Povos indígenas transformam a educação em arma de resistência
Indígenas ainda enfrentam preconceito nas universidades, mas ocupar espaços tem sido o caminho para a transformação
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Siga noO acesso à educação, sobretudo ao ensino superior, ainda representa um grande desafio para os povos originários. Entre os milhares de médicos formados pela Universidade Federal de Minas Gerais, apenas cinco são indígenas.
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Otávio Kaxixó, de 31 anos, conquistou recentemente seu diploma. Natural de Martinho Campos, na Região Centro-Oeste de Minas Gerais, sempre estudou em escolas públicas e cultivava o sonho de conhecer o mundo. No entanto, durante o Ensino Médio, ingressar em uma universidade pública sequer era cogitado. A virada veio quando uma amiga viajou para Belo Horizonte para fazer cursinho — foi então que ele passou a enxergar novas possibilidades.
“A medicina nem chegou a ser um sonho, porque ninguém nunca me apresentou isso como uma possibilidade. Por curiosidade — porque sou uma pessoa muito curiosa — comecei a pesquisar e entender o que era essa universidade pública de que tanto falavam e que, por tanto tempo, me negaram o acesso”, conta o médico.
Segundo ele, a escolha pela medicina surgiu de uma combinação de fatores. Otávio explica que os profissionais que visitavam a aldeia não tinham vínculo com a comunidade e não compreendiam as especificidades da saúde indígena, profundamente conectada ao território e às relações interpessoais. Quando algum médico conquistava a confiança dos moradores, logo era substituído. Ele também presenciou o sofrimento de um membro da aldeia que sofreu um infarto e não recebeu atendimento médico por falta de ambulância e de uma unidade de saúde próxima.
Seu primeiro vestibular para medicina foi em 2011, sem sucesso. No ano seguinte, tentou enfermagem e foi um dos 12 indígenas aprovados em seis cursos por meio de um projeto piloto da UFMG. Mas o desejo pela medicina falou mais alto. Otávio abandonou o curso próximo à formatura e, em 2018, ingressou na primeira turma oficial do vestibular indígena da universidade.
Hoje, atua em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), na atenção primária à saúde da família, e pretende conquistar uma vaga para trabalhar diretamente com povos indígenas. Enquanto isso, segue como exemplo de que é possível.
“Hoje estou aqui como médico formado em uma das melhores universidades da América Latina para mostrar que o que nos falta é oportunidade de acesso. Quando conseguimos, avançamos, mudamos e evoluímos junto com a universidade", afirma.
Desafios
Os desafios no caminho foram muitos, e o principal deles foi o preconceito, que se manifestava de diversas formas. Otávio explica que o imaginário coletivo ainda associa os povos indígenas a estereótipos limitantes, resumidos na figura do “índio” — um termo que ignora a diversidade e a complexidade de suas culturas.
“Não querem ver um indígena de jaleco fazendo uma ausculta cardíaca, querem ver a gente fazendo rituais e andando de canoa no rio. Não que a gente não faça isso, mas somos muito mais que isso. Queremos fazer da educação nossa nova arma na luta pelos nossos direitos”, afirma Otávio.
A pedagoga e administradora pública Fernanda Xakriabá atuou por 12 anos como supervisora pedagógica na educação escolar indígena. Ela avalia que houve avanços nas políticas públicas voltadas ao acesso à educação por parte dos povos originários, com medidas como o sistema de cotas, a Formação Intercultural para Educadores Indígenas e o Programa de Vagas Suplementares da UFMG.
Por outro lado, ainda há falhas nas políticas de permanência e dificuldades no sentimento de pertencimento ao ambiente universitário — fatores que, segundo ela, podem levar inclusive ao suicídio. Fernanda destaca a importância da troca: assim como os povos indígenas aprendem com as universidades, estas e a sociedade também têm muito a aprender com os saberes tradicionais.
“Uma das nossas filosofias é ‘um pé na aldeia e um pé no mundo’, o que significa garantir a permanência no território, mas também oferecer segurança para quem deseja sair e estudar. É essencial criar um espaço de troca. Por mais que estejamos presentes, a universidade precisa dar conta de outras representações — como a própria sociedade em que vivemos. É um processo incansável na busca por ter voz”, afirma.
Além de pedagoga, Fernanda integra a equipe de comunicação da deputada Célia Xakriabá e acompanha de perto o nascimento do projeto da Universidade Indígena — um espaço centrado nos saberes originários que está sendo discutido no Governo Federal.
Universidade Indígena
Segundo o IBGE, o Brasil abriga 305 povos indígenas que falam 274 línguas diferentes. Para atender melhor essa diversidade, está em debate a criação da Universidade Indígena — uma iniciativa conjunta do Ministério da Educação (MEC) e do Ministério dos Povos Indígenas. Em 2024, foi instituído um Grupo de Trabalho Nacional, que trabalha para finalizar a proposta até 2025.
Eliel Benites, professor e pesquisador da Faculdade Intercultural Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), integra o Grupo de Trabalho Nacional responsável pela construção da proposta da Universidade Indígena. Ele explica que o objetivo da universidade é romper com a visão unilateral imposta historicamente, responsável por diversas formas de violência contra os povos indígenas desde o período colonial. A proposta considera a trajetória histórica, o direito à educação e a vivência consolidada nas práticas da educação escolar indígena.
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“Nosso objetivo é promover a reparação histórica dos povos indígenas, trazendo os saberes ancestrais como base para a construção de um novo conhecimento, capaz de garantir a sustentabilidade e os direitos dos povos indígenas no Brasil”, afirma Benites. “Será uma grande inovação para a sociedade, com as comunidades indígenas assumindo o protagonismo”, completa.
Ele acrescenta que a proposta inclui a implementação de novas metodologias, modelos de pesquisa e formatos de produção acadêmica, com ênfase na valorização do pensamento hegemônico em diálogo com os saberes tradicionais.