O direito administrativo sancionador
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O senhor ingressou na carreira do Ministério Público em primeiro lugar no concurso e, posteriormente, após 14 anos de exercício das funções, pediu exoneração para dedicar-se à advocacia privada. Poderia nos relatar como foi a decisão de ingressar no Ministério Público e, anos depois, a decisão de pedir exoneração?
A decisão de ingressar no Ministério Público foi natural consequência de minha formação acadêmica e de minha experiência precoce. Ainda no quarto ano da graduação em Direito, atuei como assessor do juiz de Alçada Moacir Danilo Rodrigues, no Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, elaborando minutas de votos. Ao concluir o curso, em janeiro de 1991, fui um dos oradores da turma, e logo em seguida frequentei a Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul. Nesse mesmo ano, prestei o concurso de ingresso ao Ministério Público, no qual fui aprovado em primeiro lugar, sendo esse o único concurso que realizei. Desde o início, identifiquei-me profundamente com a instituição e com suas atribuições. Durante os 14 anos em que exerci funções ministeriais, especializei-me em improbidade administrativa, área que também se tornou objeto de minhas pesquisas acadêmicas no mestrado em direito público da UFRGS. A decisão de pedir exoneração, anos depois, foi igualmente ponderada. Eu já havia amadurecido o entendimento de que poderia contribuir de outra forma para o Direito brasileiro, pela advocacia, pela docência e pela construção de novas agendas institucionais. A advocacia me ofereceu liberdade intelectual, amplitude de atuação e a oportunidade de consolidar projetos de integridade, governança e compliance no setor público e no privado, sem me afastar da vocação original de defesa da ética pública.
O senhor foi pioneiro no Brasil ao introduzir o Direito Administrativo Sancionador como disciplina científica, a partir da publicação da obra Direito Administrativo Sancionador, em 2000, e, posteriormente, ao instituir a primeira disciplina de mestrado e doutorado com essa denominação na Faculdade de Direito da UFRGS, em 2004. Além disso, o senhor criou a 1ª Comissão Nacional de Direito Administrativo Sancionador no âmbito do Conselho Federal da OAB. Qual é, em sua visão, a relevância atual do Direito Administrativo Sancionador e quais são os principais desafios para o seu aperfeiçoamento no Brasil?
O Direito Administrativo Sancionador ganhou, nos últimos anos, protagonismo no cenário jurídico brasileiro. Consolidou-se como uma disciplina científica autônoma, com papel central na organização do poder sancionador do Estado fora do âmbito penal. Sua principal contribuição foi ampliar a noção de sanção administrativa, alcançando inclusive a atuação do Judiciário em matéria sancionatória. Isso permitiu tratar a improbidade administrativa dentro de um regime jurídico próprio, pautado por garantias fundamentais como legalidade, tipicidade, dolo específico, proporcionalidade e devido processo legal. Essa nova abordagem superou a visão anterior, que via a improbidade apenas como uma forma de responsabilidade civil, e trouxe maior proteção tanto para os administrados quanto para os agentes públicos. Além disso, essa leitura está em sintonia com os parâmetros da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que exige a aplicação de garantias mínimas a todos os regimes sancionatórios, independentemente de sua natureza. O Supremo Tribunal Federal, em julgamento de repercussão geral, acolheu essa compreensão ao reconhecer a natureza sancionatória da improbidade e a necessidade de aplicar as garantias próprias do direito administrativo sancionador, ainda que a responsabilidade pelo ressarcimento mantenha feição civil. Foi, assim, confirmado em sede constitucional o marco doutrinário que sustentei desde a publicação da obra Direito Administrativo Sancionador, em 2000.
O Brasil enfrenta níveis elevados de litigiosidade, com impactos significativos nas contas públicas e na eficiência administrativa. Qual deve ser o papel da Advocacia-Geral da União nesse cenário e quais os caminhos para uma atuação mais racional e preventiva do Estado em juízo?
É justo reconhecer o empenho do ministro Jorge Messias, que vem conduzindo a Advocacia-Geral da União com uma agenda clara de modernização, voltada à redução da litigiosidade e ao fortalecimento da governança jurídica do Estado. Essa mudança é necessária: o Brasil figura entre os países com maior índice de judicialização, e a União não pode mais atuar sob a lógica da resistência automática. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige a identificação e o registro de riscos judiciais, transformando o contencioso em ferramenta estratégica para o planejamento das contas públicas. As normas internas da AGU reforçam essa diretriz, determinando que cada risco seja analisado de forma técnica e transparente, considerando a probabilidade de perda, o impacto fiscal e a relevância social. Essa é a base para decisões mais racionais, que equilibrem a defesa do interesse público com a sustentabilidade fiscal. Já as demandas procrastinatórias ou temerárias geram prejuízos relevantes: consomem recursos com custas, juros e honorários, e ainda comprometem a imagem institucional da União e da advocacia pública federal, que deve ser reconhecida como promotora de justiça eficiente, não como defensora de manobras dilatórias.
A recente reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), promovida pela Lei nº 14.230/2021, introduziu a prescrição intercorrente como forma de assegurar segurança jurídica e eficiência processual. No entanto, parte desse regime foi suspenso por decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, esvaziando em grande medida o alcance da nova lei. Qual é a sua avaliação sobre essa controvérsia e quais caminhos podem ser construídos para o equilíbrio entre combate à improbidade e respeito às garantias constitucionais?
A Lei 14.230/2021 reformou a Lei de Improbidade Administrativa e introduziu a prescrição intercorrente, estabelecendo que, após a interrupção, o prazo voltaria a correr pela metade. Em resposta, a CONAMP ajuizou a ADI 7.236. O relator, ministro Alexandre de Moraes, deferiu, em 23 de setembro de 2025, medida cautelar para suspender a eficácia da expressão que reduzia esse prazo – evitando, assim, a prescrição em massa de milhares de ações, prevista para iniciar em 26 de outubro do mesmo ano. Os fundamentos da decisão foram claros: a redução comprometeria a proteção à probidade (art. 37 da Constituição), seria incompatível com a complexidade dos processos de improbidade, que exigem ampla instrução probatória, e contrariaria a lógica histórica da prescrição, vinculada à inércia do autor da ação. Contudo, a liminar é criticável por seu caráter prematuro, pois retirou de imediato a eficácia da norma, esvaziando o exame do plenário. Assim, a ADIn 7.236 revela o dilema clássico do controle de constitucionalidade: proteger a probidade sem abrir espaço para impunidade, mas também sem comprometer a separação de poderes. Com o deferimento da liminar, o Supremo não apenas bloqueou a eficácia da norma, mas também impediu a consumação da prescrição, suprimindo o exame colegiado de sua aplicação prática. Isso retirou do tribunal a possibilidade de ponderar, com base em situações reais, os contornos e limites da regra, o que compromete a função institucional do plenário no controle de constitucionalidade. O ideal seria que a tutela cautelar fosse deferida após o dia 26 de outubro de 2025, quando o prazo, em tese, se consumaria. A antecipação não se alinha ao art. 300 do CPC, que exige probabilidade do direito e risco de dano atual, elementos que só se consolidariam após a fluência do prazo. Além disso, fere o princípio do contraditório (art. 9º, parágrafo único, I, do CPC), ao impedir que o debate amadureça com base em fatos. Ao agir assim, o relator não apenas afastou a incidência da lei em tese, mas também limitou a competência do plenário para modular efeitos conforme a realidade processual, tensionando os limites da função cautelar no controle abstrato de constitucionalidade.