Escritores mineiros homenageiam Régis Bonvicino
Carlos Ávila e Rafael Fava Belúzio registram mensagens e a relevância da obra do poeta paulistano, que morreu aos 70 anos no início do mês
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Siga noCarlos Ávila*/Especial para o EM
“Carlos, aqui quem fala é Régis. Mantenho já há algum tempo contato com Augusto e Haroldo de Campos, principalmente com este último, mas foi por intermédio do primeiro que tive conhecimento de você. Tenho mostrado aos dois meus trabalhos e textos e falado da necessidade de entrar em contato com poetas jovens, trocar e discutir ideias, opiniões, daí Augusto ter me sugerido você; pois ele disse que estamos trabalhando mais ou menos dentro da mesma área de linguagem”. E a carta continuava... Duas páginas datilografadas.
Nunca tinha ouvido falar em Régis Bonvicino. Sua intenção era ‘abrir uma correspondência sobre um assunto onde as pessoas que se interessam por ele são realmente raras’. Era setembro de 1973 (pré-internet – sem computadores ou celulares); tínhamos, então, apenas 18 anos! Nascemos, ambos, em 1955. E começamos a escrever no mesmo período. Conhecemos-nos pessoalmente em 1977, quando fiquei hospedado em sua casa em São Paulo. Na mesma ocasião, conheci Leminski e Antônio Risério. Eles estavam editando a revista ‘Muda’, da qual participei ao lado deles e de outros companheiros.
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Foi o início de uma amizade que durou décadas, até a inacreditável e inaceitável morte de Régis, no último sábado, aos 70 anos, depois de sofrer uma queda na rua em Roma. Foi um duro golpe para mim (estávamos retomando um instigante diálogo sobre poética e política) – também um corte violento na trajetória de um dos poetas mais importantes de minha geração. Grande parte de sua poesia está reunida no volume ‘Até agora’ (SP, Imprensa Oficial, 2010); teve boa recepção crítica e tradução no exterior. Atuou ainda como crítico, tradutor e editor da revista ‘Sibila’.
Régis criou uma antipoesia de enfrentamento de nosso “estado crítico” (título de um livro seu, lançado em 2013) – a vida degradada e saturada nos espaços urbanos, onde se atritam diferenças e desigualdades; cenários poluídos e violentos. Sua linguagem é crua e cruel; imagens/metáforas lancinantes, palavras-cacos geradas por um olhar crítico e autocrítico: “Queria descarregar tudo num poema/dizer que o diabo também pagou/o preço do desespero”.
Ousado, criativo e polêmico, Régis deixa uma obra poética forte e contundente. Vai fazer falta.”
* CARLOS ÁVILA é poeta e jornalista. Autor, entre outros livros, de "Bissexto sentido", "Área de risco" e "Poesia pensada".
Um poema
“Dias em seguida”
vida - a que me convidas?
aos becos sem saída,
às noites mal dormidas,
à esperança perdida,
ao dano dos inseticidas,
à brasília podrida,
à fé de n. s. aparecida,
às ideias traídas,
às poesias reunidas,
às migalhas do rei midas,
às verdades não vividas,
aos dias em seguida?
vida - a que me condenas?
à retribuição das penas,
ao riso das hienas,
aos banqueiros da onzena,
ao assassino de viena,
à boa alma de mecenas,
ao remorso de madalena,
ao socorro da sirena,
ao torpor das cantilenas,
à calvície de melena,
ao destino das antenas,
a morrer apenas?
(Régis Bonvicino)
“Perdemos um artista inquietante”
Rafael Fava Belúzio/Especial para o EM
“No começo de agosto, Régis Bonvicino, Viviana Bosi e eu faríamos juntos, no Sesc São Paulo, um evento sobre Paulo Leminski. Assim, a partir da mediação de Rafa Munduruca, vivenciei, nas últimas semanas, conversas breves e intensas com Régis. Parecia animado com a viagem à Itália, com o desejo de estudar cinema. E o que mais me chamou a atenção nessas interações foi a sua inteligência arguta, ensaística.
Ele destacou, em nosso diálogo, certo apreço que temos pelo poema incompreensível. Abordou a Revista Sibila (sibila.com.br), organizada por ele. Reclamou de haver, hoje, excesso de autores e escassez de leitores, além de ser um momento sem muitos filtros críticos. Também fez duras ponderações sobre o ultraliberalismo dos nossos dias e ainda sobre o que há de mais reacionário no Brasil.
Concordamos que a social-democracia seria um caminho interessante diante das polarizações políticas, além de ser absurdo haver tanto elitismo e tanta pobreza no país. Teceu algumas considerações sobre a sua literatura, lembrando que a afinidade pelo mínimo, presente nela e em Leminski, nasceu na lírica bonviciniana sem ter a influência direta da lírica leminskiana.
Mencionou, de modos variados, muitos autores. Falamos sobre Álvares de Azevedo, com Régis Boncivino salientando sua paixão pelo autor tratado como gótico. Passamos por Alfonso Berardinelli, Boris Schnaiderman, concretismo, contracultura, Paul Celan, Rodrigo Garcia Lopes, entre outros, além do próprio Paulo Leminski, pontuado sobretudo como “um amigo”.
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Do autor de “Distraídos venceremos”, ressaltou a condição econômica modesta e o desejo de se tornar padre. Chegou a falar, mais de uma vez, sobre as cartas por ele enviadas ao escritor curitibano: “acho que se perderam”. No entanto, quem perdeu mesmo, de forma tão abrupta, fomos todos nós.
Perdemos um artista inquietante, inquietudo. Tradutor, editor, ensaísta, missivista, artista plástico. E, especialmente, o raro poeta, com um lugar importante na poesia brasileira. Na sua (anti)lírica tão metalinguística e irônica, ecoam o mencionado Álvares de Azevedo e a poesia francesa do fim de século 19.
Mais: há nele um legado ao mesmo tempo pós-utópico e capaz de tornar novo o ‘make it new’ de Pound. Incorpora técnicas cinematográficas. Revisita Oswald de Andrade, Drummond, João Cabral e muito do concretismo, mas também elabora uma estética que pode ser vista como pós-concreta.
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Recentemente, alguns de seus primeiros poemas foram incluídos na antologia “Memorial poético dos Anos de Chumbo”, o que demonstra, tanto na ditadura militar quanto hoje, a sua renovada preocupação com os perigos da extrema direita.”