Bioeconomia e produção sustentável mobilizam agricultores no Norte de Minas
A agricultura familiar foca na atividade produtiva que gera renda e, ao mesmo tempo, preserva a natureza, garantindo a continuidade do trabalho no futuro
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Siga noOs agricultores familiares e extrativistas, como os moradores de áreas de veredas e do cerrado, realizam a atividade produtiva com adoção de um modelo em que geram renda e, ao mesmo tempo, preservam a natureza. Com esse perfil, eles ganham maior relevância, no momento em que, diante das mudanças climáticas, são buscadas estratégias que permitam a produção sustentável, pela necessidade de manter os recursos naturais para garantir a continuidade da atividade no futuro, no contexto da bioeconomia, que deve avançar cada vez mais.
“A agricultura familiar tem um papel fundamental nessa discussão toda. Primeiro, porque as diferentes formas de agricultura – familiar, tradicional, camponesa e outras – representam um modelo a ser pensado em seu modo de vida e modos de produção. Isso porque essa agricultura não se organiza de forma linear, tipicamente racional como outras formas de produção agropecuária, cujos resultados e impactos vêm sendo bastante debatidos”, avalia o professor Fausto Makishi, do campus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Montes Claros.
A importância dos pequenos produtores na proteção da biodiversidade, das veredas e do cerrado e na garantia da produção sustentável, dentro do conceito da bioeconomia, na visão dos especialistas, é abordada na quarta e última parte da série de reportagens “Veredas da esperança”, publicada pelo Estado de Minas.
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“A agricultura familiar, entre outras coisas, oferece pistas de uma forma de produção mais sustentável, pois, a relação do agricultor com a terra e com a paisagem é diferente. A mensuração dessa economia é algo recente. Isso porque nem tudo se converte em números ou moeda. Com alguma precisão, conseguimos mensurar estoques de carbono e contribuições na forma de serviços ecossistêmicos, mas algumas coisas são intangíveis”, observa Fausto Makiski.
A professora Flávia Galizoni, que atua no mestrado em Sociedade Ambiente e Território UFMG em Montes Claros, afirma que o sistema produtivo da agricultura familiar e dos povos tradicionais deve ser melhor estudado, para ser usado como exemplo por outros segmentos. “Os estudos que a gente tem desenvolvido a respeito da produção de agricultores familiares, comunidades e povos tradicionais têm mostrado que a produção dessa população é realizada em conjunto, em sinergia com a natureza. Então a gente pode pensar que esses povos e comunidades têm dados, pistas muito importantes para a academia poder investigar e a sociedade brasileira toda também aprender como aliar conservação e produção”, opina Galizoni.
A professora da UFMG ressalta que os pequenos agricultores e extrativista não têm uma produção “industrializada”, em larga escala. ”Ao contrário, eles produzem comida de verdade em consórcio, em coprodução com a biodiversidade, conservando essa biodiversidade e mantendo o patrimônio alimentar regional. E isso é uma coisa muito inovadora. Há muito o que se aprender com esses sistemas de produção adaptados, ajustados e vinculados à natureza do lugar”, observa.
Guardiões da natureza
“Eu penso que os pequenos agricultores, os povos tradicionais, são efetivamente os guardiões da natureza. Eles são os guardiões da biodiversidade, do ar que a gente respira, enfim, dos produtos saudáveis que a gente come. Está aí a agricultura familiar nos mostrando isso”, descreve a professora Tânia Marta Maia Fialho, do Departamento de Economia da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
“Eu diria que a sustentabilidade ambiental depende também dos pequenos produtores, ou desses povos nativos, que conseguem manter um mínimo de preservação”, completa a docente.
Ela frisa que os pequenos agricultores e empreendedores dos arranjos produtivos locais se encaixam perfeitamente na bioeconomia, por desenvolveram suas atividades de maneira sustentável. “A bioeconomia é um novo conceito de exploração dos recursos naturais de forma sustentável, de utilização dos recursos na concepção biológica de sustentabilidade e de preservação dos recursos naturais para as gerações futuras. Isso inclui desde a produção agrícola até a energia renovável. Enfim, tudo que é utilizado a partir da natureza para a produção de bens que não degradem o ambiente, que seja sustentável para garantir, inclusive, a sobrevivência da população no futuro”, salienta Tânia Fialho.
Sustentabilidade para todos
Para Fabiana Santos Vilela, analista técnica da Unidade de Agronegócios do Sebrae Minas, a sustentabilidade deve ser buscada não somente pelos pequenos, mas por todos os agricultores, independentemente do porte ,por conta dos seus benefícios. “O objetivo da agricultura sustentável é nobre, ou seja, promover a produtividade de forma consciente e sem causar danos a todo o ecossistema. Sendo assim, lida com os recursos naturais e áreas de mata nativa de uma forma consciente e que visa a proteção. Deste modo, os agricultores têm a oportunidade de melhorar a qualidade da produção e ainda reduzir custos”.
Ela lembra que a atividade sustentável tem como melhorar todos os processos e eliminar impactos, usar recursos naturais como água, solo e energia de uma maneira equilibrada. “Tudo isso preservando a qualidade dos cultivos”, complementa.
“A agropecuária é uma atividade em que o empresário, o produtor rural, depende dos recursos naturais para produzir. Os insumos que fazem parte desta produção são: o solo, a água, os nutrientes – sejam químicos ou orgânicos –, condições de clima e sementes, mudas e animais. Assim sendo, é interesse dos produtores rurais conservarem estes bens para que tenham o melhor resultado possível dentro do ciclo de produção”, acredita a analista do Sebrae.
Fabiana Vilela lembra que “ adotar práticas agrícolas conservacionistas traz, diretamente, ao produtor ganhos econômicos, uma vez que utilizará recursos naturais para impulsionar o máximo resultado possível, dentro das condições edafoclimáticas (características de solo e clima) daquela safra/ano. Chamamos isso de resiliência”.
“Portanto, a agricultura sustentável não é apenas uma tendência, mas uma necessidade para que se possa garantir a produção de alimentos e reduzir a fome no mundo (a segurança alimentar) e conservar os recursos naturais de modo a proporcionar a continuidade da produção”, conclui a analista do Sebrae.
Sabedoria na preservação
A orientação sobre como aliar a produção e a geração de renda com a preservação ambiental é repassada pelo pequeno produtor Santino Lopes de Araújo. Ele não passou pela universidade, mas domina o tema com muita desenvoltura, por conta do seu conhecimento prático.
Santino combina a pequena produção e extrativismo com a proteção da Vereda da Água Doce, que passa no seu terreno, na sub-bacia no Rio Pandeiros, no município de Bonito de Minas, onde recebeu a reportagem do Estado de Minas. Por conta de sua sabedoria na prática, o agricultor familiar foi o protagonista de um documentário, que leva o seu nome,produzido pelo cineasta e artista visual Cao Guimarães.
“Todo sistema da evolução humana depende do bem-estar da natureza. Então, se a natureza tiver um contratempo, se ela não tiver em equilíbrio, é porque nós estamos caminhando para o desequilíbrio ambiental, que é a questão do desmatamento, do aquecimento global mesmo, a questão climática e outras questões como da diminuição da água, da monocultura da soja, do eucalipto, do uso do agrotóxicos, dos grandes desmatamentos”, afirma.
Santino chama atenção para o potencial do cerrado para o extrativismo sustentável, com a aproveitamento do pequi e outros frutos nativos. “Na região, são milhares de famílias que trabalham e vivem do extrativismo”, relata. Ele cita também a geração de renda pelos agricultores familiares com a destinação do buriti para a produção de cosméticos e a colheita da fava danta (outra espécie nativa de Januária, Cônego Marinho, Bonito de Minas e outros municípios do Norte de Minas), vendida para servir como matéria-prima na indústria farmacêutica.
O pequeno agricultor afirma que a proteção do cerrado é tão importante como a preservação das veredas, onde se deve evitar queimadas e o pisoteio do gado. “O cerrado é a área de recarga da vereda. Se você destruir o cerrado, automaticamente, você destrói a vereda”, alerta.
Santino “põe a mão na massa” na luta para salvar as veredas e garantir a produção sustentável. Ele produz mudas de buriti e espécies nativas do cerrado como o pequi, que são destinadas a moradores da região onde mora para a recuperação das vereda e de áreas degradadas.
“Há muito negacionismo a respeito do que está acontecendo (com o meio ambiente). Estamos destruindo aquilo que nos dá vida, nos dá alimento. Estamos jogando veneno, agrotóxico (na natureza). As pessoas estão adoecendo – e os animais também. Os peixes estão morrendo onde tem (se joga) esgoto. Precisamos tratar da questão com mais responsabilidade”, conclama Santino.
Ele alerta sobre os riscos de outras práticas erradas, como a irrigação com uso excessivo de água de poços tubulares, o que diminui o volume do lençol freático.
“A indústria da seca é aquela em que as pessoas vivem sempre dependendo do caminhão-pipa, porque o poço artesiano secou. As pessoas sabem que existe o problema, sabem que há solução, mas (o problema) não é resolvido. Ficam sempre precisando de apoio, da ação eficaz”, relata.
Santino lembra ainda que é preciso garantir a produção sustentável até para manutenção das pessoas no campo. “Hoje, até no próprio agronegócio está tendo um problema que é (falta de) sucessão do homem do campo e falta de mão de obra, porque o pessoal mais velho está deixando a profissão e os mais novos estão com a mesma ideia. Os filhos (dos agricultores) estão indo embora, buscando outros meios de vida”, observa o veredeiro.
Desenvolvimento sustentável
O especialista da UFMG chama atenção para a importância da bioeconomia, que considera como “um caminho para o desenvolvimento sustentável”. “A bioeconomia é uma forma nova de organização da sociedades para produzir bens e serviços considerando as limitações da natureza. Trata-se de uma mudança de paradigma para o desenvolvimento sustentável”, define.
Para exemplificar a importância do modelo econômico sustentável, destaca que estudo da WRI Brasil, organismo de pesquisa independente, demonstrou que a bioeconomia na Amazônia pode gerar um incremento de R$ 40 bilhões até 2050, a partir de atividades práticas conservacionistas que mantenham toda a floresta em pé.
“Além de gerar mais riqueza, a bioeconomia permite um crescimento econômico qualificado, com maior distribuição dessa riqueza e sustentabilidade ambiental às gerações futuras. O caso da agricultura familiar é exemplo disso, da inclusão no campo”, afirma o pesquisador.
O professor da UFMG salienta que o cerrado ainda carece de avanço em relação novo modelo econômico sustentável. No entanto, salienta, a bioeconomia é vista como “melhor alternativa” para a melhoria das condições ambientais do bioma, que sofre com mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e com a poluição.
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O especialista defende uma mudança na visão econômica do bioma, para intensificar a proteção das veredas das comunidades ao seu redor. “O cerrado precisa ser reconhecido não como um espaço a ser adaptado para produção de comodities e, sim, como uma fonte de novas formas de geração de riqueza que tome como base um conhecimento mais profundo sobre a natureza”, descreve.
“Precisamos reconhecer, por exemplo, que as veredas fornecem uma variedade de serviços ecossistêmicos essenciais para a sociedade e para o meio ambiente. Estes incluem o fornecimento de água, a regulação do ciclo hídrico, a produção de recursos como alimentos e fibras, a manutenção da biodiversidade e a oferta de serviços culturais, como o ecoturismo. Me parece justo que quem preserva as veredas precisa ser reconhecido e de alguma forma compensado por isso”, completa.