes de perder a vida para a leucemia, em 6 de dezembro de 1961, aos 36 anos.
Virtudes e prejuízos
Em “Os condenados da terra”, Fanon evidencia a maior parte dos seus pensamentos e amadurece parte das problematizações trazidas em sua primeira obra, “Peles negras, máscaras brancas”. Ele transcorre longamente sobre como colono e colonizado precisam um do outro para coexistir.
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Um para explorar corpos e territórios selvagens, e o outro para invejar o opressor pelo desejo de, um dia, poder oprimir – uma constatação que o próprio Fanon sonha em rejeitar, justamente para se livrar, completamente, dos danos causados pelo imperialismo europeu. Ele ressalta, ainda na obra, como o uso da violência pode ser libertador para o colonizado, especialmente a faixa mais prejudicada pelo imperialismo, como camponeses e a população mais pobre.
Apesar disso, Fanon não esconde os danos causados pela guerra nos argelinos atendidos por ele em Blida, como a ansiedade, a insônia, o sadismo e a depressão. Ainda assim, trata esses prejuízos como inevitáveis. “O colonizado não tinha opção além de lutar de volta”, escreve.
Ao mesmo tempo, sua experiência na África e a maturação do seu pensamento político o levam a quase uma premonição do continente após as independências. Alerta, na obra, para a possibilidade de surgimento de figuras nacionalistas, fruto da “burguesia nacional” africana. Para Fanon, esses personagens usariam a libertação como manobra para instalar ditaduras, a partir de uma persuasão baixa: lembram a população do passado cruel do imperialismo para assegurar a manutenção no poder – algo visto nos vários governos autoritários africanos nas últimas décadas.
O psiquiatra
A influência de Frantz Fanon não se limita apenas ao pensamento político. Sua psiquiatria foi marcada pela interpretação mais humana do paciente com sofrimento mental, em um período no qual a maior parte dessas pessoas era vista como risco para a sociedade. Quando chega a Blida, Fanon encontra aqueles que viriam a ser seus pacientes totalmente acorrentados e nus – uma imagem que jamais voltaria a acontecer em uma unidade médica coordenada por ele.
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Assim como Césaire e Senghor foram referências para sua formação política, Fanon teve o psiquiatra catalão François Tosquelles como seu guia no pensamento reformador da medicina. No manicômio Saint-Alban, na França, trabalha ao lado de Tosquelles e passa a entender o tratamento psiquiátrico como algo coletivo, envolvendo todo o corpo de saúde, do porteiro ao médico, para facilitar a “transferência” mental entre o paciente e o tratamento. O médico, nessa doutrina, é visto apenas como mais uma parte desse processo, sem o pedestal característico de outras abordagens.
Já em Blida, ele ressalta a necessidade da terapia não ser vista como um encarceramento para o paciente, mas como espaço que mantém o vínculo do doente mental com o mundo exterior.
Em Túnis, Fanon coloca em prática dois conceitos discutidos com Tosquelles, ambos inéditos na psiquiatria mundial. O primeiro deles é o dia-hospital, método que permitia o paciente passar o dia na unidade psiquiátrica e retornar para casa à noite, numa tentativa de manutenção de sua liberdade, contra a ideia de aprisionamento. O outro é a chamada geopsiquiatria, que permitia a consulta psiquiátrica em domicílio, algo defendido por Tosquelles, mas nunca colocado em prática por ele na França.
Serviço
“A CLÍNICA REBELDE: UMA BIOGRAFIA DE FRANZ FANON”
- De Adam Shatz
- Tradução: Érika Nogueira Vieira
- Editora Todavia
- 576 páginas
- R$ 85,90
Coletânea de ensaios
Os professores Deivison Faustino e Muryatan Barbosa lançarão, em 18 de agosto, o livro “Desde Fanon” (Boitempo Editorial), uma coletânea de seis ensaios publicados por ambos entre 2012 e 2023 em revistas acadêmicas.
Os dois primeiros textos buscam explorar interpretações possíveis do pensamento de Fanon, destacando questões de suas formulações intelectuais: “Fanon e a configuração colonialista” (Muryatan) e “Hegel, Fanon e a (suposta) interdição da dialética” (Deivison). Os capítulos 3 e 4 aplicam algumas dessas interpretações para analisar temas adjacentes: “Tortura e configuração colonialista: uma leitura fanoniana do livro 'Tortura na colônia de Moçambique (1963-1974)'” (Muryatan) e “Freud, Fanon e o mal-estar colonial” (Deivison, em parceria com a psicanalista e professora Miriam Debieux).
Os dois últimos textos, “Homi Bhabha leitor de Frantz Fanon: acerca da ‘prerrogativa pós-colonial’ e do Fanon ‘pós-colonial’” (Muryatan) e “Frantz Fanon teórico da tecnologia digital” (Deivison, escrito em parceria com o historiador Walter Lippold), apresentam um diálogo com outros estudiosos de Fanon e que revisitam seu pensamento por perspectivas distintas. Os capítulos podem ser lidos isoladamente, mas há uma lógica de continuidade a partir da organização feita pelos autores. A publicação tem 176 páginas e será vendida por R$ 59.