UMA VIDA ENTRE DOIS SILÊNCIOS

Schwarcz: O editor é um "intermediário de múltiplos encontros"

Ao lançar "O primeiro leitor", fundador da Companhia das Letras reflete sobre a própria trajetória, como as mudanças na sociedade impactaram a sua editora

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Entrevista/Luiz Schwarcz (editor)

“Leio os livros como todos os leitores, de forma pessoal e única, assim como viro uma página tentando assimilar dela o máximo que posso, acariciando o papel, mesmo que por um brevíssimo instante, antes de me despedir dele, e assim partir para o que me espera logo adiante”, afirma Luiz Schwarcz em “O primeiro leitor”. A carícia no papel é apenas uma das ações que o editor se permite ao manusear os livros que imprime. Durante a entrevista ao Pensar, realizada por videochamada e complementada por e-mail, o editor apanhou um dos lançamentos recém-chegados da gráfica e o cheirou, repetindo o que fazia um de seus mestres, Caio Graco Prado, na Brasiliense nos anos 1980.

“Adquiri o hábito de cheirar as primeiras cópias que chegavam a mim, para a aprovação da edição. Não sei se aquele ritual da Brasiliense me sugestionou para sempre, mas percebe-se nos livros novos, mesmo sem o uso exclusivo de cola, um odor especial, que resta da impressão, e um calor particular. Recebemos então esse tipo de filho cheirando-o. Um bom ritual para ser analisado pelos antropólogos de plantão”, conta Luiz Schwarcz no capítulo “A ousadia dos sonhos”. “Uma característica fundamental dos livros é a sua unidade. Ou a integridade, nas várias acepções do termo. Quando cheiramos o local da cola ou da costura, estamos nos aproximando sensorialmente daquilo que é crucial na existência dos livros: o fato de eles serem unos, íntegros”, complementa. Leia, a seguir, a entrevista de Luiz Schwarcz ao Estado de Minas.

Se juntarmos os livros “O ar que me falta” (2021) com “O primeiro leitor” (2025), teremos as suas memórias?
Não são as minhas memórias completas e não acredito que eu venha a fazê-las. O subtítulo de “O primeiro leitor” (“Ensaio de memória”) tem várias possibilidades de entendimento: o ensaio como alguma coisa que prepara, o que é parcialmente uma memória. Mas também funciona como se fosse um ensaio feito de memória, como se eu estivesse me lembrando. Quis caracterizar os ensaios como não pretensiosos. Os ensaios têm partes memorialísticas e as partes memorialísticas têm algumas ideias também. Estou numa encruzilhada. Não me vejo sentando e fazendo uma obra memorável, de fôlego. Se eu pensar na minha carreira de escritor, que é pequena, ela pode talvez se encerrar aqui. Porque não me vejo mais fazendo obras de ficção. E não tenho a intenção de fazer uma memória “completa”. Até porque elas nunca são completas. Esses dois volumes podem conformar uma memória com incompletude. Como falo no livro, citando o belo romance (“O último dos copistas”, publicado pela Companhia das Letras em 2024) do (autor mineiro) Marcílio França Castro, a incompletude é um gênero literário. Isso vale também para as minhas obras, que não sei se são literárias, mas são incompletas. Então, nesse momento, só olho para trás. E o melhor amigo do escritor, e não necessariamente do editor, é o tempo. Preciso de um tempo também para decantação.

“A literatura nada mais é do que o encontro de dois silêncios separados no tempo: o do escritor e do leitor”, você afirma no livro. O papel do editor seria o de promover o encontro desses dois silêncios?
De certa maneira, sim. Ao tomar a decisão de editar um livro, usando a palavra mais correta, de publicar, você torna público um trabalho extremamente individual, subjetivo, solitário. E aí cabe a você, de certa maneira, ser um intermediário de múltiplos encontros. Esse papel de intermediário é o que eu ressalto no livro. Também poderia usar outros termos que cabem ao trabalho do editor: facilitador, promotor... O que não cabe é criador ou artista. Esse tipo de termo funciona para definição dos escritores e, um pouco, dos leitores na medida que eles recriam o livro que estão lendo.

É importante que o editor também tenha o seu silêncio, ou seja, que ele também possa mergulhar na leitura e fazer com que aquele livro ‘fale’ com ele. Afinal de contas, estamos falando de nosso trabalho como primeiros leitores. Então, essa leitura também é feita em silêncio. Na sequência, o trabalho passa a ser coletivo dentro da editora. Aí o livro vira um objeto de diálogo.

Na condição de primeiro leitor, como você age quando lê os originais de um autor da casa e tem o encantamento da leitura e também quando ele não correspondeu, naquele livro, à expectativa como editor? Qual a contribuição que pode dar?
Vou citar dois casos de forma genérica. Tive experiências desse encantamento com autores consagrados que vieram para Companhia das Letras e casos de apostas: um escritor jovem que produziu uma obra com produção independente ou em uma pequena editora já deu mostras de que poderá se transformar num grande autor. Há o encantamento das descobertas, uma antecipação de que você está se preparando para uma descoberta que depois se realiza ou não. A outra parte da sua pergunta é um momento muito difícil do editor. Tem uma expectativa que se frustra e que exige da nossa parte uma posição franca. Nessa hora é preciso ter muito mais do que dez dedos para exprimir a opinião de editor com a franqueza que precisamos ter, mas com delicadeza porque estamos falando de um esforço muito grande que o autor fez: um trabalho muito longo, solitário e há uma criação de expectativas muito grande com relação à leitura que o editor fará. Então há a necessidade de uma generosidade ao não gostar de um trabalho. Tentar contribuir para que o escritor encontre as coisas que já estão no seu trabalho, de certa maneira, mas que por algum motivo ainda não se encontram expostas no original (...). Há casos em que nós tentamos influenciar no resultado uma vez, duas vezes, eventualmente três, mas resolvemos publicar o livro com suas imperfeições. O trabalho do editor acompanha a carreira de um escritor e a carreira de um escritor não é dada só a partir dos ápices. É importante ter consciência do que foi tentado e levar em consideração as obras futuras. E, quando há um passado importante e há perspectiva de colaboração futura, muitos livros são aceitos sem que a opinião do editor prevaleça. Nós (editores) temos um limite até onde podemos ir.

No livro você afirma não haver nada mais importante na vida de um editor do que a descoberta de um novo talento literário. Qual foi a primeira vez que você sentiu essa descoberta e a mais recente?
O primeiro livro de um autor nacional na Companhia das Letras não foi de um autor jovem, mas do (jornalista) Ivan Lessa (1935-2012). Nós o conhecíamos do Pasquim e de outros trabalhos jornalísticos e fizemos um livro de contos dele chamado “Garotos da fuzarca”. Foi o nosso primeiro livro de ficção nacional e, por isso, tem um certo significado. Outro exemplo é o Drauzio Varella (“Estação Carandiru”), que já era um médico muito respeitado, mas ninguém o conhecia como escritor. Foi um talento literário que nós descobrimos. Ele não é um médico que escreve, é um grande escritor. Recentemente, publicamos muitos livros de autores jovens que considero muito bons, mas não necessariamente foram descobertos aqui. Fizeram alguma publicação e percebemos que valeria a pena investir num segundo livro.

Quais contribuições a Companhia trouxe ao mercado brasileiro?
Uma contribuição que eu consigo assumir sem ficar embaraçado é o profissionalismo. Eu digo no livro que a Companhia não inventou nada. As coisas já estavam no mercado editorial mundial e no brasileiro. O que nós fizemos foi pegar o melhor de várias editoras.

Você escreveu um livro infantil chamado “Minha vida de goleiro”. Se a atividade editorial fosse um time de futebol, em que posição jogaria o editor?
Teria de ser polivalente como são os jogadores de hoje. Defendem e atacam. Tem que ser centroavante e agarrar no gol com galhardia. Precisa arrumar o time também e, quando necessário, jogar na retranca. Ser um pouco de tudo.

Como vê o aumento expressivo do número de editoras no Brasil nos últimos anos?
Essa pulverização é maravilhosa. As editoras novas fazem um trabalho de descobrir talentos, às vezes até mais do que nós. Lançam livros de tiragens baixas, mas isso não os desqualifica, pelo contrário. Acho que, se olharmos para o mercado somente pelas grandes tiragens e pelos livros de sucesso, teremos uma postura extremamente elitista e deixaremos de entender que um livro que atinge mil exemplares, ou até menos, tem uma importância fundamental para a cultura. Pode atingir pouca gente, mas traz uma contribuição literária, científica, de diálogo muito importante que terá influência na sociedade e grande representatividade no mercado editorial. Nesse sentido, as editoras pequenas foram muitas vezes as grandes porta-vozes da diversidade editorial. Nós entramos nisso com alma, mas reconhecendo que algumas editoras pequenas levantaram as bandeiras de identidade e diversidade antes das editoras grandes.

No livro, você afirma que o mercado é bem diferente de 38 anos atrás. Você acha que a sua editora conseguiu acompanhar todas as mudanças do mercado e da própria sociedade?
Talvez as editoras pequenas tenham conseguido olhar mais essa diversidade antes da própria Companhia. Hoje, eu tenho muito orgulho do que nós estamos fazendo em diversidade. A cor da editora é outra. Temos hoje cinco editores negros. Fazemos cursos de profissionalização para várias áreas. Design, tradução, preparação de texto. Fizemos um workshop e alguns meses através do qual foram premiados com o emprego duas pessoas negras e uma indígena e esta última já é uma editora na Companhia das Letras. E o catálogo mudou completamente de cor também. É assustador ver como era branco o nosso passado. Essas mudanças foram extremamente necessárias. Espero ter acompanhado o fluir do tempo. E, das sete pessoas na diretoria da Companhia das Letras, cinco são mulheres.

Dos dez perfis incluídos no livro, nove são de homens. A única escritora é Susan Sontag (1933-2004). O fato de haver menos mulheres é um reflexo dos tempos de quando você começou?
Pensei muito nisso que você falou. Acho que é um reflexo do tempo. Há dois outros perfis que estão embutidos no meio do livro, da agente literária Deborah Rogers e da chefe de direitos autorais da editora Knopf, que era editora também, a Carol Brown Janeway. Tentei fazer perfis das duas, mas seria forçar a barra, não segurava um capítulo inteiro. E eu não tive relacionamentos tão longos, ou tão profícuos, com escritoras como foi com a Susan Sontag. Conhecia bem a Cynthia Ozick, uma grande escritora, mas está viva ainda, bem idosa (a autora de livros como “Corpos estranhos” e “O xale” nasceu em 1918). Então, há relacionamento com outras escritoras, mas não no nível que eu tive com a Susan. Eu teria que inventar para poder atingir essa cota.

Por que as mulheres demoraram tanto tempo para conquistar mais espaço de decisão no mercado editorial brasileiro?
Porque as editoras não estão fora do contexto (social). Basta ver também quantas mulheres havia na gestão de grandes empresas de outros ramos. A editora faz parte de um contexto machista, talvez, de menos oportunidade para as mulheres, que galgaram posições maiores nas últimas décadas.

Mas as pesquisas mostram que as mulheres leem mais que os homens, certo?
Sim. Há mais leitoras mulheres do que leitores homens. Elas ditam as regras no mercado de livros e, muitas vezes, um sucesso depende delas. Mas, voltando às editoras, vocês têm um ótimo exemplo em Minas. O Grupo Autêntica é comandado pela Rejane (Dias), uma editora brilhante. E há muitas mulheres no comando de editoras pequenas, além das CEOs de grandes editoras. Na parte literária, hoje é mais fácil ser bem-sucedido com a publicação de mulheres do que de homens. E, de novo, a Companhia espelha essa transformação; não está atrás nem à frente.

“No meu dia a dia, grande parte das decisões são de cunho literário ou comercial. Mas a política é também um importante componente, que influi na postura de um editor. Sempre que posso, procuro mesclar os três fatores, e sou bem mais feliz quando penso no primeiro e no terceiro”, você afirma no livro. Como analisa a política do governo Lula para o seu setor?
O presidente tem sincera vontade de realizar um governo de livros como prometeu, mas a equipe do Ministério da Educação até agora não seguiu sua vontade. Há um esforço concreto para melhorar as coisas este ano. Mesmo assim não foi criado nada de novo na área. Falta também destinar mais verba ao Ministério da Cultura para uma verdadeira política de valorização das bibliotecas públicas das cidades.

Ao ler os originais de um autor, você ainda sente o encanto inicial?
Eu sinto. Ainda bem. Seria muito chato trabalhar sem encanto. E vibro muito com os originais que eu leio.

São quase 40 anos editando livros. Que diria hoje ao Luiz Schwarcz que vendeu um apartamento e pediu dinheiro emprestado para abrir uma editora de livros no Brasil?
Que acredite no papel e na força da literatura e da discussão das ideias para a construção de um país melhor.

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O que falta editar?
Há grandes autores publicados por outras editoras. Quem não gostaria de editar Clarice Lispector, García Márquez... Um tempo atrás, quando me fizeram essa pergunta, respondi: Thomas Mann. E agora Thomas Mann já é parte do catálogo da Companhia. Às vezes essas coisas vêm aos acasos. Os agentes (literários) querem uma mudança e nos procuram. Mas nunca queremos interromper a relação de um autor com um editor. Eu acho que falta editar tudo que é bom. É uma lista infinita. 

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