Morte de jovem e a brutalidade policial
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a taxa de mortes com intervenções policiais é 289% superior entre os negros em relação aos brancos
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Siga noPrincipal expoente do rap brasileiro, o Racionais MC's, por meio dos seus integrantes, costuma classificar o disco "Sobrevivendo no Inferno (1997)" como sua "carta de alforria", o momento em que o grupo "estourou" no cenário da música nacional. Na segunda música do álbum, intitulada "Capitulo 4, Versículo 3", a composição de Mano Brown diz: "A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras". Quase 30 anos desde o lançamento da obra, o verso não só é conhecido pelos fãs, mas continua descrevendo a realidade da segurança pública no Brasil.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, elaborado com números do ano anterior, mostram que a taxa de mortes decorrentes de intervenções policiais é 289% superior entre os negros em relação aos brancos no país. Enquanto o Brasil registra 3,5 óbitos de negros pelas mãos da polícia, a cada 100 mil habitantes, o mesmo índice para 100 mil brancos fica em 0,9.
A morte da adolescente Victoria Manoelly dos Santos, de 16 anos, em Guaianases, Leste de São Paulo, é representativa para ilustrar a brutalidade policial. A imprensa noticiou que um vídeo, obtido a partir da câmera corporal da PM paulista, mostra que o sargento Thiago Guerra matou a jovem ao dar uma coronhada no irmão dela, ato que fez a arma disparar.
No boletim de ocorrência registrado em janeiro, quando o fato aconteceu, o policial afirmou que foi o irmão da vítima quem empurrou a arma, causando o disparo acidental. Na prática, porém, o vídeo da câmera corporal comprova a contradição. A adolescente foi levada para o hospital, mas não resistiu ao ferimento. A mãe presenciou toda a ocorrência.
Responsável pela investigação, o delegado Victor Sáfadi Maricato concluiu em janeiro que o sargento Thiago Guerra agiu com dolo eventual, justamente por assumir o risco de matar ao dar uma coronhada no irmão da adolescente. O caso segue correndo na Justiça.
A morte de Victoria é explicada por diferentes e complexos fatores, mas que exigem uma reflexão a partir de um questionamento básico: qual polícia o Brasil quer para si? Aquela que reproduz os preconceitos da nossa sociedade, a partir da ótica do "nós contra eles", o "herói contra o bandido", ou uma polícia capaz de garantir a segurança de todos, sobretudo daqueles em maior vulnerabilidade social?
Em artigo publicado na Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), os psicólogos e pesquisadores André Vilela Komatsu e Efraín García Sánchez dão um panorama do problema no Brasil – ainda que poucas linhas sejam insuficientes para tratar a questão com a profundidade que ela merece. O texto, publicado em 2022, continua bastante atual.
Em primeiro lugar, é necessário enxergar a morte de Victoria não como um "caso isolado" cometido por um erro individual do PM. A atitude violenta das polícias "carrega um componente cognitivo (crenças preconceituosas), um componente afetivo (emoções negativas) e um componente comportamental (predisposição para se envolver em comportamentos negativos)", destacam os psicólogos no artigo da SBP.
Esses três componentes resultam em duas posições demarcadas pelas corporações policiais no expediente diário: o estereótipo que associa o crime à população negra e pobre; e o conceito de "viés do atirador", ou seja, "a tendência de a polícia atirar em civis negros com mais frequência do que em civis brancos". Até quando a sociedade brasileira vai aceitar a desumanização de pessoas negras e pobres, a partir do reforço de vícios, que pouco contribuem para o desenvolvimento da nação?
O Brasil mata mais nas favelas do que em outros espaços sociais há décadas, mas o crime organizado só se fortalece com o passar do tempo. Faz sentido insistir no erro? Ou vamos pensar em políticas públicas realmente eficientes? Um avanço é justamente a câmera corporal, que, ao menos, serve como peça fundamental para questionar a credibilidade dos boletins de ocorrência.