Chão da Feira anuncia fim das atividades depois de 15 anos
Editora de Belo Horizonte vai publicar ainda dois livros e um novo número da revista "Gratuita" antes de encerrar a produção
compartilhe
Siga no“O desejo de ver, sentir, ler e escrever é também reafirmação de esperança política: o improvável existe, o desconhecido se espraia, o futuro lhes pertence e é inegociável”. Eis a proposta editorial da Chão da Feira, editora mineira criada em 2011 por quatro mulheres: Maria Carolina Fenati, Luísa Rabello, Júlia de Carvalho Hansen e Cecília Rocha. “É uma proposta aberta, que aponta uma direção, sem, no entanto, restringir muito – nossos textos vêm de vários territórios, épocas, formas de conhecimento. Por isso, fomos construindo um catálogo de textos diversos, cada um trazendo outro pela mão”, explica, ao Pensar, Maria Carolina Fenati.
Depois de 15 anos e a publicação de 30 livros, além da coleção de ensaios “Cadernos de Leituras” e da revista “Gratuita”, as responsáveis pelas edições anunciaram que, em 2026, a editora chega ao fim. “Decidimos encerrar porque nós, editoras, queremos dedicar nosso tempo e força de trabalho a outras atividades que também amamos”, afirma Maria Carolina.
Leia Mais
Até a despedida do mercado editorial, prevista para maio/junho de 2026, haverá o lançamento – por meio de uma campanha de financiamento coletivo – de mais dois livros (“Hölder, de Hölderlin”, de Maria Gabriela Llansol, e “A lume”, de Luiza Neto Jorge), novas edições dos Cadernos de Leitura e da revista “Gratuita”, esta com apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. “O nosso último lançamento será a Gratuita n.5, e os leitores estão todos convidados para partilhar conosco esta publicação, distribuída gratuitamente. Será também uma festa de encerramento da editora – começamos com a Gratuita, terminamos com ela e, para isso, tanta gente esteve junto conosco. Esta festa será para todo mundo”, avisa a autora de “Enquanto”, ensaio sobre maternidade e linguagem publicado pela editora. Ao lado, trechos da entrevista de Maria Carolina Fenati ao Pensar do Estado de Minas.
A decisão
“As Edições Chão da Feira têm 15 anos, e decidimos encerrar porque nós, editoras, queremos dedicar nosso tempo e força de trabalho a outras atividades que também amamos. Como tantas coisas, uma editora precisa de dedicação, e nós fizemos a Chão de modo quase sempre artesanal, quer dizer, sem automatismos: nos processos de escolha e tratamento dos textos, no pensamento gráfico e nas políticas de distribuição, buscamos ter um compromisso com o pensamento e a experimentação. Como profissionais do livro, fomos formadas ao longo destes anos. E assim como escolhemos começar, também escolhemos encerrar.
- Como um ex-combatente dos EUA tornou-se um pacifista
- Milton Hatoum sobre livro de Lina Meruane: 'Gostaria de ter escrito'
- Livro vencedor do Pulitzer conta a anatomia de uma tragédia em Jerusalém
Duas festas
“Quando começamos, fizemos uma festa que tinha a alegria da promessa – mirávamos o futuro, que não saberíamos o que seria, e queríamos dar corpo àquilo que imaginávamos. Agora, vamos dedicar pouco mais de um ano ao nosso encerramento, e vamos também fazer uma festa – olhando para o que fizemos, sentimos muita alegria, porque é o que queríamos e é muito mais. A Chão nos trouxe até aqui, este presente que, quando começamos, não podíamos imaginar, e este futuro que a Chão nos ofereceu é fecundo e próspero: vamos continuar por outras paisagens formadas também por aquilo que ela nos ofereceu. É assim para nós, editoras, e imagino que seja assim para muitos leitores também.”
Desafio e realização
“Fomos construindo um catálogo de textos diversos, cada um trazendo outro pela mão. O nosso desafio foi mantermos essa abertura e o seu ímpeto investigativo e ao mesmo tempo entender o que aquilo que encontrávamos nos fazia pensar e de que modo as questões que nos tocavam apareciam materialmente nos textos. Não demorou também a que muitos textos nos fossem enviados como sugestão, e o diálogo com autores, tradutores e leitores foi parte fundamental da composição do nosso catálogo. Quando olho para trás, vislumbro uma coerência editorial que, ainda que tenha sido em parte consciente, é também surpreendente. Fomos colhendo textos, buscando outros, outros nos surpreenderam – se formos desenhar um arco do catálogo, quase tudo o que ele abarca afirma o fascínio pela força das palavras, o compromisso com a linguagem e com os seus efeitos, bem como com a continuidade da sua partilha.”
Momentos marcantes
“A Chão da Feira tem uma história rica, e foram muitos os momentos marcantes. Para destacar alguns, penso com especial alegria nos lançamentos dos quatro volumes da revista Gratuita. As revistas são grandes, têm o custo de produção de um livro, com tiragem considerável, um projeto gráfico de qualidade – e são distribuídas gratuitamente. No primeiro lançamento, não sabíamos bem o que fazer, e então decidimos colocar uma mesa cheia de revistas na porta da livraria, e quem quisesse poderia pegar. Desde aquele lançamento, todos os outros foram assim. Eles logo viram festa – porque a gratuidade suspende a troca monetária, esse pacto tão enraizado, e abre outras formas de suspensão e de troca. Também por isso decidimos encerrar com mais um lançamento da Gratuita. Com a mesma equipe de quatro mulheres com que fizemos a Gratuita v.1, e também com a editora Fernanda Regaldo, vamos fazer a Gratuita v.5 – o tema desta vez será “Magia”, e a festa será também a de encerramento da editora.”
Distribuição
“São muitas as questões administrativas que desafiam uma editora – e isso tem camadas que são também atreladas às políticas públicas para o livro. Todavia, talvez a maior dificuldade que encontramos é a distribuição. Essa é uma questão para muitas editoras independentes – o gargalo da distribuição que dificulta que os livros se espalhem para os leitores, sobretudo os mais distantes. Para isso, a solução que encontramos foi nos juntar a outras editoras. No último ano, para nós, tem sido muito importante a parceria com a Crivo Editorial, também de Belo Horizonte, que assumiu a distribuição da Chão, bem como algumas das suas tarefas administrativas ligadas às vendas.”
Plantio e sementes
“A escritora Maria Gabriela Llansol escreveu que “A fecundidade do dom é a única retribuição do dom” – e, com a partilha da palavra, acontece assim. Aquilo que publicamos são as nossas sementes, e o curioso é que não sabemos o que delas vai nascer. Na literatura, a herança implica a contra-assinatura de quem herda, quer dizer, herdar é também relacionar-se de maneira singular, criativa, única, com a palavra que vem de outros. Por isso, com a Chão é assim: soltamos muitas palavras no ar, e elas são variadas e férteis, a partir delas muito pode ser escrito, em quase tudo o que publicamos o pensamento é inseparável da experimentação e da afirmação da variedade de formas de vida. É uma oferta, e o que virá a partir disso é o imprevisível da sua continuidade.”
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
Legado em palavras
“Queremos que a Chão da Feira continue pelos seus textos, na boca e no pensamento dos leitores. O curioso de fazer livros é também isso – eles são feitos para durar, e vão continuar quando quem escreveu e publicou já estiver desaparecido. Que os livros, Cadernos e Gratuitas circulem, que deles se façam outras palavras. E, claro, que a Chão inspire outras editoras, ou outras pessoas, a trabalhar com estas coisas tão preciosas que são as palavras.”