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Cicatrizes nas construções de uma cidade e de uma identidade

Romance de estreia de Andressa Marques une narrativas para contar a história de uma das primeiras estudantes a ingressar pelo sistema de cotas na UNB

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A construção de uma cidade, a construção de uma família, a construção de uma identidade na juventude, todas erguidas em uma estrutura narrativa que não expõe andaimes, mas é alicerçada a partir de uma sucessão de descobertas, dores e conquistas. Construções se entrelaçam no romance de estreia da brasiliense Andressa Marques. Não sem cicatrizes: perdas, decepções e ações de opressão, racismo e intolerância religiosa se acumulam na história de Jordana, a personagem principal do livro, e de seus antepassados. “Quis escrever um livro que mostrasse um pouco dessa sensação de precisar lidar com o apagamento das próprias histórias, algo tão presente e forte na experiência das pessoas negras no Brasil”, conta a professora e escritora, em entrevista ao Estado de Minas.

Neta de um eletricista que ajudou a erguer a nova capital do país, Andressa Marques nasceu na cidade-satélite de Taguatinga, no Distrito Federal, e fez parte de uma das primeiras turmas de alunos que ingressaram por meio de cotas no início deste século na Universidade de Brasília (UnB). “Havia uma pressão para que ‘déssemos certo’”, lembra. Ao mesmo tempo, houve também atos de racismo – velado ou explícito – que atingiram muitos cotistas. “Naquele período, vivenciamos ameaças de ataques – um estudante autor dessas ameaças chegou a ser preso anos depois – houve um atentado, um incêndio, no apartamento dos estudantes de vários africanos na Casa do Estudante”, complementa.

A experiência pessoal da autora se reflete nas páginas de “A construção”, mas o romance está bem distante da autoficção. Há uma sofisticação na narrativa que alterna tempos e vozes até as últimas páginas. Memória e invenção são amalgamadas em uma saga familiar com momentos de singeleza, como as descobertas do amor, do ciúme e do sexo, e outros mais arrebatadores, a exemplo das passagens que reconstituem tragédias ocorridas com trabalhadores responsáveis pela estrutura do Congresso Nacional, “duas enormes colunas no formato da letra H” e “conchas riscadas de ferro, uma emborcada para cima e outra para baixo, que cercavam o prédio de letra” em um “ritmo sincopado da obra que tinha que acabar, da cidade que tinha que chegar.”

Doutora em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB), Andressa Marques atualmente é coordenadora-geral de Livro e Literatura da Secretaria de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura. Admiradora das obras de Toni Morrison e Lygia Fagundes Telles, ela aponta, na literatura brasileira, a dificuldade de angariar novos leitores por meio do acesso às bibliotecas públicas. “O grande sonho de todos nós que amamos a literatura é que ela faça parte da vida das pessoas, o que envolve políticas públicas na educação, na cultura e compromisso nosso para a vida toda”, destaca.

Andressa Marques, nascida em Taguatinga (DF) e neta de um eletricista que esteve entre os primeiros trabalhadores que ergueram Brasília: "A história da minha família se revelou por meio de arquivos e sorte"
Andressa Marques, nascida em Taguatinga (DF) e neta de um eletricista que esteve entre os primeiros trabalhadores que ergueram Brasília: "A história da minha família se revelou por meio de arquivos e sorte" Jaqueline Lisboa/Divulgação

Como surge “A construção”? O que há de pesquisa, de observação e de invenção?


“A construção” surge de uma história familiar. Sou neta de um eletricista que esteve entre os primeiros trabalhadores que ergueram Brasília. No entanto, o falecimento do meu avô logo no começo da cidade fez com que os laços e a memória da minha família fossem desconhecidos pelo meu pai e todos nós. É aí que entra a pesquisa que realizei, em 2019, para a exposição “Reintegração de posse: narrativas da presença negra no Distrito Federal”. No intuito de escrever sobre essa história emblemática no imaginário da cidade – a dos trabalhadores que morreram em sua construção – acabei descobrindo muito mais. Quando a história da minha família se revelou para mim por meio de arquivos e sorte, ela surgiu tão imensa que eu não parava de pensar em quem foram aquelas pessoas. Então, entendi que só a ficção chegaria tão longe no preenchimento das lacunas dessa história desconhecida.


Por que decidiu por uma narrativa em dois tempos?


Eu tentei vários caminhos até chegar a este entrelaçamento de narrativas em dois tempos diferentes. A história se desenrolando apenas no passado mais recente, por volta dos anos 2000, ou no passado mais distante, final dos anos 1950, não daria conta de revelar o processo, o desafio perene que as pessoas negras enfrentaram para viver suas vidas e sonhos na cidade de Brasília. Eu quis contar uma história que fosse capaz de transmitir a sensação do impacto causado pelo desencontro das narrativas paralelas, que se tornam uma só. Encontrei uma forma que pudesse revelar que houve uma história anterior, grande e desconhecida para aquelas personagens. Quis escrever um livro que mostrasse um pouco dessa sensação de precisar lidar com o apagamento das próprias histórias, algo tão presente e forte na experiência das pessoas negras no Brasil.


Em determinada passagem, há o questionamento: “Então, aquilo era viver a universidade”? O que foi mais marcante em sua vivência na universidade e o que levou para o livro?


A universidade é um mundo que transforma a vida de todos que passam por ela. Para a minha geração que nunca havia vivenciado essa experiência formativa tão singular em nossas famílias, a universidade foi um divisor de águas coletivo mesmo. “Viver a universidade” foi um sonho dos meus pais para mim e posso dizer que aproveitei muito meu período naquele lugar. As leituras, os professores, os debates, os coletivos de estudantes, a vida política intensamente vivida, tudo isso era um novo mundo pra mim. Sempre fui sensível, lógico que não tinha essa consciência na época, mas sentia que aquela primeira experiência de estudantes cotistas no Brasil era importante. De alguma forma, eu sabia que algo grande estava acontecendo na minha frente e acho que foi essa compreensão que levei para o livro.


Em outra passagem, o pai diz à filha: “A gente não pode cair”. Houve episódios, durante o seu período como estudante cotista, que se sentiu mais pressionada do que alunos que entraram na UnB de outras formas?


Sim, havia uma pressão para que ‘déssemos certo’. Eu entrei na UnB em 2005 e as cotas foram aprovadas em 2004. Então, as primeiras pesquisas de desempenho acadêmico foram realizadas com estudantes como eu e queríamos que tudo saísse bem conosco. Naquele período, vivenciamos ameaças de ataques – um estudante autor dessas ameaças chegou a ser preso anos depois – houve um atentado, um incêndio, no apartamento dos estudantes de vários africanos na Casa do Estudante, também vivenciei a ocupação da reitoria da UnB. Então, lembro de um período muito efervescente em que eu precisava estudar, viver, trabalhar e lidar com o ambiente desafiador de uma maneira precocemente responsável para não desperdiçar a chance, pois sabia que outra como aquela seria rara.


Podemos considerar “A construção” também um romance de formação?


Creio que sim. A propósito, as duas narrativas em tempos diferentes têm como elo uma “construção” cada uma em um período, mas na mesma cidade. Os jovens negros construíram algo novo quando lutaram para que as cotas raciais fossem estabelecidas na UnB. A maioria deles morava nas cidades satélites e vieram de famílias negras que migraram para Brasília em sua construção. A narrativa acompanha a Jordana, protagonista do romance, em seu seio familiar e também em sua experiência como estudante cotista, que acontece ao passo que há um desenvolvimento psicológico, moral e social dela que busca se entender individual e coletivamente a partir daquela experiência na universidade.

A construção de Brasília também ocasionou uma assimetria entre os mais ricos e privilegiados, que ficaram no Plano Piloto, e trabalhadores mais pobres, destinados às cidades-satélites. Acredita que o seu livro também reflete essa desigualdade social?


Acredito que sim. A segregação socioespacial do Distrito Federal e o racismo foram responsáveis por desenhar as fissuras que forjaram Jordana e sua família desde o nascimento da cidade. Com meu livro, tentei dar a ver a longa jornada dessas famílias negras na cidade, ainda não vistas como indispensáveis para a formação cultural de Brasília.

Autor de “O avesso da pele”, Jeferson Tenório publicou recentemente “De onde eles vêm”, também um romance sobre os primeiros alunos cotistas brasileiros. Por que acredita que o tema pode ser matéria-prima para a literatura?


Acho que todos os temas que nos colocam diante dos conflitos, medos, hostilidade ao mesmo tempo em que nos levam a observar a beleza interior, os processos de aprendizado e os sonhos, pela lente das personagens, podem ser e são matéria da literatura. Talvez, até agora, não tenhamos tido a oportunidade de lermos obras que trouxessem a experiência de formação de jovens negros em nossa literatura, é o que “A construção”, “De onde eles vêm” e também “O embranquecimento”, do Evandro Cruz Silva, fazem. A experiência dos estudantes cotistas juntou todos esses sentimentos num só balaio e trouxe uma nova disputa à baila, a epistêmica e, por isso, é tão instigante.

A religião de matriz africana ganha forte representação no livro. Como foi levar os orixás para as páginas do seu livro?


Foi um grande desafio e me exigiu muita pesquisa. Não sou candomblecista, mas o próprio fato de ter descoberto que a minha bisavó era ialorixá foi um fato que também me capturou para a escrita. Essa história familiar, mais uma vez, parecia o exemplo de uma experiência que não era exclusiva da minha família. É dessa história ancestral, que remete a um passado antes do passado, que as famílias negras são feitas, mas que desconhecem na maioria das vezes. A minha família, na vida, e a da Jordana, na ficção, viveram suas experiências com essa grande lacuna. O candomblé é uma religião de matriz africana que tem a memória como um elemento fundamental. Sendo assim, a representação dos orixás alinhavando passado, presente e futuro no enredo foi uma chave de composição importante que encontrei para o romance.

Como vê o atual momento da literatura brasileira? Vê mais diversidade do que tempos atrás? O que ainda falta?


Sim, a literatura brasileira é mais diversa hoje que há vinte anos, por exemplo. Durante a graduação, fui bolsista de iniciação científica da professora Regina Dalcastagnè e conheço bem os resultados da pesquisa sobre o perfil dos escritores e personagens na literatura brasileira contemporânea. É inegável que de 2004, ano em que a pesquisa foi publicada, até hoje temos um arcabouço de histórias sendo contatas por óticas mais plurais que no passado. O que falta à literatura brasileira, para mim, é a possibilidade de protagonizar mais encontros com leitores por meio de bibliotecas públicas, mais acesso ao livro. O grande sonho de todos nós que amamos a literatura é que ela faça parte da vida das pessoas, o que envolve políticas públicas na educação, na cultura e compromisso nosso para a vida toda.

Quais autores, ou autoras, com as quais mais se identifica e que livros mais gostou de ler?


A obra da Toni Morrison é toda maravilhosa para mim, gostei especialmente de ler “Sula” e “Compaixão”, gosto de como sempre tem algo subcutâneo, digamos, em seus personagens. Às vezes é algo que nem mesmo a escritora parece enxergar de tão bem que ela nos esconde, num gesto de profundo respeito aos seus leitores, para que possamos chegar às nossas conclusões. Amo a forma como ela criou as histórias que contou.

Na sua formação como leitora, quais foram os autores mais marcantes?


Graciliano Ramos e Lygia Fagundes Telles, sem dúvida. Li a maioria dos livros deles quando era garota e foram obras que me formaram mesmo. Já na graduação, quando tive acesso a mais autores e autoras, já que cursei Letras, me apaixonei pela Marilene Felinto. Posso dizer que “As mulheres de Tijucopapo” é um romance marcante na minha vida.

Você trabalhou como professora e agora está no MinC em uma função executiva que trabalha a questão do estímulo à leitura. Conhecendo agora os dois lados, do magistério e do ministério, quais os maiores desafios para se implementar o hábito da leitura, desde a infância, em nosso país e formar novos leitores?


Ainda carecemos de recursos em nossas escolas e o hábito da leitura é algo que requer tempo, dedicação e também recursos materiais. Antes de evocar seu conhecimento, criatividade e sensibilidade para ler em conjunto, os docentes precisam vencer as dificuldades materiais. Ter acesso a um acervo atualizado de obras literárias em quantidade suficiente para trabalhar com uma turma ainda está longe da realidade da sala de aula de aula. O Brasil tem o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) desde 1937. A partir de 2025, acredito que teremos um avanço significativo neste cenário, pois a escola atendida pelo PNLD Literário terá uma expansão no acesso ao livro dentro do seu território, ou seja, os livros literários irão tanto para a escola quanto para as bibliotecas públicas e comunitárias (cadastradas no Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, o SNBP, sob responsabilidade do MinC) dos territórios próximos a ela. Isso terá um impacto considerável, pois ao adotar uma obra literária para suas turmas, os professores e professoras poderão estimular uma rede de empréstimos e circulação dos livros nesses espaços com os estudantes. Acredito que a novidade será importante para o desenvolvimento de melhores condições para a formação de leitores na escola e nas bibliotecas.

Trechos

de “a construção”

“O caminho entre o restaurante universitário e a reitoria foi ganhando detalhes que eu gostava de pensar serem só meus. A casinha de joão-de-barro na árvore de tronco largo escolhida como meu lugar preferido para ler e a quase apagada frase “Deus está morto” na parede lateral da biblioteca estavam sempre ali, assim como eu. As estantes eram meu melhor refúgio. Ali, meu silêncio imposto pela timidez fazia sentido. Sempre que havia um horário vazio entre uma disciplina e outra, eu seguia para a vastidão de mundos em brochuras e ficava satisfeita com a minha nova vida. No semestre anterior, eu passava as tardes registrando pacotes de arroz e pesando quilos de acém moído na mercearia do seu Macéa. A caixa registradora era dura e eu sabia diferenciar bem os pesos da vida.”

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“Destruíram a sala do grupo. Canalhas!”, disse Bia, com os olhos querendo saltar do rosto.

Ela seguiu na frente, mas se deteve quando viu que eu fazia anotações diante do mural. Beatriz arrancou o anúncio, dobrou, me entregou e saiu me puxando pelo braço. Fui atrás de seu passo apertado e comecei a ficar tensa com aquilo tudo. O que estava acontecendo? Descemos as escadas para o subsolo e quase corremos até o final da Ala Norte, onde ficava a sala que eu ainda não conhecia. Passamos pelos seguranças da universidade que protegiam a entrada depois que Bia explicou que éramos ativistas do grupo e já começamos a desviar das cadeiras jogadas no chão.

Havia panfletos do coletivo rasgados e espalhados pela sala de pouca ventilação. Era impossível ficar ali. Marcinho, Miguel e Rodrigo tinham improvisado uma balaclava com a camiseta e tentavam fazer algo no meio dos montes de papéis higiênicos sujos que foram espalhados pelo chão e pelas paredes com a intenção de nos levar junto com aquela merda toda. Ainda havia a mensagem pichada na maior parede da sala: ‘Preto na universidade só se for na cozinha do RU.’”

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“Os mantimentos nas caçarolas amarradas nos panos foram rareando. A carne seca durou só no começo, os beijus de manteiga de garrafa e as bolachas pretas também. Os dias eram segurados pela rapadura e pela farinha de puba com o café ralo passado no fogareiro dos motoristas durante as pausas para esticar as pernas e encher os tanques com os tonéis levados. Quando o ronco da barriga e a fraqueza pelo sacolejo não arredavam o pé, o caminhão finalmente estacionou no derradeiro acampamento do grupo: ‘Cidade Livre’, dizia a placa branca de letras pretas que Iran leu com satisfação em alta voz.

“E tu sabe ler, é?”, disse um dos cabras da viagem ao ouvi-lo.


“Sou filho de professora”, respondeu lançando seu olhar corisco em tudo ao redor.


Ainda no alto do veículo, ele viu os inúmeros telhados que cobriam os barracos de madeira desordenados perto de onde Baru estacionou junto à frota que arribava a terra livre e fina que cobria tudo. O jovem esfregou as palmas das mãos pensando consigo: ‘Pó de terra livre é melhor que o da Bahia, que já tem dono’. A poeira vermelha cobriu sua calça bege de brim quando Iran saltou em Brasília.”

"A construção"
"A construção" Reprodução

 

“A construção”
• De Andressa Marques
• Nós Editora
• 192 páginas
• R$ 69,00 (e-book R$ 48,30)

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