editorial

Contra o feminicídio, não basta pena histórica

Sozinho, o endurecimento das leis não é capaz de salvar vidas e famílias. A punição é tão importante quanto a prevenção e o suporte às vítimas

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Na noite de 20 de agosto de 2024, em um bar no Gama, Juliana Soares foi ameaçada de morte pelo ex-namorado, na frente de amigos e de clientes, enquanto comemorava seu aniversário de 34 anos. Inconformado por não ter sido convidado, Wallison Felipe de Oliveira esperou terminar a festa para cumprir a promessa. Atropelou Juliana por três vezes enquanto ela voltava a pé para casa ao lado da mãe e da filha de 5 anos. Avó e neta foram socorridas e sobreviveram. Juliana morreu no local, vítima de múltiplas fraturas graves e de um entendimento covarde de que mulheres não podem se recusar a corresponder às expectativas dos homens.


O crime teve como punição a maior pena por feminicídio da história do país: 67 anos, seis meses e 14 dias de prisão em regime inicialmente fechado. Isso em razão da entrada em vigor da Lei nº 14.994/2024 – que tipificou o feminicídio como crime autônomo e elevou os parâmetros para a pena privativa de liberdade, que varia entre 20 e 40 anos de reclusão (antes era de 12 a 30) –, além da responsabilização pelas tentativas de homicídio contra a filha e a mãe de Juliana. Trata-se de uma condenação a ser ressaltada pelo seu valor simbólico e jurídico, mas não suficiente para frear a epidemia de execução de mulheres em curso acelerado no Brasil.


No mesmo ano do assassinato de Juliana, registrou-se, no país, um média de quatro mortes de mulheres por dia em contextos de violência doméstica, familiar ou por menosprezo e discriminação. É o maior número de feminicídios da série histórica (desde 2020), segundo o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Casos de estupro também chegaram ao maior patamar: 83.114 ocorrências – o equivalente a 227 vítimas a cada 24 horas, sendo 86% delas do sexo feminino. Não se pode desconsiderar as tentativas de assassinato de mulheres no mesmo período – 3.870, média de 10 por dia –, além das outras formas de violência, como a psicológica e a virtual.


Considerando que marcos legais de proteção à mulher existem há décadas – a Lei do Feminicídio completou 10 anos em março e a Lei Maria da Penha, 19 anos em agosto –, fica evidente que, sozinho, o endurecimento das leis não é capaz de salvar vidas e famílias. A punição, insistem especialistas, é tão importante quanto a prevenção e o suporte às vítimas. “São necessários a identificação precoce de situações de risco, medidas protetivas eficazes, acolhimento seguro e apoio psicológico, jurídico e econômico às vítimas, além de uma mudança cultural com educação para a igualdade de gênero e combate à misoginia”, elenca a advogada especializada em direito das mulheres Jaqueline Costa.


A lista é diversa, como precisa ser o combate integral, e efetivo, à violência de gênero. Há uma sensação perigosa de que a epidemia de feminicídios é ignorada no país. Expressa, inclusive, em estudos. Divulgada no ano passado, a pesquisa Medo, ameaça e risco: percepções e vivências das mulheres sobre violência doméstica e feminicídio, realizada pelo Instituto Patrícia Galvão e Consulting do Brasil, com apoio do Ministério das Mulheres, mostra que 66% delas acham que nada acontece com os homens que cometem violência doméstica e que 95% deles, mesmo sabendo que se trata de crime, têm convicção de que não serão punidos. E mais: 90% concordam que evitar o assassinato é mais importante do que punir o feminicida.


Mulheres estão acuadas em um sistema estrutural que desqualifica suas histórias e sem confiar nas instituições que têm a obrigação constitucional de protegê-las. A epidemia de feminicídio que toma conta do Brasil passa desenfreadamente por cima da inviolabilidade do direito à vida e à segurança. O país precisa ouvir e respeitar quem está morrendo pela ineficiência coletiva de viver sob a égide da igualdade.

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