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“De uma hora para outra”, como comumente dissemos nós mineiros, o que já era de conhecimento de todos aqueles que se prestam ao seu enfrentamento diuturno e ininterrupto, com todos os riscos e dificuldades a isso inerentes e para aqueles que se prestam a fazê-lo, o Brasil se apercebeu que o crime organizado começa a ocupar importantes atividades lícitas de nosso país.
Se a Faria Lima, conforme matéria divulgada recentemente, passou a incluir o PCC em seus cálculos, tendo, posteriormente, sido apurado que a mesma facção já havia se infiltrado na elite financeira do país, o Ministério Público de São Paulo, por meio do GAECO e de outras forças de segurança pública do mesmo Estado, descobriu a utilização em larga escala de metanol nos combustíveis, nos últimos dias, se não fosse o bastante, noticiou-se a morte de pessoas pela ingestão de bebidas alcoólicas adulteradas com essa mesma substância.
Esses últimos fatos, de extrema gravidade, que vão muito além de comprometer a livre concorrência, de, praticamente, inviabilizar a atividade empresarial correta e escorada nas melhores práticas de mercado, agora, se não fosse o bastante, provocam mortes e impõem sequelas graves ao consumidor, que muito pouco ou nada pode fazer diante desse quadro, seja porque a desinformação é muito grande, seja porque temos preocupantes números de analfabetismo funcional, seja porque as pessoas, ao abastecerem seus veículos ou adquirem bebidas alcoólicas, confiam na segurança desses bens e na eficaz atuação dos órgãos de controle e fiscalização.
Sendo assim, nesse contexto, imperioso que as forças de segurança pública, e, em especial, o Ministério Público de Minas Gerais, através do GAECO (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), instituído nos moldes atuais a partir de 2017, estejam atentos a essa nova dinâmica do crime organizado, que passa a auferir a maior parte de suas receitas com atividades lícitas, notadamente combustíveis, bebidas alcoólicas, cigarros, construção civil etc. e, sobretudo, concentrem seus recursos no enfrentamento a esse novo tipo de criminalidade.
E aqui se faz um registro inicial obrigatório: esse enfrentamento tem um tempo diverso das necessidades políticas, notadamente vinculadas ao calendário eleitoral, pois, em regra, as investigações que, de fato, prestam-se a combater as grandes organizações criminosas, demandam tempo para sua conclusão, pois, pressupõem, obrigatoriamente, compreensão de sua engrenagem criminosa, quase sempre muito complexa, de modo que a resposta nem sempre é rápida e coincidente com os mandatos dos governantes da época em que a apuração foi iniciada. Todavia, esse enfrentamento, insisto, é absolutamente necessário e, nos tempos atuais, deve ser o principal objetivo de todas as forças de segurança pública.
Em suma, se antes esse combate ocorria com a repressão às “bocas”, aos roubos, extorsões, furtos, homicídios e outros delitos, especialmente prendendo o delinquente, hoje, além disso, de forma a interromper, com alguma eficiência, a prática delitiva, ele deve se voltar para atividades lícitas como postos de combustíveis, distribuidoras de bebidas, medicamentos etc., e ao rastreio das atividades financeiras, cada vez mais sofisticadas, desses grupos criminosos.
Não basta mais apenas o policial na rua. A realidade mudou e muito.
Nesse passo, ressaltam-se recentes matérias publicadas em grandes meios de comunicação, segundo uma delas os valores atualmente obtidos por conhecida facção criminosa nacional com a venda de combustíveis supera em quase quatro vezes aquele extraído com a venda de substâncias entorpecentes e drogas afins.
Segundo ainda o último Censo do IBGE, 25% e 30% da população nacional, que correspondem a algo em torno de 50,6 milhões e 61,6 milhões de pessoas, vivem em territórios dominados pelo crime organizado.
Por isso, mais do que nunca atual e, além de tudo necessária, que a persecução penal, concomitantemente à responsabilização criminal daqueles que, de qualquer forma, integrem organizações criminosas, volte-se à sua asfixia financeira, inclusive com a possibilidade de requerer diretamente relatórios de inteligência financeira (RIFs) ao COAF, medida absolutamente fundamental para fazer cessar a prática ilícita, e, ainda, reverta os valores obtidos com essa atuação em prol da segurança pública e, especialmente, para o fortalecimento e aparelhamento das instituições que combatam o crime organizado.
E se, no primeiro ponto, a legislação, que, antecipa-se, está longe de ser a principal responsável pela situação gravíssima ora vivenciada, pode, todavia, ser aperfeiçoada, notadamente para estabelecer um tratamento muito mais gravoso aos integrantes de facções criminosas, algumas delas com modus operandi muito próximos a de máfias e endurecer a concessão de benefícios no curso da execução penal, todos os esforços devem ser direcionados para, muito além de apreender bens e valores dessas organizações criminosas e de todos aqueles que a integram, bem geri-los, o que vai muito além de seu tradicional uso, revertendo-os, insisto, para o enfrentamento do crime e, notadamente, daquele de feição organizada.
Para tanto, não é demais dizer que, se, por um lado, exsurge premente que todos aqueles que atuam na persecução penal tenham um inventário de todos os bens apreendidos em investigações e processos criminais deflagrados em face dessas organizações, que exista um esforço de empregar racionalmente esses bens na qualificação da investigação e da repressão criminal por parte do Estado.
E para tanto, a alienação antecipada desses bens, prevista em diversos instrumentos normativos, como o Código de Processo Penal (art. 144-A, do CPP) e Leis 9613/98 (art. 4º, § 1º), 11343/06 (art. 61) e incentivada pela Resolução 356 do Conselho Nacional de Justiça, constitui um importantíssimo instrumento para desafogar os pátios de veículos e, sobretudo, para conferir destinação correta a bens que constituam instrumentos do crime ou proventos obtidos com práticas ilícitas pelas organizações criminosas.
Nesse ponto, são dignas de aplausos iniciativas como a da rede recupera do Ministério da Justiça e Segurança Pública, segundo a qual, somente entre 2019 e 2024, através da SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos), com governos absolutamente distintos, a não deixar dúvida de que boas práticas de gestão suplantam mandatos eletivos e diferenças ideológicas, foram arrecadados R$ 254.367.181,45 com a alienação antecipada de bens apreendidos em investigações e processos criminais.
E, por certo, que todos esses esforços, para terem algum sucesso, deverão envolver a soma de esforços de todos os órgãos da segurança pública, notadamente Ministério Público, Judiciário, polícias Militar, Civil, Penal e Federal, assim como o próprio Executivo, que, muito antes de buscar protagonismos próprios e reconhecimento midiático, empreguem-se na solução técnica e apolítica do problema, que, repito, é absolutamente grave e atingiu dimensões jamais vistas em nosso país.
Em suma, é necessário e urgente, para, minimamente, fazer-se frente à situação atual de absoluta insegurança, que agora não se restringe mais apenas às ruas, um enfrentamento inteligente, técnico, eficiente e integrado do crime organizado, que não só venha a segregar por mais tempo a liberdade de todos os seus integrantes, mas que venha a promover eficazmente sua morte financeira, revertendo em prol do Estado e, mormente, da segurança pública, os bens e valores apreendidos como instrumentos do crime e que constituam proventos da prática de atividades criminosas.
Não é e nunca será fácil, mas o Estado vencerá essa guerra.