Motofaixa avança entre dúvidas e obstáculos
Com aceno positivo do prefeito, recursos reservados e intuito de evitar mortes, áreas só para motos podem tropeçar até no relevo e exigem plano criterioso,
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Siga noBelo Horizonte anda em marcha lenta em um debate que, em São Paulo, percorreu mais de 215 quilômetros: o de criar faixas exclusivas para motos no trânsito. Com aceno positivo do prefeito e orçamento já reservado para este ano, a ideia pode enfim deixar de ser apenas uma promessa para se tornar realidade na capital mineira. A proposta avança com orçamento definido, mas especialistas pedem cautela e planejamento criterioso.
A iniciativa já tem investimento de R$ 400 mil garantido pela inclusão de uma emenda na Lei Orçamentária Anual (LOA), angariada por uma articulação da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL/BH). A verba, resultado de uma sugestão popular aprovada na Câmara Municipal, obriga a execução do projeto neste ano. A entidade diz que, desde 2016, pressiona os órgãos de trânsito a pensar uma forma de organizar o tráfego de motos em vias onde a convivência entre carros, ônibus e motociclistas é cada vez mais perigosa —e, muitas vezes, fatal.
A urgência está nas estatísticas. Só nos primeiros três meses deste ano, 20 motociclistas morreram em acidentes em Belo Horizonte, o que representa 60,6% de todas os óbitos no trânsito da capital. Ao todo, foram 4.895 sinistros envolvendo motos, uma média de 54 por dia, segundo dados do Painel de Acidentes de Trânsito do Observatório de Segurança Pública de Minas Gerais. O número representa quase 24,1% do total de acidentes neste ano na cidade (20.295).
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Mesmo com o dinheiro reservado, o caminho ainda exige uma série de etapas. Atualmente, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) não contempla faixas exclusivas para motocicletas, o que exige uma autorização provisória da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) para que qualquer iniciativa nesse sentido seja colocada em prática.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) disse, em nota, que já acionou o órgão federal e informou que os estudos de viabilidade estão em andamento, embora ainda não haja previsão para a divulgação dos resultados. “Serão necessárias análises e pesquisas, já em andamento, em que serão avaliados, entre outros fatores, os modelos adotados em outras cidades, como São Paulo, e os resultados alcançados com observações da realidade local”, informou por meio de nota.
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Na prática, a cidade enfrenta obstáculos geográficos e estruturais. Avenidas como Cristiano Machado, Antônio Carlos, Amazonas e Contorno —algumas das mais movimentadas e, não por acaso, com os maiores índices de acidentes com motos— são também corredores que já convivem com faixas exclusivas de ônibus, pistas reduzidas e afunilamentos. O próprio prefeito reconhece as limitações. Em entrevista recente, ele reconheceu que não será possível implementar as motofaixas em todos os corredores. “Onde eu conseguir fazer, eu vou fazer”, declarou Damião.
Enquanto BH analisa possibilidades, Betim, na Grande BH, foi a segunda cidade mineira a implementar uma motofaixa, no mês passado. O primeiro trecho, com três quilômetros de extensão, foi instalado na Avenida Edméia Matos Lazzarotti e passa por três cruzamentos semaforizados. A expectativa é que, se os resultados forem positivos, o modelo seja ampliado. A decisão veio após um levantamento apontar mais de 1.200 acidentes com motos em um ano no município, muitos deles com feridos graves.
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Antes disso, Pouso Alegre, no Sul de Minas, foi a pioneira no estado ao adotar a faixa em 2022, inspirada no modelo paulista, onde os cinco primeiros quilômetros deram tão certo que hoje o município já soma 215km de motofaixas em mais de 46 vias.
DEMANDA ANTIGA
O apelo dos motociclistas por um corredor exclusivo em BH é antigo. Rogério dos Santos Lara, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Motociclistas e Ciclistas de Minas Gerais, lembra que o tema já era debatido no início dos anos 2000, muito antes da implementação paulista. A ideia chegou a ganhar força em 2015, com um levantamento feito pelo próprio sindicato, mas nunca saiu efetivamente do papel.
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Lara é motociclista e sente na pele a insegurança nas ruas, mas pondera que qualquer medida deve considerar o coletivo até mesmo para não trazer rusgas com outros públicos. “A faixa sempre vai trazer segurança. Mas não podemos pensar só em nós. Vai melhorar pra quem trabalha, mas pode incomodar o restante da sociedade. E temos que tomar esse cuidado. Tem que fazer com consciência”, pontua.
Para ele, a geografia de BH impõe limites claros. Cita, por exemplo, a Avenida Amazonas, que liga o Centro às regiões Oeste e do Barreiro, como um dos pontos críticos para qualquer alteração estrutural, já que há trechos em que não há largura suficiente para reservar uma faixa para as motos, sem comprometer a trafegabilidade dos demais modais. “Não é só ter o espaço para moto passar. Tem que pensar na faixa dos dois lados, nas medidas mínimas. Em vias como a Amazonas, só espremeria ainda mais o trânsito”, explica.
Outro ponto sensível, segundo ele, está na Avenida Cristiano Machado, campeã há décadas de acidentes na capital mineira. Apenas nos três primeiros meses deste ano foram 225. Em 2024, cinco pessoas morreram em colisões de motocicleta nessa via, e outras 67 sofreram lesões graves. O motivo, na avaliação de Lara, é uma convergência caótica de veículos que se cruzam vindos de diferentes regiões, como Minas Shopping e Linha Verde, por exemplo, que resulta em alto índice de colisões, muitas delas fatais.
A análise é compartilhada por Alysson Coimbra, diretor da Associação Mineira de Medicina de Tráfego (Ammetra). Ele reconhece que o modelo vem sendo aplicado com bons resultados em São Paulo, mas lembra que, mesmo lá, ainda é considerado experimental. Em Belo Horizonte, segundo ele, o sucesso depende da análise cuidadosa de cada via. “A questão é compatibilizar com as faixas de ônibus e avaliar a largura real das vias”, reforça. Coimbra vê potencial em corredores como a Via Expressa, Antônio Carlos, Pedro I e Andradas, mas descarta a implantação nas avenidas Cristiano Machado, Amazonas e Pedro II.
NÃO BASTA “PINTAR O CHÃO”
Mais do que delimitar um espaço com tinta azul no asfalto, o projeto das motofaixas levanta um debate mais profundo sobre a convivência no trânsito e a necessidade de formação adequada para os motociclistas —e respeito de todos os lados. Outro fator determinante é a mudança no perfil dos motociclistas urbanos. Em BH, estima-se que mais de 120 mil pessoas atuem como entregadores ou mototaxistas.
Na análise do sindicalista, a segurança depende de uma política mais ampla. Ele defende que a criação das faixas venha acompanhada de programas de educação no trânsito voltados aos motociclistas, que muitas vezes entram no mercado sem preparo técnico e com pouca noção das regras. Segundo ele, o desafio maior hoje se chama direção segura. “Tem muita gente que está nas ruas sem preparo. O projeto não pode ser só estrutural. Precisa vir com educação, regras claras e fiscalização”, alerta Rogério Lara.
A crítica vai ao encontro da fala do especialista em trânsito Silvestre Andrade, que destaca a falta de fiscalização como um dos principais fatores de risco. Para ele, a faixa azul pode sim contribuir para a redução de acidentes, desde que venha acompanhada de ações de fiscalização e educação. “Os motociclistas se sentem à vontade para infringir regras. Não há um controle de comportamento, e isso reflete diretamente nos índices de acidentes”, afirma. Silvestre também reforça que o trânsito não pode ser visto como responsabilidade de um único grupo. Embora haja imprudência por parte dos motociclistas, ele lembra que muitos motoristas de carro também desrespeitam as regras.
PRESSÃO NO SISTEMA DE SAÚDE
A percepção do consultor encontra eco no dia a dia dos hospitais. No Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, referência no atendimento a traumas, 20 vítimas de acidentes com moto deram entrada por dia em 2024 — cinco a mais que a média registrada no ano anterior. O número cresceu de forma constante nos últimos cinco anos, com exceção de 2022, e atinge em especial os profissionais do setor de entregas. Do total de acidentes com motos neste ano, 3.401 tiveram vítimas. Destes, 201 ficaram em estado grave e tiveram que ser levados ao hospital, conforme os dados do Painel de Acidentes de Trânsito do Observatório de Segurança Pública de Minas Gerais.
Motocicletas lideram os acidentes automobilísticos atendidos na unidade. A maior parte das vítimas sofre traumas leves, como fraturas em membros inferiores, mas os casos graves, como traumatismos cranianos, vêm crescendo. “A moto sempre foi a principal causa de acidentes nos hospitais, mas vimos um aumento após a pandemia com o crescimento do delivery e do transporte de passageiros por aplicativo”, explicou o gerente médico Rodrigo Muzzi, do João XXIII, em entrevista anterior ao Estado de Minas.