em Reportagem de 1946 na revista O Cruzeiro, David Nasser comparou a repressão do regime Vargas aos métodos do nazismo, revelando o lado sombrio do governo -  (crédito: FotoS: Reprodução revista

em Reportagem de 1946 na revista O Cruzeiro, David Nasser comparou a repressão do regime Vargas aos métodos do nazismo, revelando o lado sombrio do governo

crédito: FotoS: Reprodução revista "O Cruzeiro"

Publicada em O Cruzeiro em 26 de outubro de 1946, a reportagem “Falta Alguém em Nuremberg”, escrita por David Nasser, é uma das mais contundentes denúncias já publicadas pela imprensa brasileira. Em plena transição democrática, Nasser teve a coragem de revelar ao país as práticas de tortura sistemática que marcaram os porões da ditadura de Getúlio Vargas, desmontando o mito do “pai dos pobres” e expondo o rosto brutal do Estado Novo.


O texto começa com uma ironia amarga: enquanto o mundo julgava os crimes de guerra em Nuremberg, o Brasil ainda não havia olhado para os seus próprios algozes. “Falta alguém em Nuremberg”, escreveu o repórter, apontando para os torturadores que agiram impunes sob o pretexto da defesa da ordem. Com estilo literário e indignado, Nasser descreve os métodos de suplício usados pela polícia política, sob o comando do delegado Romano, no edifício da antiga Polícia Central do Rio de Janeiro.


Ali, os presos políticos eram amarrados a ferros de lustre, recebendo golpes até desmaiar. Depois, vinham os choques elétricos, as queimaduras com cigarros e o chamado “banho” — um jato d’água de hidrante lançado com pressão total sobre o corpo nu do interrogado. “O sangue secava e Romano tornava a aplicar o banho”, relata o jornalista. Mulheres também eram violentadas. Nasser cita o caso de uma empregada doméstica chamada Júlia, encontrada com os seios em carne viva e a cabeça raspada.


Os gritos ecoavam pelos corredores, abafados por risos de policiais e pelo retrato de Vargas pendurado na parede — “olhando os que sofriam com o mesmo sorriso com que olhava os que aplaudiam”. Cada parágrafo da reportagem é uma acusação direta à hipocrisia de um governo que, no mesmo período, enviava tropas à Europa para lutar contra o fascismo. “O nazismo morria na Europa, mas aqui florescia o medo”, escreveu Nasser.


A força da reportagem não está apenas na denúncia, mas na reflexão moral que ela propõe. O jornalista amplia a responsabilidade: “Falta também o que silenciou. Porque o silêncio é o mais covarde dos cúmplices”. Para ele, a impunidade dos torturadores e o esquecimento coletivo formavam uma segunda violência — a da memória apagada.


Mais do que um texto de época, “Falta Alguém em Nuremberg” antecipa em décadas o debate sobre crimes de Estado, memória histórica e direitos humanos. É uma peça de jornalismo investigativo e, ao mesmo tempo, um libelo ético. Nasser não apenas narra: ele convoca. Convoca a imprensa, a sociedade e a história a julgarem os que escaparam dos tribunais.


Setenta e nove anos depois, sua reportagem continua ecoando como um documento essencial da consciência brasileira. Um alerta contra o esquecimento e uma lembrança de que, enquanto a verdade não for reconhecida, continuará a faltar alguém — não apenas em Nuremberg, mas na própria justiça do Brasil. 

 

“O sangue secava e Romano tornava a aplicar o banho. O jato de hidrante batia no corpo nu até rasgar a pele. O riso dos policiais abafava os gritos, e, no alto, o retrato de Getúlio sorria — o mesmo sorriso com que olhava os que aplaudiam.”

Trecho da reportagem “Falta Alguém em Nuremberg”, de David Nasser, publicada na revista O Cruzeiro em 26 de outubro de 1946.