Filinto Müller coordenava prisões, deportações e interrogatórios. Seu lema: "Aqui, a verdade se arranca"
Por trás dos discursos patrióticos e das marchas cívicas, o Estado Novo cultivou uma máquina de repressão eficiente e cruel. Entre fichas, relatórios e confissões arrancadas à força, o regime criou um sistema de vigilância e tortura que se tornaria o embrião das polícias políticas do século XX brasileiro.
O Brasil que emergiu de 1937 não era apenas o das fábricas de Volta Redonda ou das leis trabalhistas: era o país dos interrogatórios noturnos, das prisões sem mandado e das celas abafadas onde o silêncio gritava mais alto que os discursos oficiais.
Em 1946, o Congresso Nacional criou a CPI dos Crimes do Estado Novo, presidida pelo general Euclides de Oliveira Figueiredo. A comissão ouviu vítimas e ex-agentes, mas foi encerrada sem responsabilizações. O poder militar e o pacto de silêncio da redemocratização enterraram a verdade.
Décadas depois, a Comissão Nacional da Verdade (2012–2014) revisitou casos de tortura, destacando o de imigrantes japoneses presos e mortos injustamente durante a Segunda Guerra. Em 2024, o governo brasileiro pediu desculpas formais à comunidade nipo-brasileira — o primeiro reconhecimento público de que o racismo e o autoritarismo haviam caminhado juntos naquele período.
O nome mais temido dos porões era o de Filinto Müller, chefe da Polícia do Distrito Federal entre 1933 e 1942. Militar disciplinado e leal a Vargas, transformou a Chefatura de Polícia em um quartel de vigilância total. Müller coordenava prisões, censuras, deportações e interrogatórios. Seu lema, repetido pelos subordinados, era direto: “Aqui, a verdade se arranca.”
Sob suas ordens, Luís Carlos Prestes foi preso e Olga Benário, sua companheira, deportada grávida para a Alemanha nazista — onde morreria em uma câmara de gás. O caso marcou a história brasileira como um dos atos mais desumanos do período. Müller, contudo, jamais foi julgado.
Relatos de ex-presos descrevem-no como um homem frio, que observava os interrogatórios fumando em silêncio. Choques, queimaduras, espancamentos e privação de sono eram métodos habituais. Alguns sobreviventes relataram o uso de instrumentos apelidados com ironia macabra, como “anjinho” — alicate usado para esmagar genitais.
Graciliano Ramos foi encarcerado por quase um ano, sem culpa formada. “Vi homens voltarem do interrogatório com o rosto inchado e a alma partida”, escreveu. O líder camponês Gregório Bezerra relatou ter sido pendurado pelos pulsos até desmaiar. O humorista Aparício Torelly, o Barão de Itararé, saiu da prisão dizendo: “Entrei cidadão, saí barão”.
Em 1946, o jornalista David Nasser e o fotógrafo Jean Manzon publicaram na revista O Cruzeiro a série “Falta Alguém em Nuremberg”. A denúncia mostrava, com documentos e fotos, que o Brasil também tivera sua Gestapo doméstica. Nasser descreveu as salas de tortura com precisão cirúrgica: “Os presos, amarrados, eram interrogados à luz do maçarico. O fogo subia como se buscasse a verdade dentro da carne.”
Enquanto o DIP fabricava o mito do “pai dos pobres”, os porões fabricavam o medo. Entre 1937 e 1945, o Tribunal de Segurança Nacional processou mais de 10 mil pessoas e condenou 4.100, muitas sem defesa. Não houve campos de concentração, mas houve desaparecimentos, suicídios e torturas sistemáticas.
Oito décadas depois, o eco dessas vozes ainda ressoa. O Estado que prometia proteger o povo aperfeiçoou a dor como instrumento de poder — e ensinou ao Brasil que a tortura podia vestir farda, toga e silêncio.
Perseguidos pelo regime
Luís Carlos Prestes
Líder da Coluna Prestes e do Partido Comunista Brasileiro, foi preso em 1936 após a Intentona Comunista. Sua prisão marcou o início da repressão sistemática aos opositores.
Olga Benário Prestes
Alemã, judia e militante comunista, foi entregue pelo governo Vargas à Alemanha nazista mesmo grávida. Deportada em 1936, morreu na câmara de gás do campo de extermínio de Bernburg, em 1942. Tornou-se símbolo da crueldade e da conivência do regime brasileiro com o nazismo.
Carlos Marighella
Intelectual e militante comunista baiano, foi preso e torturado pelo DOPS durante o regime. Libertado anos depois, elegeu-se deputado federal em 1946 e, mais tarde, tornou-se símbolo da luta armada contra a ditadura militar.
Graciliano Ramos
Preso sem acusação formal em 1936, passou dez meses no cárcere. De sua experiência nasceu “Memórias do Cárcere”, relato de resistência e denúncia sobre o autoritarismo de Vargas.
Monteiro Lobato
Crítico do governo e defensor da exploração nacional do petróleo, foi preso em 1941 por “ofensas à honra do presidente”. Suas cartas denunciavam o atraso e o centralismo do poder.
Jorge Amado
Escritor e deputado comunista, teve seus livros censurados e queimados. “Capitães da Areia” foi apreendido por “subversão moral”. Tornou-se um dos autores mais visados pelo regime.
Patrícia Galvão (Pagu)
Escritora, jornalista e militante comunista, foi presa e torturada diversas vezes entre 1935 e 1940. Tornou-se símbolo da resistência feminina e da coragem intelectual.