MERCADO mantém pressão

Indústria insiste na legalização de cigarros eletrônicos

Setor do tabaco quer reverter resolução da Anvisa que determina a proibição do uso dos dispositivos no Brasil. Estudos e especialistas apontam os elevados risco

Publicidade
Carregando...

Em abril de 2024, após a realização de uma consulta pública, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) optou por manter a proibição, no Brasil, da fabricação, importação, comercialização, distribuição, armazenamento e transporte de dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), também conhecidos como cigarros eletrônicos ou vapes.


A decisão frustrou a indústria do tabaco: na véspera da publicação da resolução pelo órgão, a Philip Morris havia convocado jornalistas para um seminário na Colômbia, no qual defendeu a regulamentação dos DEFs. A British American Tobacco (BAT), detentora da Souza Cruz, planejava organizar um evento semelhante no Rio Grande do Sul, tradicional polo fumicultor, mas foi frustrada pelas enchentes que arrasaram o estado.


O desastre climático, porém, não impediu que a conferência fosse realizada em março último, quase 1 ano depois, com o nome de “a importância da regulamentação dos cigarros eletrônicos no Brasil”, em um complexo localizado em Cachoeirinha (RS), que a multinacional chama de BAT Brazil Labs e afirma ser “o segundo maior laboratório privado do país em capacidade analítica”. No local, entre os defensores da liberação presentes estava a farmacêutica Alessandra Bastos Soares, consultora científica da BAT, que chegou a ocupar o cargo de diretora da própria Anvisa nos anos de 2017 a 2020. A decisão do órgão federal, portanto, não aliviou a pressão da indústria tabagista.


O lobby não ocorre por acaso. De acordo com a própria BAT, o número de pessoas que utilizaram os DEFs em um período de até 30 dias no país aumentou nada menos que 600% em 5 anos: saltou de aproximadamente 499 mil usuários, em 2018, para quase 2,9 milhões em 2023. Paradoxalmente, apesar do enorme crescimento na demanda e da previsão de que a alta tenda a se manter, a empresa, que já produz e vende legalmente os vapes em outros países, entre os quais Estados Unidos e Reino Unido, jura de pés juntos que o objetivo não é atrair novos consumidores – o público-alvo seria formado por adultos que já fumam cigarros convencionais e poderiam escolher uma opção “de menor risco”.


Esse argumento, inclusive, é utilizado pelos fabricantes também no exterior, mas refutado por especialistas da área da saúde, devido à falta de confirmação por entidades científicas. A própria Anvisa, quando manteve a proibição ao produto, justificou que “não há estudos a médio e longo prazo para verificar se realmente se trata de alternativa menos nociva”. Maria das Graças Rodrigues de Oliveira, pneumologista pediátrica, sanitarista, e membro da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira (AMB) tem posicionamento semelhante: “Para se ter um câncer de pulmão, um enfisema, leva-se 30 anos”, sintetiza. É mais tempo que a idade do próprio cigarro eletrônico, introduzido no mercado chinês em 2004 por um farmacêutico local. Em 2012, a comercialização já atingia níveis continentais.


COMPOSIÇÃO PERIGOSA

Na defesa da indústria pela regulamentação, estão ainda outros argumentos, como a ausência de monóxido de carbono e de resíduos particulados nesses produtos, ambos decorrentes da combustão, inexistente nos DEFs. Porém, os vapes são bem mais perigosos do que os fabricantes os fazem parecer, destaca Maria das Graças. “Muitas das substâncias dos DEFs são conhecidas e estão presentes no cigarro convencional, como solventes”, pontua. A médica explica que a composição inclui aerossóis, elementos para minimizar o mal-estar do cigarro comum, chamados de aditivos, e nicotina na forma de sais, que é, nas palavras dela, “extremamente forte”. Todos esses produtos estão presentes em um líquido, que é aquecido para permitir a vaporização e a consequente inalação. O circuito eletrônico inclui ainda uma pequena bateria à base de lítio.


Apesar de recentes, os DEFs já revelaram uma das consequências da própria composição química aos usuários: as Lesões Pulmonares Associadas ao Uso de Cigarro Eletrônico ou Vaporizadores, conhecidas pela sigla em inglês Evali. A indústria minimiza os riscos, alegando que tal enfermidade está relacionada a formulações com óleo de THC (elemento psicoativo presente na maconha) e com o acetato de vitamina E (um antioxidante biológico), e que vapes de modelos “fechados”, que não permitem acesso ao líquido a ser vaporizado, resolveriam tal problema.


A médica Maria das Graças, porém, assegura que há incidência de casos dessa doença entre pessoas que não usavam essências com tais componentes. Até a própria nicotina, substância alcaloide presente no tabaco, que proporciona sensação de prazer, é atenuada pela BAT – a empresa admite que ela é a responsável pela dependência dos fumantes, mas afirma não se tratar de um elemento cancerígeno. “A nicotina é uma droga pesadíssima, que traz efeitos cardiovasculares”, rebate a pneumologista, que também relaciona os DEFs a problemas psicológicos, como ansiedade e depressão.


USO POR ADOLESCENTES

Um parecer elaborado pela Universidade Federal de São Paulo (USP), requerido pela Anvisa durante o processo que resultou na manutenção da proibição aos DEFs, revela que, em 2015, o uso desses itens já havia superado o dos cigarros convencionais entre os alunos do ensino médio no país. Na ocasião, de um total de 2,4 milhões de estudantes, 620 mil haviam usado o vape pelo menos uma vez ao longo dos últimos 30 dias, o que representa um percentual de 16%.


Em 2022, uma pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que o índice de experimentação do vape entre adolescentes com idades de 16 a 17 anos estava em 22,7%. Entre os fatores que atraem os jovens, estão os sabores – atualmente, existem mais de 16 mil deles – e a aparência tecnológica do produto: muitos, agora, incorporam tecnologias como anexos de telefone celular, alto-falantes embutidos e o uso de bluetooth. “Os de quarta geração são muito pequenos e se assemelham a pen-drives”, observa Maria das Graças.


A indústria argumenta que a legalização seria capaz de reduzir o acesso dos jovens aos DEFs, com medidas como a padronização do formato do produto e a disponibilização de “sabores para adultos”, na definição da BAT. Porém, dados do mesmo parecer utilizado pela Anvisa apontam que, em países que regulamentaram os DEF com medidas semelhantes, o uso entre jovens não diminuiu. Pelo contrário: nos Estados Unidos, pesquisas indicaram que a parcela de fumantes de vapes entre os estudantes do ensino médio chegou a 27% em 2019.


De acordo com o relatório da USP, o “marketing através da mídia social, bem como outras formas de marketing na internet, foi empregado para comercializar esses dispositivos”. Esse percentual só caiu após uma série de medidas governamentais, que incluíram campanhas destinadas ao público adolescente e até a proibição da venda de vapes saborizados em alguns estados.


A pneumologista Maria das Graças cita efeito parecido na Inglaterra, onde houve um grande aumento da experimentação de DEFs por jovens, mesmo após a normatização. “A OMS (Organização Mundial da Saúde) considera o tabagismo uma doença pediátrica, porque o uso começa antes dos 18 anos. No Brasil, dados do Ministério da Saúde indicam que a iniciação ao uso de tabaco ocorre, em média, aos 16 anos de idade.”


ENTRADA IRREGULAR

A defesa da regulamentação pela indústria do tabaco se apoia também na questão do contrabando, já que todos os DEFs comercializados chegam ao Brasil por vias ilegais. Entre as consequências da entrada irregular desses produtos, estão, além da evasão fiscal, o fortalecimento de organizações criminosas. Porém, o caso é que mesmo entre os cigarros convencionais, que são permitidos, a pirataria respondeu por uma gorda fatia de 32% do mercado e movimentou R$ 34 bilhões em 2024, segundo dados da Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec Inteligência). E esse índice já foi maior: atingiu 54% em 2018, superando o chamado mercado formal, de acordo com o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope).


Da atual parcela de 32% do mercado ocupada pelos cigarros clandestinos, 24% chegam ao país por meio de contrabando, vindos, principalmente, do Paraguai – os demais 8% são produzidos dentro do próprio país, por empresas piratas. No caso dos DEFs, a origem é, majoritariamente, a China: um relatório da USP revela que cerca de 90% da produção mundial do setor está nas mãos do país asiático, que concentra as fábricas nas províncias de Guangdong e de Zhejiang.


Apesar do mercado de DEFs ser totalmente ocupado por produtos ilegais, a maior parte dos derivados de tabaco apreendidos no país são do tipo convencional, o que indica que, em volume, eles ainda constituem um problema aduaneiro maior. Em 2024, foram apreendidos 2,9 milhões de vapes no Brasil, mais de 10 vezes menos que os 3,1 bilhões de cigarros convencionais (número que corresponde a 155 milhões de maços) confiscados pelas autoridades no mesmo ano, segundo dados compilados pelo Fórum Nacional contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP). 

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay