PRODUÇÃO EDITORIAL

Tese faz mapeamento inédito da produção editorial em BH

Levantamento recente da UFMG aponta mais de 100 editoras em BH e região, das quais quase 70% foram criadas neste século

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Flávia Denise de Magalhães/Especial para o EM

Belo Horizonte, até 1931, não dispunha de uma única editora. Não porque faltassem livros para serem publicados. O romance “O capote da guarda”, por exemplo, ficou perdido na história porque, apesar de ter sido publicado parceladamente no jornal O Estado de Minas (sem relação com este periódico), o livro não encontrou editora que o publicasse na íntegra e hoje não há registro de seus cinco primeiros capítulos.

Também não havia escassez de escritores na cidade. A própria lista dos responsáveis por “O capote da guarda” atesta a presença de autores renomados: Aníbal Machado, Carlos Góis, Ernesto Cerqueira, Laércio Prazeres, Berenice Martins Prates, João Lúcio e Milton Campos. De fato, não é muito difícil evidenciar a existência de grandes escritores na cidade, mesmo no início de sua história. Basta folhear “O desatino da rapaziada”, de Humberto Werneck, que registra a primeira editora que se tem notícia na cidade: a cooperativa editorial Os Amigos do Livro, idealizada por Eduardo Frieiro em 1931.

Foi só nos anos 1960 que Belo Horizonte tornou-se uma cidade de muitas editoras, na mesma década em que a pesquisadora Sandra Reimão identifica uma explosão no mercado editorial brasileiro. O número de editoras na cidade aumenta lentamente a cada década até os anos 2000, quando ele explode: 30,8% das editoras de BH iniciaram atividades até 1999 e 69,2% delas abriram as portas a partir de 2000.

O volume de novas editoras abertas nos últimos 25 anos é impressionante, mas o fenômeno, cujos contornos são claros ao olharmos para a capital mineira, é tendência mundial. Apesar de haver poucas pesquisas quantitativas do campo editorial, as que existem dão indícios de movimentos similares: o advento da internet, que ganhou força nos anos 2000, fez aumentar o número de editoras – e não diminuir, como temiam as análises mais luditas. A era de ouro da edição está no tempo presente.

Esse é um dos achados da minha tese, “Texto e livro literários: imbricações dos processos de criação e de edição em Belo Horizonte entre 2010 e 2020”, defendida em abril na Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com orientação do professor doutor Luis Alberto Brandão.

Na pesquisa, eu mapeei a edição em Belo Horizonte entre 2010 e 2020. Um dos achados foi que a editora mais antiga ainda em funcionamento da cidade é, assim como a editora Os Amigos dos Livros, marcada pelo esforço cooperativo. Fundada em 1961, a Coopmed é uma editora e livraria focada nos estudantes da área de saúde, criada por iniciativa de um grupo de alunos e professores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

Também aprendi que Belo Horizonte e sua região metropolitana têm 113 editoras e 38 selos editoriais. É um campo profundamente conectado com o universo educacional e cultural da cidade e que publica, majoritariamente, não ficção, incluindo nessa chancela livros jurídicos, acadêmicos e ensaios.

Seria impossível trazer todos os resultados da pesquisa para este artigo, mas compartilho com o leitor do Estado de Minas um recorte dos resultados da pesquisa em três focos: uma impressão panorâmica do campo na tentativa de dar relevo ao número de 113 editoras, dados do tipo de livro que é publicado na cidade e uma análise do rearranjo do próprio conceito do editor identificado no campo belo-horizontino.


Peça de edição: O que é um selo?

Qual é a diferença entre uma editora e um selo editorial? Estritamente falando, um selo editorial é uma marca que identifica a origem editorial de um livro. Já a editora é uma empresa que se responsabiliza pela edição e publicação de um livro. Em princípio, pois, toda editora é também selo editorial, mas é possível que uma editora tenha mais de um selo, dividindo e organizando seu catálogo.

No campo de Belo Horizonte existem 113 editoras e 38 selos. O primeiro selo da cidade só foi lançado em 2000, quando a editora Dubolso, fundada em 1980, abriu o Dubolsinho, dedicado ao infantojuvenil. Esse primeiro selo puxou – e confirma – uma tendência: dos 38 selos da cidade, 17 são dedicados à publicação infantojuvenil.


Campo editorial de BH

Para traçar o relevo da edição em BH e sua região metropolitana a partir da lista de 113 editoras, considerei dois aspectos: o tamanho do catálogo ativo e qual região de Belo Horizonte cada editora está. Ao analisar os 9.725 livros identificados como publicados na cidade, pode-se confirmar aquilo que qualquer belo-horizontino minimamente interessado no mundo do livro já sabe: o Grupo Autêntica é a maior editora de BH, com 1.602 títulos. Pode-se também destacar o que talvez não seja tão conhecido: a editora jurídica D’Plácido está em segundo lugar, com 1.331 títulos. E a terceira maior editora é a UFMG, com 551 títulos publicados.

Ao agrupar as editoras com suas vizinhas, acabou por emergir o campo editorial de Belo Horizonte, com suas trocas, conexões e histórias. Não é surpresa a região Centro-Sul – que engloba a geografia original da capital mineira e concentra comércio, serviços e cultura – ter também o maior número de editoras e títulos publicados. São 37 editoras (32,7% das 113 mapeadas) e totalizando 3.305 títulos (34% dos 9.725 catalogados).

A região é endereço de nove das editoras mapeadas que funcionam como livraria física: Miguilim, Coopmed, D’Plácido, Del Rey, Polvilho, Quixote+DO, Scriptum e Crisálida. Também estão nessa região os catálogos das editoras D’Plácido, Del Rey e Initia Via, todas dedicadas à publicação de livros jurídicos, somando 2.067 títulos, o que equivale a 21,3% dos livros mapeados. É uma fatia considerável (e muito pouco estudada) do universo editorial da cidade.

Aliás, na pesquisa ficou claro que a não ficção e o infantojuvenil são as grandes vocações editoriais da cidade. Entre as dez editoras com maior catálogo ativo no levantamento, quatro são editoras com atuação forte ou exclusiva na publicação de livros jurídicos (além das já citadas, incluo aqui a Letramento, cujo braço jurídico tem títulos de peso), quatro são editoras com atuação forte ou exclusiva na publicação de infantojuvenis (Grupo Autêntica, Grupo Lê, Dimensão, RHJ), uma tem foco na cultura afro-brasileira, incluindo infantojuvenis sobre o tema (Mazza), e uma editora é universitária (UFMG).

É interessante perceber ainda que, apesar de suas atuações principais, a maior parte das editoras estão envolvidas na publicação de vários gêneros, e o tipo de livro que publicam muda ao longo dos anos. Praticamente todas as editoras jurídicas têm algum livro literário em seu catálogo. Tome o Grupo Autêntica como exemplo. Fundada em 1997 por Rejane Dias, a editora começou no mercado editorial acadêmico, com a publicação de teses e títulos de peso das Ciências Humanas. Mas esse foi o início de uma atuação mais ampla.

Da publicação de pesquisa acadêmica, a editora passou a publicar livros para formação de educadores e, com as compras governamentais do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), levantou capital para diversificar suas publicações. Hoje, a editora tem presença considerável no mercado infantojuvenil e publica Paula Pimenta, cujo sucesso estrondoso também ajudou a financiar a expansão do grupo.

Em 2011, a editora se tornou Grupo Editorial Autêntica e, em 2024 era responsável por 16,5% dos livros de BH e somava, além da chancela Autêntica, outros seis selos ativos, entre eles Yellowfante, de infantis, Nemo, dedicado aos quadrinhos, e Autêntica Contemporânea, dedicado à publicação de literatura.

Onde está a literatura?


Durante minha pesquisa, a conclusão de que Belo Horizonte publica majoritariamente não ficção e infantojuvenil me obrigou a parar em reflexão. Isso porque levantei dados sobre o campo editorial da cidade com diferentes metodologias e, quando estava na fase de análise do material, por um momento eles pareciam estar em conflito.

Na etapa da catalogação dos livros publicados, descobri que somente 1.036 dos 9.725 títulos – o equivalente a 10,7% – são de literatura brasileira não infantojuvenil. Mas quando enviei questionário para os editores da cidade perguntando que gênero publicam, recebi a resposta de que 79,1% das editoras publicam literatura brasileira. Resultado superior ao de pesquisa acadêmica (58,1%), não-ficção (55,8%), ensaios (51,2%) e literatura infantojuvenil (51,2%).

Como conciliar os dois resultados? A resposta está na diferença entre o volume de títulos publicados e a presença de alguma publicação de literatura brasileira no catálogo das editoras. Mesmo entre as editoras com grande foco em outros tipos de publicação, a literatura brasileira está presente no catálogo, representada por poucos títulos. Ou seja, muitas editoras publicam poucos títulos de literatura.

Ainda assim, o cenário de publicação de literatura na cidade não é inteiramente desanimador. Ao longo dos anos 2010, o número de títulos literários publicados cresceu a cada ano, saindo de 23 livros em 2010 para 140 em 2019 – e 129 em 2020, quando a pandemia da Covid-19 freou a tendência.

A lista das editoras que mais publicaram literatura entre 2010 e 2020 é encabeçada por três selos do Grupo Autêntica: Gutenberg, Autêntica e Nemo. Moinhos, Ramalhete, Quixote+DO, Javali, Relicário, Cas’a e Crisálida também compõem o conjunto das dez editoras que mais deram espaço para a literatura na cidade.

O que é edição?

Definir o trabalho do editor não é fácil. Há uma noção coletiva sobre o que faz o editor, um sentimento de “sei o que é”. Apesar de imprecisa, essa noção coletiva – não necessariamente conectada a tradições editoriais específicas – toca em alguns pontos essenciais do trabalho editorial. Um desses pontos está no fato de que temos duas palavras para o trabalho: editar e publicar. Não são sinônimo e indicam uma compreensão instintiva de que existem, de fato, dois processos distintos no trabalho, o que explicita a função dupla do editor. Essa função dupla talvez seja o ponto mais bem desenvolvido da teoria da edição. Do pesquisador francês Pierre Bourdieu ao argentino José Luis de Diego e o espanhol Constantino Bértolo, todos observam a existência de dois polos, que ganham nomes diferentes na escrita de cada autor, respectivamente: capital simbólico e capital financeiro, cultural e comercial, que permitem ao editor se posicionar como humanista ou capitalista selvagem – ou, na prática, em algum ponto entre os dois polos.

Edição e publicação não são a mesma coisa. Mas também não são desconectadas. Tanto edição quanto publicação começam na seleção do original. A edição tem como objetivo a publicação. A publicação do livro tem a edição como etapa necessária. São complementares.

Ter clareza de quais são os processos da edição e publicação de livros e como eles se dão é importante para olharmos a edição que é feita na cidade. No questionário que os editores responderam, por exemplo, a distribuição de livros, essencial para que o livro chegue ao leitor, foi o procedimento da edição e publicação menos executado pelos editores.

Esse número pode estar ligado ao fenômeno da autopublicação e à modificação da função dupla do editor que minha pesquisa identifica no campo editorial de Belo Horizonte. No questionário respondido por autores de literatura de BH, 17,3% afirmaram ter autopublicado ao menos um de seus livros. No entanto, 76,9% desses mesmos autores disseram ter financiado parcialmente ou totalmente a publicação de ao menos um de seus livros. Ou seja: em Belo Horizonte, pagar pela publicação do próprio livro não é entendido como autopublicação.

No processo tradicional de circulação de capitais na edição e publicação, o capital financeiro faz um trajeto linear: do leitor para o editor para o autor. Há aí um ponto importante. Na lógica capitalista, você atende às necessidades e expectativas de quem paga a conta ou detém o capital financeiro. Assim, nesse modelo de circulação de capital, o editor atende às expectativas do leitor e o autor atende às expectativas do editor (há mais do que um atendimento de expectativa nesse relacionamento, mas para o argumento vale a simplificação).

A função dupla do editor é inteiramente dependente desse fluxo de capital financeiro. O editor deve ser capaz de estabelecer esse fluxo financeiro, mas também deve ter a capacidade intelectual de selecionar e transformar o texto em livro. Se o fluxo é modificado, o capital financeiro deixa de fazer um trajeto linear do leitor para o editor para o autor e passa a ser acumulado pelo editor.

Se o produto é a publicação do livro, comprada pelo autor, há menor incentivo para (ou talvez não haja expectativa de) o editor encarar a complexa etapa de distribuição e distribuir/vender o produto livro para o leitor. Esse acúmulo financeiro modifica a função dupla do editor. O negócio deixa de ser a venda de livros e passa a ser a venda do serviço de publicação. Cria-se o editor fornecedor, que se soma aos já mapeados editor tradicional e ao autor-editor.

Não acredito que os 79,6% de autores que financiaram a publicação de seu livro o tenham feito com um editor fornecedor. A edição e publicação literária é um negócio notoriamente difícil e pedir para que o autor contribua com o pagamento dos custos da edição e publicação pode ser o modo que um editor tradicional encontrou para viabilizar o seu negócio.

Fato é que a edição contemporânea mapeada em Belo Horizonte é um cenário de transformação e que, apesar da carência de políticas públicas de apoio, o campo tem se expandido mesmo diante de desafios econômicos e estruturais. Em um cenário cada vez mais digital, com crises econômicas e transformações sociais e climáticas profundas, o papel do editor, assim como a própria noção de livro e de literatura, está em transformação.

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É necessário que a cidade encontre maneiras de estimular esse campo editorial, garantindo que o livro produzido localmente continue a ser uma parte vital da cultura belo-horizontina, um trunfo em uma era de conglomerados internacionais e monopólios editoriais.

FLÁVIA DENISE DE MAGALHÃES é jornalista e pesquisadora da edição, com doutorado em Estudos Literários

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