UMA VIDA ENTRE DOIS SILÊNCIOS

Livro de Luiz Schwarcz une reflexões e histórias com escritores

"O primeiro leitor" traz ensaios e histórias do editor da Companhia das Letras com José Saramago, Jô Soares, Rubem Fonseca e outros autores

Publicidade
Carregando...

O editor Luiz Schwarcz é implacável com o ficcionista Luiz Schwarcz. “Talvez meus contos não sejam ruins, mas são medíocres, no sentido de médios. E todas as minhas tentativas de fazer romance foram fracassadas e suficientes para me colocar no lugar de entender que não tenho fôlego para fazer essa ficção”, afirma sobre a própria obra ficcional, formada pelas coletâneas de contos “Discurso sobre o capim” (2005, que contraria a avaliação do editor-autor e inclui ao menos um grande conto, “Acapulco”) e “Linguagem de sinais” (2010), além dos infantis “Minha vida de goleiro” (1999) e “Em busca do tesouro da juventude” (2013).

Schwarcz ocupa a estante reservada aos títulos de não ficção da Companhia das Letras, editora fundada por ele em 1986, com duas narrativas memorialistas: “O ar que me falta: História de uma curta infância e de uma longa depressão” (2021) e o mais recente, “O primeiro leitor: Ensaio de memória”. O lançamento de 2025, por muito tempo, iria se chamar “Cartas de amor aos livros”. “Mas o título carregava um toque entre o doce e o apelativo”, conta, na introdução, o editor paulistano, nascido em 1956. “Assim, as cartas acabaram virando perfis, em que procurei fugir de um tom formal ou acadêmico”, lembra, ao explicar a divisão do livro. Os capítulos ímpares trazem reflexões sobre assuntos do mundo editorial; nos pares, histórias de escritores (Amos Oz, José Paulo Paes, José Saramago, Paulo Francis, Oliver Sachs, Susan Sontag, Paulo Francis, Rubem Fonseca) e editores (Caio Graco Prado, Jorge Zahar), todos já falecidos. “A escolha de um e de não outro escritor ainda no exercício da profissão seria impossível e injusta”, justifica.

“Editor bem-sucedido é aquele que está constantemente encontrando novos escritores, cultivando seus talentos e publicando-os com sucesso financeiro e de crítica”, define A. Scott Berg em “Max Perkins – Um editor de gênios”, biografia do profissional que marcou a atividade editorial ao trabalhar com gigantes da literatura norte-americana do século 20 como F. Scott Fitzgerald, Thomas Wolfe e Ernest Hemingway. Em “O primeiro leitor”, Schwarcz conta que se emocionou diversas vezes ao ler a biografia de Perkins. “Encontrei uma grandeza na profissão em que atuo, grandeza esta que não cheguei perto de exercer”, avalia. Em “Um editor de gênios”, Berg narra um dos ensinamentos que Max Perkins aprendeu com um editor veterano, William Brownell. A pior razão para publicar um livro é achá-lo parecido com outro, pois “a imitação é sempre inferior”.

Os dois mentores do CEO da Companhia das Letras, “que ajudaram a fazer de mim o que sou”, estão sublinhados em “O primeiro leitor”. Do “grande ídolo” e “segundo pai”, Jorge Zahar, diz ter recebido “aulas de generosidade e dignidade” e guardado conselhos preciosos, como o de guardar na gaveta as cartas furiosas que escrevia em resposta a desafetos e resenhistas. Mais intensa foi a convivência com Caio Graco Prado. O editor da Brasiliense, editora na qual Schwarcz começou como estagiário no final dos anos 1970, protagoniza dois dos 22 capítulos do livro, com episódios de descobertas, divergências, afetos e mágoas. “Creio que a lição fundamental que havia aprendido com ele dizia respeito à importância da coragem no dia a dia de um editor”, revela.

“Usina de ideias” impulsionada pela visão de Caio Graco e por um então iniciante Schwarcz, a Brasiliense marcou época nos anos 1980 com o lançamento de coleções como Primeiros Passos (mais de cinco milhões de exemplares vendidos), Encanto Radical, Tudo é História (que selou a amizade de Luiz com o historiador mineiro Francisco Iglésias), Cantadas Literárias (batizada por Schwarcz) e Circo de Letras, embrião da Companhia. “Ele (Caio Graco) me ensinou boa parte do que eu precisava para ser um editor: honestidade de propósitos, cuidado ao ler um original, dedicação e sinceridade ao tratar com os autores, além da criatividade ao colocar um livro no mundo”, reconhece Schwarcz, ao se referir ao editor que morreu em acidente de motocicleta em 1992, aos 60 anos.

“Qualidade radical”


A Companhia das Letras surgiu no mercado “prometendo a capacidade comercial da Record, a qualidade editorial da Nova Fronteira e a ousadia mercadológica da Brasiliense”, afirma Leonardo Neto, em “100 Nomes da Edição no Brasil” (Oficina Raquel, 2020). “A promessa de qualidade radical chamou a atenção do público”, lembra o jornalista, ao traçar o perfil de Schwarcz e outros profissionais que se dedicaram ao livro no país.

Ao longo das décadas, a promessa de qualidade radical atraiu parte expressiva dos escritores mais conhecidos do Brasil – Chico Buarque, Milton Hatoum, Raduan Nassar, Rubem Fonseca (vínculo desfeito após um e-mail desaforado enviado por engano ao editor pelo autor de “A grande arte”) – e ganhadores do Nobel como Toni Morrison, J.M. Coetzee, Orhan Pamuk e José Saramago. Dos encontros com o português, de quem se tornou tão próximo que passou a hospedá-lo em sua casa, Luiz Schwarcz relata o encanto com a escuta da leitura em voz alta de páginas ainda inéditas de “Histórias do cerco de Lisboa”, as viagens pelo Brasil para intermináveis sessões de autógrafos, almoços com Jorge Amado e Caetano Veloso, e o dia da entrega, em Estocolmo, do prêmio maior da literatura: “Construímos a maior intimidade que jamais tive com um escritor estrangeiro.”

Ao longo de quase 40 anos, Luiz Schwarcz construiu um conglomerado com mais de cinco mil títulos publicados em 19 selos editoriais e uma média de 300 lançamentos por ano. Desde 2018, a Companhia das Letras passou para o controle acionário da Penguin Random House, mas Luiz segue como principal executivo e sócio minoritário com a mulher, a antropóloga Lilia Schwarcz. A negociação com uma das cinco maiores editoras norte-americanas foi justificada, à época, pelo editor brasileiro como decorrente, entre outros fatores, das “visões de longo prazo em relação ao mercado livreiro”.

“O mercado editorial vai mudar como tudo, haverá um reforço dos hábitos de compra on-line, mas tenho certeza de que as livrarias de rua continuarão fortes, pois o serviço que elas prestam é diferenciado. E as empresas editoras trabalharão parcialmente em home office”, afirmou Schwarcz no lançamento de “O ar que me falta”, em 2021, ao traçar cenário da atividade editorial pós-pandemia. “As previsões se confirmaram. Hoje não vejo muitas mudanças diversas, só o aprofundamento dessas”, acrescenta, quatro anos depois.

Se o mercado passou por profundas transformações desde 1986, o que se mantém inalterado é um dos hábitos de leitura de Luiz Schwarcz. Ao editar, ele escuta música instrumental – jazz, música clássica – ou fica na companhia de um velho amigo: o silêncio. “Talvez se possa até dizer que a literatura nada mais é do que o encontro de dois silêncios separados no tempo – o do escritor e o do leitor. Paradoxalmente, é o silêncio que, na literatura, facilita o caminho da fúria. Ao ler um livro, somos transportados ao tempo escolhido pelo autor. Nele encontramos emoções sutis e arrebatadoras, em graus e nuances originais e únicos (...). Por outro lado, o editor deve voltar ao silêncio que antecedeu a escrita, quando o escritor só via a página ou a tela branca diante dele, para compreender melhor a fragilidade que será exposta e compartilhada através da narrativa literária”, recomenda em “Sua majestade, o silêncio”, um dos capítulos mais inspirados do livro de (quase) memórias, antes de resumir o que tentou – e conseguiu – em “O primeiro leitor”: “Embaralhei aqui o que pensei até hoje sobre a minha profissão, as lembranças dos meus dois mestres e o que vivi com tantas autoras e autores; e disso procurei tirar um livro.”

Reprodução

“O primeiro leitor: Ensaio de memória”
• Luiz Schwarcz
• Companhia das Letras
• 304 páginas
• R$ 74,90


Três êxitos e um erro

Luiz Schwarcz narra, em “O primeiro leitor”, como nasceram best sellerse decisões editoriais equivocadas da Companhia das Letras

“Rumo à estação Finlândia”, de Edmund Wilson (1986)

Reprodução

“‘Rumo à estação Finlândia’ me havia sido indicado por Paulo Sérgio Pinheiro quando eu ainda estava na Brasiliense. Caio (Graco Prado) não quis editá-lo, por causa do tamanho. Guardei-o na gaveta. Poucos meses depois do jantar, saíam os primeiros quatro títulos, para minha surpresa com bastante sucesso. Além do livro de Wilson, ‘O anticrítico’ de Augusto de Campos e a coletânea de poemas de (W.H.) Auden foram reimpressos rapidamente. O romance de Bernard Malamud, ‘A graça de Deus’, que na minha opinião iria ser o mais vendido, não foi tão bem. O destaque ficou mesmo com a história do socialismo narrada pelo notável crítico norte-americano, que vendeu mais aqui do que no seu país de origem e permaneceu em primeiro lugar nas listas de mais vendidos por longo período, espalhando o nome da Companhia das Letras pelo país.”

Reprodução

“O Xangô de Baker Street”, de Jô Soares (1995)

“Jô Soares estava tomado pela ideia que resultaria no seu primeiro romance, ‘O Xangô de Baker Street’ (...). Como em todos os seus livros posteriores, o escritor preparou um storyboard, planejando de antemão cena a cena. Na confecção sempre surgiam surpresas, mas o básico era todo planejado. Jô pediu que eu, como editor, e a Lili, como historiadora, acompanhássemos a escrita, passo a passo. Não sabíamos que ‘passo a passo’ para ele era, na verdade, ‘página a página’. Jô as escrevia e mandava para a nossa casa por fax. Ele enviava as páginas isoladas, sem se importar com o horário (...). O ‘Xangô’ trouxe muita alegria para o Jô e para mim. Nunca me acontecera acompanhar página a página a confecção de um livro. Construímos uma das amizades mais importantes da minha vida. Ele exigia bastante, como um menino mimado, mas retribuía em igual medida. Para ele, eu era o Lulu – entre nós nunca fui chamado pelo meu nome próprio. ‘Xangô’ saiu e mudou a vida do artista. Ao receber uma cesta de flores, com os primeiros exemplares e um cartão meu, Jô me ligou e disse: ‘Lulu, eu já fiz teatro, televisão, cinema, música e artes plásticas, mas nunca tive uma emoção como esta. Estou aos prantos’. E o livro foi um enorme sucesso, desde o primeiro momento.”

 

Reprodução

“Todos os nomes”, de José Saramago (1997)


“Durante parte da noite, Saramago e Lili separaram em vários arquivos seguros o livro de memórias (‘Verdade tropical’) que Caetano Veloso estava escrevendo, e fizeram cópias de tudo. Do jeito que o material estava, o compositor se arriscava a perder o que produzira até aquela altura (...). Caetano nos convidou para ir à casa onde morara na cidade natal (Santo Amaro da Purificação) e em seguida assistir a seu espetáculo, no qual dona Canô ficava sentada no palco, de frente para o público, recebendo as devidas homenagens (...). Em meio à multidão, Saramago era abordado com pedidos para autografar o suvenir. Na volta de Salvador, José, vendo da janela da aeronave a imensidão da cidade de São Paulo, virou-se para nós e disse: ‘Acabo de ter a ideia para um novo livro’. Como sempre, ele imaginava pela primeira vez uma obra e já lhe dava um título: ‘Todos os nomes’, meu livro favorito de Saramago.”

Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia

Reprodução

Não para “Harry Potter”

“A Companhia das Letras cometeu muitos erros ao recusar determinados livros estrangeiros. Um deles foi a série de Harry Potter, que Liz Calder, editora da obra na Inglaterra, nos sugeriu antes de ela ser o sucesso que foi. Como a Lili (Schwarcz), que cuidava dos livros juvenis na época, estava preparando sua livre-docência, encaminhamos a série a uma parecerista externa. Nós a recusamos alegando que havia criações nacionais melhores. Não me conformo até hoje. As obras de Elena Ferrante e ‘A guerra dos tronos’ foram devolvidas por serem extensas. Por certo nos equivocamos quanto a livros nacionais, não sei se em menor medida. Erros são muito comuns, são fruto de falhas humanas mas também podem servir para nosso questionamento profissional. Afinal, de onde advém a capacidade decisória de um editor? O que nos confere tamanho poder?”

Tópicos relacionados:

cultura literatura livro pensar

Parceiros Clube A

Clique aqui para finalizar a ativação.

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay