Aposta na IA para aliviar rotina dos enfermeiros
Projeto pioneiro da Universidade Federal de Alfenas, no Sul de Minas, quer transformar a assistência com apoio da Inteligência Artificial
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Siga noPresentes em tarefas corriqueiras, como escolher a melhor rota no trânsito ou conversar com assistentes virtuais, os sistemas de inteligência artificial (IA) agora começam a assumir papéis também na área da saúde pública. Em Alfenas, no Sul de Minas, um projeto pioneiro inicia, no próximo mês, a implementação de uma IA nos centros de saúde do município para apoiar o trabalho dos enfermeiros no diagnóstico e até em lembretes para acompanhamento de pacientes. Com a experiência acumulada, a expectativa é que a iniciativa seja estendida para a rede hospitalar e municípios vizinhos.
O projeto, coordenado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), é resultado de meses de pesquisa. O embrião da proposta nasceu no ano passado na extensão universitária, a partir de um projeto para fortalecer o trabalho da enfermagem. A coordenadora do projeto Isabelle Costa, professora da Escola de Enfermagem da Unifal-MG, explica que, ao acompanhar a rotina dos profissionais, a equipe identificou a oportunidade de desenvolver uma ferramenta que aliviasse a sobrecarga dos enfermeiros, tradicionalmente os profissionais responsáveis pela maior parte da coleta e registro de dados nos sistemas de saúde.
“Esse é o grande problema. A carga de trabalho do enfermeiro é grande. Então, o principal objetivo do projeto é potencializar a assistência de uma maneira assistida por IA, mas sob a supervisão do enfermeiro”, descreve. Foi desse diagnóstico que surgiu o SisAPEC, uma plataforma inteligente desenvolvida por uma equipe multidisciplinar da universidade, que reúne profissionais e estudantes de doutorado e mestrado das áreas de enfermagem e ciência da computação. Agora, com financiamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o sistema será testado nos próximos cinco meses, por meio de uma parceria com a Secretaria Municipal de Saúde de Alfenas, em uma pesquisa que irá avaliar o impacto da IA na qualidade de vida e na saúde mental dos enfermeiros da atenção primária de saúde.
O SisAPEC foi desenvolvido para automatizar e otimizar o processo de enfermagem, um método regulamentado pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), que orienta a prática profissional em cinco etapas: avaliação do paciente, diagnóstico, planejamento, implementação das ações e avaliação dos resultados. “Esse registro precisa ser feito manualmente ou em sistemas pouco integrados, o que amplia a carga de trabalho dos enfermeiros, especialmente na atenção primária de saúde, onde as demandas são mais extensas e diversificadas”, explica a professora.
É justamente na atenção primária que agora o SisAPEC chega com a proposta de funcionar como um sistema eletrônico, dotado de inteligência artificial, capaz de apoiar a tomada de decisões e realizar tarefas burocráticas, sem substituir a responsabilidade e o julgamento clínico do enfermeiro. Entre os agentes de IA desenvolvidos está o “enfermeiro clínico”, uma inteligência programada para apoiar na avaliação física, coleta de dados, construção do diagnóstico e elaboração do plano de cuidados, versão aprimorada da plataforma com a integração de modelos baseados em GPTs (Generative pre-trained transformer).
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Além disso, o sistema irá trabalhar com mecanismos de alerta, notificando, por exemplo, quando um paciente com diabetes precisa de uma visita domiciliar, mas está há muito tempo sem ser acompanhado. “O objetivo não é substituir o profissional, mas oferecer ferramentas que auxiliem no raciocínio clínico e na organização do trabalho. Quem toma a decisão, quem faz o julgamento clínico, somos nós, enfermeiros”, reforça Isabelle.
Fase atual
Após testes piloto em uma unidade de saúde da cidade, utilizados para identificar falhas e realizar ajustes técnicos, o SisAPEC avança agora para a aplicação prática em unidades estratégicas de Saúde da Família de Alfenas, viabilizado pelo financiamento da OIT. Entre julho e dezembro, os enfermeiros da atenção primária do município serão capacitados para utilizar a plataforma.
A fase atual, que envolve pesquisadores de mestrado e doutorado, será realizada em duas etapas principais: primeiro, uma avaliação do processo de enfermagem praticado atualmente, analisando registros, raciocínio clínico e atendimento. Em seguida, após a capacitação e adoção do SisAPEC, uma nova avaliação será feita para medir os impactos do sistema na qualidade do trabalho, na saúde mental dos profissionais e na eficiência do atendimento.
Os resultados da pesquisa deverão ser apresentados à OIT até 10 de dezembro deste, quando se espera ter dados concretos sobre o impacto do uso da IA na rotina dos enfermeiros e na assistência prestada aos pacientes.
O projeto já recebeu fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) para o desenvolvimento inicial do software, e posteriormente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), viabilizando uma parceria internacional com a Universidade da Flórida, que contribui na construção dos agentes de IA mais avançados. Agora, com a entrada da OIT no grupo de instituições financiadoras, a iniciativa será aprimorada.
Mais tempo para o cuidado
Mais do que automatizar tarefas burocráticas, a proposta do SisAPEC, segundo a coordenadora do projeto, é reduzir o tempo gasto com registros e preenchimento de papéis, para que os profissionais possam ampliar o tempo e a qualidade do contato com os pacientes. “Com a crescente demanda por acreditação dos serviços de saúde, o enfermeiro muitas vezes é afastado do cuidado para atender a exigências administrativas. A inteligência artificial surge para devolver ao profissional a possibilidade de se dedicar ao que é mais importante, o paciente”, destaca a professora.
Além disso, o sistema prevê a criação de módulos especializados que vão expandir suas funcionalidades. Estão nos planos da equipe o desenvolvimento de módulos para saúde da mulher, da criança, do trabalhador, bem como um módulo de farmácia, com um sistema de verificação automática de interações medicamentosas. “São vários braços do projeto. Estamos falando de um projeto que nasceu da prática, do olhar atento ao cotidiano dos profissionais e das necessidades reais da rede pública. É um projeto que dá voz à enfermagem e que busca transformar o cuidado em saúde com o apoio da tecnologia”, afirma Isabelle.
Um dos maiores desafios e, ao mesmo tempo, uma das maiores ambições do projeto é alcançar a interoperabilidade, ou seja, garantir que os dados produzidos na atenção primária se comuniquem de forma fluida com os sistemas da atenção secundária (serviços especializados ambulatoriais e hospitalares), e terciária (nível de maior complexidade e especificidade, abarcando hospitais de grande porte, universitários e Santas Casas), alinhando-se às diretrizes da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) do Brasil.
“Não adianta criar um sistema que não converse com os outros. A nossa expectativa é construir uma tecnologia que fortaleça a continuidade do cuidado em toda a rede, com qualidade na assistência e segurança do paciente como norteadores”, afirma Isabelle. Com a experiência acumulada e os resultados da atual fase de implementação, a Unifal-MG pretende buscar novos financiamentos para ampliar o SisAPEC, estendendo-o para a rede hospitalar e para municípios vizinhos de Alfenas.
IA na enfermagem
A proposta central do uso de algoritmos na saúde é permitir que eles processem grandes volumes de dados, identifiquem padrões e apontem soluções de maneira mais rápida e precisa do que seria possível apenas com a análise humana. Especialistas, no entanto, destacam que, apesar de promissora, esse tipo de ferramenta exige profissionais qualificados, além de reforçar a necessidade de proteção e a privacidade das informações.
O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) vê com bons olhos o avanço da tecnologia na área, desde que ela seja encarada como uma aliada e não como substituta do cuidado humano. A entidade reforça que a enfermagem é uma prática de assistência direta ao paciente, onde a empatia, a comunicação e o toque são insubstituíveis. “Lembrando que uma das mazelas para o profissional de enfermagem é justamente a questão do tempo, pelo subdimensionamento, pelas demandas excessivas que se tem e quando você traz uma ferramenta como a IA, ela vem justamente ser complementar ao cuidado, não substituindo a figura do profissional de enfermagem”, ressalta o conselheiro federal tesoureiro do Cofen, James Santos.
Essa visão é compartilhada pela coordenadora do projeto da Unifal-MG, que reforça a ideia de que, apesar de a inteligência artificial ganhar cada vez mais espaço, ela deve ser encarada como uma ferramenta, não como uma solução autônoma. “Não dá para negar, a inteligência artificial veio para ficar. Mas uma coisa que a gente precisa entender é que ela é uma ferramenta, um apoio, é um meio e não um fim. Então, ela vem com o objetivo de me auxiliar na assistência”, afirma Isabelle Costa.
Outro aspecto fundamental, segundo a professora, é o letramento digital. “Não há como falar de inteligência artificial na saúde sem envolver a educação digital, tanto dos profissionais quanto da comunidade. O paciente precisa compreender que essas tecnologias estão sendo usadas a seu favor. A população precisa entender que estamos utilizando a inteligência artificial como ferramenta de apoio, sempre com ética e segurança dos dados”, lembra. Nesse contexto, a Unifal-MG também participa do Programa Saúde Digital, do Ministério da Saúde, por meio do qual realiza ações educativas com a população de Alfenas, integrando o uso de novas tecnologias à promoção da saúde.
Para o Cofen, embora a IA ofereça recursos promissores, como a análise de grandes volumes de dados e apoio ao diagnóstico precoce, a implementação deve ser feita com responsabilidade. “É muito importante que exista um processo de capacitação contínua das equipes, que um processo de educação permanente possa ser estabelecido para levar os nossos profissionais de enfermagem a utilizarem com parcimônia, com muito zelo, essa ferramenta que está disponível”, orienta o conselheiro federal do Cofen.
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A telenfermagem é apontada pelo Cofen como um exemplo bem-sucedido da integração entre tecnologia e cuidado. Regulamentada pela Resolução 692/2022, a prática permite que profissionais atuem de forma remota em consultas, interconsultas, monitoramento e acolhimento, sempre respeitando a privacidade dos pacientes conforme a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). “Quando nós pensamos nessa norma, em meio à pandemia de COVID-19, queríamos justamente estabelecer diretrizes para que a prática assistencial continuasse sendo mantida de forma segura e confiável. Mesmo que tenhamos um ambiente virtual, o profissional de enfermagem ainda é o tomador de decisão, ainda é responsável por gerir essa prática assistencial”, diz. Ele acrescenta que, com os avanços das novas tecnologias de inteligência artificial, essa diretriz poderá ser revisitada, incorporando atualizações que contemplem a prática assistencial por meio das IAs.