Vitrais da Boa Viagem são quebrados a pau e pedras
Ataque à igreja centenária na Sexta-Feira da Paixão expõe falta de segurança que já afasta fiéis, diz padre. Moradora de rua é suspeita. Há ronda diária
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Siga noDois golpes atingiram um esplêndido patrimônio cultural, espiritual e afetivo de Belo Horizonte. Na madrugada de Sexta-feira da Paixão, os vitrais franceses do Santuário Arquidiocesano da Santíssima Eucaristia, mais conhecido por Igreja Boa Viagem, na Região Centro-Sul, foram quebrados com pedradas e pedaços de pau. No alvo do vandalismo, se encontram os elementos artísticos que retratam os evangelistas São João e São Marcos.
“Estávamos abrindo a igreja, antes das 5h, quando ouvimos o barulho. Quando fomos ver do se tratava, encontramos os vidros quebrados e parte da armação dos vitrais no chão. Ainda ficou um pedaço de pau preso no alto”, lamenta o pároco e reitor do santuário, padre José Júnior. A suspeita recai sobre uma moradora em situação de rua que já tentou esfaquear um homem de 73 anos, frequentador constante das missas e, não conseguindo machucá-lo, riscou o carro dele.
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“Chamamos a polícia às 4h49, mas os militares só chegaram às 7h20 para fazer o boletim de ocorrência. A insegurança aqui é muito grande, os fiéis estão sempre se queixando das abordagens da população de rua”, conta padre José Júnior. Com mais de 100 anos de história, a edificação em estilo neogótico localizada entre as ruas Sergipe, Aimorés, Alagoas e Timbiras é tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) e Município, via Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de BH. O templo tem elementos artísticos (imagem, altar, pia, chafariz e outros peças do século 18, dos tempos de Curral del-Rey, localidade destruída para construção de BH) tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Também a praça que circunda a construção está sob tombamentos municipal e estadual. Então, todo o complexo (santuário e área externa) é protegido. “No entanto, a praça tem pouca iluminação, não está bem conservada. Durante o carnaval, picharam a fachada. Importante destacar que o marco zero de Belo Horizonte é aqui”, explica o pároco e reitor. A lei que declarou o local como marco zero da capital foi sancionada em julho do ano passado. O religioso diz que já relatou os fatos inúmeras vezes, mas as autoridades ainda não tomaram providências. “Muitos fiéis já deixaram de vir às celebrações e demais cerimônias por falta de segurança. A vigilância é pouco eficaz”.
Destruição
Causa muita tristeza ver os dois vitrais com as marcas de agressão, desrespeito e violência contra o templo que guarda a imagem da padroeira de Belo Horizonte, Nossa Senhora da Boa Viagem. Olhando de frente para a igreja, os vitrais ficam do lado esquerdo, ao lado da área de jardins públicos.
A figura do evangelista João (o discípulo amado de Jesus) foi atingida na altura da mão, pouco abaixo da frase em latim “Et verbum caro factum est” (em português, “O verbo se fez carne”). Já o vitral que retrata São Marcos foi quebrado na altura da cintura. No alto da peça colorida, ficou um pedaço de pau. “Veja aqui um pedaço da armação do vitral”, mostra o reitor do santuário, ao repórter, os fragmentos. Agora, teremos que fazer a restauração, e não ficará barato. São vitrais vindos da França.”
Vigilância
O Estado de Minas entrou em contato com as autoridades citadas nesta matéria. Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) afirmou que faz “patrulhamento preventivo diário na Igreja Boa Viagem e no entorno”. Segundo o texto, nos horário de missas, momentos de maior fluxo de fiéis, a segurança é intensificada por meio da Operação “Templo Seguro”, desenvolvida em parceria com a Polícia Militar de Minas Gerais.
“A operação conta com revezamento de equipes e presença de viaturas em pontos estratégicos, garantindo cobertura nos horários de maior movimentação” , diz a nota. Ainda segundo a PBH, “a coordenação da equipe da Inspetoria do Hipercentro da Guarda Municipal mantém ainda um canal permanente de diálogo com os padres e representantes da administração da Igreja da Boa Viagem, buscando sempre aprimorar as ações e fortalecer a segurança no local”.
Já a Polícia Militar de Minas Gerais, por intermédio do 1º Batalhão, informa que faz patrulhamento preventivo diário na igreja e entorno também com reforço nos horários estratégicos. “O comando da 4ª Cia PM mantém um canal direto e contínuo com os representantes da Igreja, fortalecendo o vínculo institucional e o diálogo para aprimorar cada vez mais a segurança local. Como parte dessas ações integradas, foi realizada em 17 de abril, na própria igreja, reunião comunitária (representantes da administração paroquial, Guarda Municipal, comando de setor da PMMG e frequentadores da igreja). Durante o encontro, foram abordadas orientações de segurança e autoproteção, além de temas como desordens urbanas, integração comunitária e planejamento preventivo para a Semana Santa.
O Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) informa que acompanha com atenção as situações que envolvem bens tombados, como é o caso do Santuário Arquidiocesano da Santíssima Eucaristia. No que se refere à segurança pública, "trata-se de uma atribuição das forças de segurança, com as quais o Iepha busca manter diálogo sempre que necessário, sobretudo quando o patrimônio está sob risco". A nota da instituição informa ainda que "especialmente no que diz respeito a meios de proteção, há alternativas que podem ser consideradas, como a instalação de câmeras de monitoramento e de focos de iluminação com sensor de presença, que ajudam na dissuasão de atos de vandalismo e aumentam a sensação de segurança na área".
Por sua vez, superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional (Iphan) esclarece que apenas o lavatório da antiga Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem é tombado pela autarquia federal, "razão pela qual não cabe ao Instituto se manifestar sobre a situação mencionada, salvo em caso de risco direto ao bem tombado".
Restauração
Após um período de oito anos em restauração, o Santuário Arquidiocesano da Santíssima Eucaristia vai passar por novas intervenções nos pináculos e duas torres, serviço orçado em R$ 8 milhões. A paróquia está se mobilizando para conseguir os recursos e fazendo eventos, a exemplo do 8º Churrasco e 1º Arraiá dos Amigos da Boa Viagem, que será realizado em 24 de maio no Condomínio do Recanto do Lazer, em Casa Branca, Brumadinho, na Região Metropolitana de BH.
Quem entra no santuário pode ver os efeitos da primeira etapa do restauro concluída em 2019. Nas obras realizadas na igreja, foram descobertas duas cores originais sob sete camadas de tinta aplicadas durante quase um século. Ornamentando o interior do templo, estão o azulado, que remete à abóbada celeste e à Virgem Maria, e o amarelo ocre no tom do trigo, símbolo da Eucaristia.
O trabalho de restauro ocorreu em etapas. O telhado, um dos pontos mais importantes para proteger a construção e o acervo, foi reformado. Duas capelas laterais, que ficam no interior do templo, foram restauradas, momento em que a equipe técnica envolvida nas obras descobriu as cores originais das paredes, barrados e relevos decorativos do santuário. A imagem da padroeira de Belo Horizonte, Nossa Senhora da Boa Viagem, do século 18, também foi restaurada pela especialista Carla Castro Silva.
Além das capelas internas, dedicadas a Nossa Senhora da Boa Viagem e ao Sagrado Coração de Jesus, a equipe restaurou o altar principal, o trono do Santíssimo Sacramento, a cúpula (torre interna de 36 metros de altura), a nave, o coro, as tribunas localizadas à direita e à esquerda, o calvário (sala interna) e a cripta, onde bispos e arcebispos são sepultados, a exemplo do pioneiro na Arquidiocese de BH, dom Antônio dos Santos Cabral (1884-1967), dom João Resende Costa (1910-2007) e do cardeal dom Serafim Fernandes de Araújo (1924-2019).
Os serviços foram conduzidos a partir de doações de pessoas físicas e jurídicas, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, assim como doações espontâneas de paroquianos e amigos do santuário e eventos organizados pela comunidade paroquial.
História centenária
Inaugurada em 1922 como monumento ao centenário da independência do Brasil, o Santuário Arquidiocesano da Santíssima Eucaristia, conhecida por Igreja Boa Viagem e durante décadas “catedral provisória” da Arquidiocese de BH, tem uma trajetória que vai muito além de mais de um século de fundação. A história da capital surgiu com a imagem que estava na capela original, em torno da qual nasceu o arraial, formou-se a vila e cresceu a capital.
Para entender melhor a história, é preciso voltar no tempo, mais precisamente ao século 18. Em 1709, o português Francisco Homem del Rey conseguiu autorização da Coroa portuguesa, por meio de cartas de sesmarias, e se estabeleceu na região onde hoje se encontra Belo Horizonte.
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Segundo as pesquisas, ele trouxe uma imagem da padroeira dos navegantes portugueses, Nossa Senhora da Boa Viagem, que o acompanhou na travessia do Oceano Atlântico. Para homenageá-la e proteger a imagem, Francisco ergueu em suas terras uma pequena capela de pau a pique. Como estava na rota dos tropeiros que passavam pela região transportando riquezas do interior do país, a igrejinha recebeu o nome de Nossa Senhora da Boa Viagem e passou a ser conhecida também como a padroeira dos viajantes.
Com o passar dos anos e a enorme devoção dos fiéis, a capelinha ficou pequena para receber tanta gente e em seu lugar foi construída uma igreja maior. Mas, com a construção da capital, foi necessário erguer um novo templo – o atual Santuário Arquidiocesano da Santíssima Eucaristia. Em 1937, no Dia de Cristo Rei, teve início a adoração perpétua no santuário, uma tradição, portanto, de 88 anos na cidade.