Julia Codo escava lembranças traumáticas no primeiro romance
Escritora evita a linearidade do relato ao criar narrativa a partir da descoberta dos restos mortais de desaparecidos políticos em cemitério de São Paulo
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Siga noStefania Chiarelli/ Especial para o EM
“Caderno de ossos” é um livro sobre exumações. Em seu primeiro romance, Julia Codo escava uma memória traumática, relativa ao passado brasileiro recente. Depois de anos vivendo na Inglaterra, a protagonista, uma mulher não nomeada, retorna em 2019 a São Paulo, onde sua mãe se dedica aos cuidados com Ernani, o avô adoecido. Ela deixa marido e uma vida desbotada em Londres e passa a se interessar pelas histórias que a morada familiar conta, e também aquelas que esconde.
A personagem busca entender um acontecimento determinante para a ruína familiar: a descoberta, nos anos 1990, da vala coletiva no cemitério de Perus, bairro na zona noroeste da capital paulista. No descampado, mais de mil sacos plásticos com os restos mortais de desaparecidos durante a ditadura militar. Talvez sua tia materna, Eva, estivesse entre eles. E talvez aquele bom avô seja também um desprezível cidadão.
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Nascida na década de 1980, ela narra em primeira pessoa o desconforto diante do silêncio relativo ao paradeiro de Eva. Fuçando pelos cantos da casa na Mooca, acaba descobrindo seus escritos: “Eu não entendia, ainda não entendo, como os cadernos seguiam existindo. As folhas amarelecidas, as pontas desfeitas, as letras apagadas – a capa do segundo caderno também quase solta – apesar disso, estava tudo lá, sobrevivendo”.
O romance avança nessa contramão, lutando contra a casa que cheira a esquecimento. Para o mergulho no passado, é necessária uma viagem ao redor do quarto: não o deslocar-se dos relatos de viajantes, da descrição de paisagens desconhecidas, mas um road movie doméstico, do lento movimento pelos cômodos de uma “casa demente”, em uma mirada de dentro para fora. A pergunta é como narrar a partir dos buracos desse lugar tomado por sintomas – nele falta memória, falta raciocício, faltam registros. Haveria cura?
Para ler a história de Eva, é preciso vasculhar seus cadernos incompletos, suportando as lacunas dessa mulher em fuga. “É estranho procurar sem saber o que se procura”, anota a narradora. A estranheza será a mola propulsora para pôr em marcha a investigação sobre o paradeiro da tia, e também sobre a história dessa parenta marcada pela bastardia, filha de um relacionamento ilegítimo do avô: “Eu não acredito em fantasma, mas, se acreditasse, esse fantasma seria a Eva”.
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Em “Caderno de ossos”, a dimensão espectral surge de várias formas; na ausência de pessoas, na falta de membros (o olho postiço da tia, perdido em decorrência de uma catarata; o braço ausente de sua estranha boneca), na presença de objetos decrépitos e de histórias carcomidas pelo tempo.
Juntar as peças do quebra-cabeça é missão sempre falhada, por comportar a frustração de lidar com uma história brutal, escrevendo com as partes que sobram. A partir desses fragmentos se constitui a gramática de Codo, que trabalha com uma acertada opção narrativa, evitando a linearidade do relato, apresentado em partes quebradas, na recusa de algo totalizante. Trata-se de um calendário em que passado, presente e futuro se superpõem sem cerimônia.
Recompor a história é restituir esse corpo propositalmente apagado. Sobretudo porque a personagem assiste atônita pela televisão à posse do novo presidente – aquele que mais de uma vez exaltou como herói nacional Brilhante Ustra, chefe do DOI-Codi nos anos 1970 e reconhecido torturador. De Londres, o marido questiona o porquê de sua permanência no país em um “dos piores momentos” de sua história.
Impulsionada pela dúvida, ela acompanha o trabalho do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, cujos peritos têm a missão de identificar as ossadas dos desaparecidos políticos. Também assiste a audiências online e se interessa pelos relatórios das comissões de desaparecidos, procurando um espaço nesse labirinto repleto de fantasmas. Reclamar e reconhecer são ações imperativas no contexto sistemático de apagamento da memória nacional. É preciso, igualmente, imaginar.
Atenta aos detalhes, a narradora se demora na descrição de objetos, sensações e ações, também ligada às reações do próprio corpo e aos seus tremores internos, pálpebras que ardem e órgãos em desequilíbrio. Ela escolhe ficar em estado de alerta (às vezes, de paranoia) em relação a tudo o que possa significar. O texto flui na leitura desses sinais e vestígios, mas, por vezes, derrapa ao deixar à vista informações didáticas que pesam na arquitetura narrativa, a exemplo da pesquisa sobre o mito de Cassandra ou de Antígona.
Nascida em 1983, autora do livro de contos “Você não vai dizer nada” (2021), Julia Codo integra uma linhagem de escritoras que não vivenciaram diretamente os Anos de Chumbo, mas experimentam o trauma transgeracional escrevendo a partir de uma memória herdada. Considerando um recorte de autoria feminina, vale lembrar dos romances “Azul corvo” (2011), de Adriana Lisboa, “Mar azul” (2012), de Paloma Vidal, “O inventário das coisas ausentes” (2014), de Carola Saavedra e “O corpo interminável” (2019), de Claudia Lage, para ficar em alguns exemplos.
“Caderno de ossos” também dialoga com a repercussão de “Ainda estou aqui” (2015), de Marcelo Rubens Paiva, que chamou a atenção de novas gerações para um período muitas vezes negligenciado nos bancos escolares. A imagem da casa esvaziada na adaptação do livro feita por Walter Sales ficará na memória dos mais de cinco milhões de espectadores que assistiram ao filme, tocados pelo tema da família desfeita a partir da violência da ditadura militar no Brasil. As paredes nuas, a ausência das vozes e a falta paterna dizem de uma atmosfera muito própria, em que se instala o vazio em espaços anteriormente cheios de vida.
“Caderno de ossos” também multiplica ausências. Frente a isso, a casa decadente deve mesmo vir abaixo, para que sobre seus escombros se construam outros espaços simbólicos. As noções de apagamento e de descarte, categorias tão presentes na discussão sobre a brutalidade do período ditatorial, ecoam na vala viva, em tudo oposta à casa morta: “Há algo de dignidade naquilo que insiste, mesmo que na forma de imagem”. Nos ossos que se fazem letra, o romance vai integrar esse grande arquivo literário – sempre incompleto, sempre por fazer – dos estilhaços da ditadura brasileira.
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STEFANIA CHIARELLI é professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF). Publicou, entre outros títulos, “Partilhar a língua – leituras do contemporâneo” e “Epigramas críticos”.
Trecho
De “Caderno de ossos”
“Não queria mais ficar parada. O pequeno tremor me perseguia pela inércia, eu sabia, para me agitar como um tufão. Não queria mais aceitar a história, o país e a família. Queria mesmo era que me viesse logo um ataque de pânico. Destruir a casa com golpes de martelo, pôr fogo nas cortinas, deixá-las flamejando em carne viva. Explodir a realidade e explodir a estrela velha, transformá-la em poeira cósmica e em buraco negro, me deixar levar pelo buraco negro. Estraçalhar, ter outro cheiro, ter outra voz, cavar até o fundo mais fundo e chegar ao futuro, por pior que ele fosse.”
“Caderno de ossos”
• De Julia Codo
• Companhia das Letras
• 216 páginas
• R$ 79,90