MINAS GERAIS

Pessoas não binárias expõem os desafios do reconhecimento formal em Minas

Pessoas não binárias compartilham suas vivências e os desafios de existir em uma sociedade que divide o mundo entre masculino e feminino

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O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, em maio de 2025, pela primeira vez, a possibilidade de retificar o registro civil para que nele conste gênero neutro. Ou seja, o sexo não será identificado nem como feminino nem como masculino. A decisão reacende o debate sobre os direitos e o reconhecimento de pessoas não binárias, aquelas cuja identidade de gênero não se encaixa nas categorias tradicionais de homem ou mulher. No dia a dia, essas pessoas enfrentam barreiras burocráticas e desafios cotidianos para existir em uma sociedade que ainda enxerga o mundo sob uma lógica binária.

Para compreender o tema é preciso entender a diferença entre sexo e gênero. Sexo é determinado por características biológicas, como genitais e cromossomos, já o gênero é uma construção social, relacionada à forma como a pessoa se percebe e se expressa no mundo. É o que explica Aeden Marques, pessoa não binária de 30 anos, que mora em Niterói, no Rio de Janeiro. “O sexo geralmente é determinado por noções biológicas, do corpo físico. O gênero é a identidade expressada por aquele corpo”, resume.

Autodeterminação

Aos 23 anos, Aeden se identificava como homem trans, fez mastectomia e utilizou hormônios por sete anos, até perceber que esse caminho já não refletia sua identidade, atualmente Aeden é uma pessoa não binária. “Todos nós, o tempo todo, estamos tentando entender quem somos. Se eu tomei hormônios por sete anos, é porque fez sentido por aqueles sete anos. Mas chegou um momento em que não fazia mais sentido, e eu parei”, relata.

Hoje, Aeden tenta alterar seus documentos, que foram retificados anteriormente como masculinos, para gênero neutro. Ele também desenvolveu uma dissertação sobre a sujeição não binária no Brasil. “O interessante é que os corpos não precisam ser exatos, e isso tira um peso enorme”, afirma. Para ele, a experiência não binária rompe com a ideia de que as pessoas precisam ser constantes, lineares e imutáveis. “Se nada na sociedade é constante, por que a identidade de gênero precisa ser?”, questiona.

“Comecei a dar nome e compreender racionalmente meu gênero aos 34 anos. Mas eu sempre fui uma pessoa não binária, desde criança. Eu só não sabia dar nome para o que eu sentia”, conta o jornalista e artista Zaíra Magalhães, de 38 anos, morador da Região Nordeste de Belo Horizonte. Zaíra é uma pessoa não binária trans masculina, ou seja, foi designado do sexo feminino ao nascer, se identifica com o gênero masculino, mas não de forma exclusiva.

Zaíra explica que, por muito tempo, tentou pertencer às opções binárias. “Depois que eu passei da adolescência, acabei me confortando com o título de mulher por conta do meu contato com o feminismo negro. Aquilo fazia algum sentido, talvez por ter sido minha primeira sensação de pertencimento.” Ainda assim, a sensação de desconforto permanecia. “O conceito binário não dava conta de explicar o que era meu gênero, para mim”, explica.

À medida que foi conhecendo outras pessoas não binárias, Zaíra foi desenvolvendo sua autopercepção. “Minha aparência hoje está bem ambígua. Se eu uso roupas largas, as pessoas não percebem meus seios e me leem como homem. Mas eu também uso decote quando quero”, conta. “Se fizer sentido pra mim, eu continuo usando, seja saia, seja batom, o que for.”

O maquiador Luke Loureiro, de 19 anos, morador da Região Oeste de BH também viveu um processo semelhante. Ele se identifica como pessoa não binária agênero, não se identifica com gênero nenhum. “Eu fui uma criança feminina, gostava de rosa e de boneca. Mas nunca me vi como mulher e não me identificava com o que era ser mulher. Demorei uns três anos para entender o que eu era”, relata.

Esse processo, segundo Luke, foi marcado por angústias, inseguranças e microagressões diárias. “Na internet, eu me declarava pessoa não binária mas, na vida real, eu tinha medo. Sempre me escondi muito. Às vezes, dizia que Luke era apelido ou nome artístico.”

Luke explica que, até hoje, lida com alguns preconceitos quando usa vestido, por exemplo. Isso porque, segundo o maquiador, existe uma expectativa de que uma pessoa não binária se vista de maneira andrógina (apresentando simultaneamente características do gênero masculino e feminino). “Mas a gente não tem obrigação de entregar essa androginia. Justamente porque não queremos nos encaixar em nenhuma dessas caixinhas”, defende.

Essa desconstrução também faz parte da trajetória de Luiza Cantini, designer de 23 anos, que mora na Região da Pampulha. Luiza se identifica como pessoa não binária, embora nunca tenha sentido desconforto com seu corpo ou com seu nome. “Para muita gente, é mais fácil enxergar o mundo em duas caixinhas. Mas até o próprio conceito de ser homem e ser mulher é flexível”, reflete.

No caso de Luiza, o incômodo se manifestava na forma como a sociedade impunha expectativas sobre roupas, comportamentos e papéis. “Não é que meu corpo me causasse desconforto, mas a maneira como eu era lida socialmente, sim. Usar vestido, por exemplo, me causava uma sensação estranha, assim como usar uma bermuda, e tentar performar uma masculinidade que não fazia sentido pra mim”, explica.

Para além das vivências individuais, há um obstáculo estrutural. Aeden Marques chama atenção para a dificuldade do Estado brasileiro em lidar com identidades fora do binário. “Se o SUS não comporta, se a Receita Federal não comporta, se a aposentadoria não comporta, a mudança fica só no papel. O Estado é binarista e precisa atualizar sua leitura”, conclui.

A reportagem procurou o Coletivo Não-Binárie de Minas Gerais (NBMG) para pedir dados, em nota o coletivo afirmou: “na atualidade, não existem dados. Sabemos que a ausência de dados é considerada um dado em si, já que denota que toda uma população está excluída das políticas públicas e sequer é reconhecida, quanto menos assistida”. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também não têm dados específicos sobre pessoas não binárias no Brasil.

Retificação de documentos em Minas Gerais

Diferente de outros estados brasileiros, onde a retificação para pessoas não binárias pode ser feita diretamente em cartórios, em Minas Gerais o caminho ainda é burocrático. A única possibilidade é pela via judicial, com o acompanhamento da Defensoria Pública ou advogado particular. 

“As pessoas trans binárias conseguem retificar nome e gênero diretamente no cartório. Já as pessoas não binárias, como não há regulamentação legal específica, precisam entrar com uma ação judicial e esperar uma sentença do juiz”, explica Vladimir de Souza Rodrigues, defensor público estadual de direitos humanos. Ele lembra que o Brasil tem um sistema jurídico e estatal profundamente binário. “O padrão de gênero do Estado ainda é homem ou mulher. Como uma série de direitos estão atrelados à categoria de sexo (aposentadoria, concursos, serviço militar), a Justiça entende que esses casos exigem julgamento”, completa.

A falta de legislação específica faz com que cada pessoa não binária precise brigar, individualmente, por sua identidade, seja no registro civil, seja em outras esferas da vida. Paixão Sessémeandê, de 35 anos, pessoa não binária que realizou a retificação de gênero neutro em Belo Horizonte, viveu na pele os entraves do sistema, de 2023 a 2025. Durante o processo, aponta que sofreu preconceito de um juiz, que chegou a exigir extratos bancários como critério para avaliar o pedido. “Hoje, uso o nome Paixão, que não delimita gênero, e Sessémeandê, que é o nome que ganhei no Candomblé e significa ‘cobra d’água’ em Kimbundo, língua de origem angolana”, afirma.

Do lado dos cartórios, a situação também é desafiadora. Márcia Fidelis Lima, presidente da Comissão Nacional de Registros Públicos (IBDFAM), admite que o registro civil tem sido cada vez mais provocado a se adaptar às demandas da diversidade, mas ainda opera dentro dos limites da lei. “Se os documentos trazem constrangimento, a alteração deles é fundamental. Mas, fora da binariedade, hoje o caminho jurídico ainda é limitado. A legislação e os sistemas públicos ainda estão se adaptando a isso”, afirma.

A busca pela retificação de documentos com gênero neutro cresceu significativamente nos últimos anos em Belo Horizonte, segundo o defensor público Vladimir Souza Rodrigues, há cerca de dois anos, a Defensoria decidiu organizar um mutirão para medir a demanda desse público. “A demanda foi muito elevada: em torno de 200 pessoas só em BH. E se houvesse a possibilidade de fazer a retificação diretamente em cartório, esse número seria, com certeza, ainda maior”, afirma.

Vladimir explica que atualmente, para realizar a troca de documentos basta procurar a Defensoria Pública de Minas Gerais. A média de duração do processo em BH é de cerca de seis meses.

Contatos


Av. Bias Fortes, 431 – 6º andar, bairro Lourdes, Belo Horizonte (MG)

Telefone:
(31) 2010-2038

*Estagiária sob a supervisão do subeditor Humberto Santos

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