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A mineira Maria Elizabeth Guimarães Teixeira da Rocha é a primeira e única mulher a assumir a posição de ministra do Superior Tribunal Militar (STM) na história do mais antigo órgão da justiça brasileira. As dificuldades por ser civil e mulher num ambiente majoritariamente ocupado por homens e militares. Com desenvoltura, a ministra Elizabeth Rocha conta ao D&J Minas, com exclusividade, sobre seus desafios e metas como a próxima presidente da tradicional instituição, o que já se iniciou com sua eleição por apenas um voto de diferença, mesmo sendo a mais antiga da Corte. Feminista assumida, ela tem na diversidade uma de suas bandeiras. E, demonstrando coragem e altivez, destaca os valores e a importância da Justiça Militar, para quem até nos momentos mais críticos sempre julgou com critério e preservação do amplo direito de defesa.


Nascida em Belo Horizonte e formada em Direito pela PUC/MG em 1982, qual foi sua trajetória no direito até se tornar a primeira mulher a integrar o Superior Tribunal Militar, na vaga destinada aos advogados, em 2007?


Foi longa, apesar de eu ter começado jovem! Assim que me graduei fiz Especialização em Direito Constitucional na Faculdade de Direito da UFMG, logo após concurso para procuradora federal e.posteriormente, o mestrado e o doutorado. Também lecionei nas cadeiras de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado em várias Universidades e Faculdades de Direito em Minas, Rio de Janeiro eBrasília. As últimas cátedras foram no curso de Relações Internacionais na UNB como professora convidada e na Faculdade de Direito do CEUB na graduação e na pós latu e stritu sensu, onde apesar de já ter me aposentado da cátedra, permaneço como palestrante e coordenadora de Seminários.


Como advogada pública tive a oportunidade de trabalhar nos três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário. Minha atuação cessou em 2007, quando o Presidente Luís Inácio Lula da Silva me indicou, em seu primeiro mandato, como magistrada no Superior Tribunal Militar.


A Sra. foi vice-presidente do STM de 2013 a 2015. Muita coisa mudou na justiça militar desde então? Como é vista a inteligência artificial no âmbito do processo judicial militar?


Sim, o mundo mudou muito desde então e o Poder Judiciário, obviamente, acompanhou as transformações. O Conselho Nacional de Justiça, na época, um órgão de controle externo acanhado, ganhou proeminência e tem editado pautas positivas em favor da transparência, da inclusão e da diversidade que todos nós, juízes, devemos implementar. Neste contexto, a Inteligência Artificial no âmbito judicial, sem dúvida, tem sido um grande desafio! Não podemos descartá-la, pois ela projeta o futuro, contudo, devemos utilizá-la com percuciência, preservando a humanidade dos julgados. Afinal, inaceitável delegar aos algoritmos decisões que afetam a vida dos cidadãos e cidadãs, nomeadamente, no âmbito de uma Justiça exclusivamente criminal, que lida com a liberdade, como a Justiça Militar Federal. É preciso estar atento ao transumanismo!


Quando foi vice-presidente a Sra. acabou exercendo, por um período, a presidência para complementar o mandato naquele biênio. Foi, com isto, a primeira mulher a assumir a presidência do STM. O fato de sera única mulher a ocupar uma vaga de Ministra na história do Superior Tribunal e, ainda, ser uma civil à frente do mais antigo tribunal, ocupado preponderantemente por homens e militares, tornou o desafio maior?


Sem dúvida, e falo abertamente das dificuldades que nós, mulheres, temos de enfrentar numa sociedade patriarcal e misógina, como a brasileira. Fui eleita, apesar de ser a mais antiga da Corte, por um voto de diferença: o meu. Isto reflete a segregação e as exclusões persistentes contra o gênero feminino! Nós mulheres não nos defrontamos apenas com um teto de vidro, mas com portas e paredes que buscam impedir nossa entrada e ascensão aos espaços de poder. Meu propósito à frente da Corte é, antes de mais nada, abrir caminhos para as novas gerações de mulheres e meninas, de modo a suavizar suas lutas para que sejam menos dolorosas. Tenho convicção de que não é a biologia, mas a cultura que constrói o destino, e aqui eu me refiro ao destino civilizatório.


Fui homenageada com o prêmio Bertha Lutz do Senado Federal, e procuro honrar o nome desta respeitável feminista que buscou, em tempos piores,emancipar intelectualmente a mulher.


Por isso, me orgulho de nos meus oito meses de mandato tampão ter, em parceria com o Conselho Federal da OAB e o Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB – transposto para mídia digital as sessões secretas dos julgamentos dos presos políticos julgados sob a égide da Lei de Segurança Nacional, que se encontravam em fita de celuloide e estavam se deteriorando. Um acervo histórico preciosíssimo que eu, como acadêmica e pesquisadora, não poderiapermitir que se perdesse. Igualmente, dei início à digitalização dos processos históricos da Justiça Militar da União que remontam à época Joanina, atravessam o Primeiro e o Segundo Reinado, adentram à República Velha, alcançam a Revolução de 30 e o Estado Novo de Vargas, as Guerras Mundiais, finalizando os tempos pretéritos, com o Golpe de 1964 e a ditadura que se sucedeu. Imagine a relevância desta documentação para o país!


Relembro, com emoção, o meu encontro com Anita Leocádia, quando lhe entreguei a mídia do processo nº 1 do então Tribunal de Segurança Nacional que funcionou no STM nos idos de 1937, a Apelação 4.889, no qual seu pai, Luis Carlos Prestes figurava como réu, e que serviu de subsídio para a biografia sobre ele que ela escreveu e publicou posteriormente.


Agora, após eleita em 5/12/2024, a Sra. está prestes a retornar à presidência do Superior Tribunal Militar, mas para um mandato integral. Quais serão seus principais desafios e seus principais projetos à frente da Corte?


Minha presidência se assentará em três pilares que considero fundamentais: transparência, diversidade e defesa da democracia. “Accountability” é hoje sinônimo de boas práticas de governança, e se traduz na prestação de contas à sociedade dos atos praticados, responsabilidade na gestão da coisa pública e fiscalização. Sem dúvidas tais preceitos já são adotados pela atual presidência e eu pretendo preservá-los e, se possível, adensá-los ainda mais.


Quanto a inclusão e a diversidade, para mim, são palavras de ordem. Como feminista e mulher do meu tempo, inaceitável a estigmatização entre seres humanos e seu confinamento em lugares pré-estabelecidos por força de critérios identitários. Buscarei ao longo do meu mandato, conjugar as dimensões da cidadania às reivindicações fidedignas e combater arquétipos opressivos. Para isso, instituirei uma Assessoria de Gênero, Raça e Minorias com o fim de gestar opções alternativas, contrárias e críticas, na linha do que recomenda o CNJ.


Por fim, zelar pela legitimidade da República é dever cívico de todos nós, cidadãos, mais ainda, daqueles que vestem a toga e dizem o direito. Estou convicta que a democracia e a Constituição são projetos inacabados e intergeracionais. Por isso os atores civis e políticos têm por obrigação preservá-las e cultivá-las, pois quando a democracia se despede não costuma dizer adeus!

A Sra. é mestre e doutora em direito constitucional respectivamente, pela Universidade Católica Portuguesa e pela UFMG. Há quem defenda que a constituição deveria ser alterada para acabar com a justiça especializada militar e agregá-la, por exemplo, à justiça federal. Como a Sra., como constitucionalista, enxerga tais debates?


A Magna Corte Castrense foi instituída em 1º de abril de 1808, por alvará com força de lei, assinado pelo príncipe-regente Dom João, com a denominação de Conselho Supremo Militar e de Justiça e constitucionalizada na Carta de 1946, uma Carta legítima, fruto de uma Constituinte soberanamente eleita. É a Justiça mais antiga do Brasil.


Contudo, apesar dela ter completado mais de dois séculos de existência, profundo é o desconhecimento por parte da sociedade brasileira e dos próprios operadores do direito, sobre sua competência e atuação.
É comum atribuir-lhe a pecha de tribunal de exceção em razão da ditadura militar instaurada no Brasil em 1964. Nada mais equivocado. Atesta a historiografia pátria sua imparcialidade e isenção em decisões memoráveis, tal qual a prolatada pelo então Supremo Tribunal Militar, quando reformou sentença condenatória proferida contra João Mangabeira pelo Tribunal de Segurança Nacional do Estado Novo, concedendo-lhe a ordem de habeas corpus – HC nº. 8.417, de 21 de junho de 1937 - ou ainda, quando deferiu medida liminar em sede deste mesmo writconstitucional; primeira corte a fazê-lo, servindo tal decisão de precedente para o Supremo Tribunal Federal - HC nº 41.296, de 14 de novembro de 1964.


Outros exemplos poderiam ser mencionados para ilustrar a trajetória dignificante da Justiça Militar da União. Eu rememoro o caso da incomunicabilidade dos presos, proibidos de manterem contato com seus advogados sob a égide da Lei de Segurança Nacional e que teve na histórica decisão da Representação nº 985, correta e precursora solução ao observar os princípios do direito de defesa. Do mesmo modo, decidiu o STM na década de 1970 que a greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse objetivos de melhoria salarial não se traduzia, segundo o R.C nº 5385-6, em crime contra a segurança nacional. Ainda, o R.C nº 38.628 no qual assentou a Corte Militar Federal que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora expressa em linguagem censurável, não configurava crime contra a segurança do Estado, resguardando dessa forma, a liberdade de imprensa e de expressão. Quando a lei de anistia – a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, o parágrafo 2º, do art. 1º, excetuava os agentes que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, ou seja, praticamente todos os presos políticos, foi o Superior Tribunal Militar que, em interpretação extensiva da norma, ampliou a concessão do perdão aos réus condenados. As decisões aqui referidas, dentre outras que poderiam ser elencadas, conferiram incensuráveis desates e exata dimensão jurídica sobre temas que constantemente se prestavam a interpretações dúbias. Sem dúvida, está-se diante de jurisprudência dignificante que, ao sobrepor-se às pressões políticas deixou significativo legado às gerações futuras e ao democratismo judicial e, lamentavelmente, poucos conhecem a sua trajetória. E ainda digo que a primeira vez que os defensores públicos federais atuaram no Judiciário Pátrio, o fizeram no foro do Superior Tribunal Militar. E para que não restem dúvidas, eu convido os que nos leem a visitarem a página virtual da revista Veja, de abril de 1977, na qual está estampada como matéria de capa a foto de todos os ministros do STM, à época integrantes, intitulada: “A Justiça Militar e os Direitos Humanos: a lei respeitada”. E atentem os leitores ter a revista sido editada durante o famigerado Pacote de Abril, que foi um conjunto de leis outorgadas pelo presidente Ernesto Geisel, duríssimas, em 13 de abril de 1977, que dentre outras medidas fechou, temporariamente, o Congresso Nacional. E foi por esta razão e não outra que os grandes e corajosos advogados que lá atuaram em defesa dos presos políticos, dos torturados, sempre teceram considerações elogiosas à Corte Militar Federal. Advogados que subiram na tribuna criminal e defenderam a liberdade dos cidadãos brasileiros nos períodos mais árduos e obscuros da ditadura, como Heleno Cláudio Fragoso, Técio Lins e Silva, Sobral Pinto dentre outros.


Ademais, a jurisdição penal militar é vital para assegurar a autoridade militar na vigilância e na subordinação às ordens no interior da corporação castrense. Está-se diante de valores que demandam uma legislação própria e uma jurisdiçãoespecializada, tal qual a trabalhista e a eleitoral, cujo escopo é dar efetividade às determinações constitucionais e garantir a boa administração da justiça.


Eu ressalto que as Forças Armadas são essenciais à execução da política de defesa nacional e destinam-se a proteger a pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem, sob a autoridade suprema do presidente da República, dentro dos limites legais. Tal como legislado pelo Poder Constituinte Originário, elas não configuram um organismo alheio à sociedade política; ao revés, fazem parte dela e foram criadas em razão dela. Certo é que, a especificidade da legislação das Armas, as peculiaridades da carreira e todas as implicações que a mínima interferência impertinente pode acarretar à estrutura basilar do Exército, Força Aérea e Naval, em um país de dimensão continental como o Brasil, alvo de ameaças e atuações criminosas as mais diversas, por si só justificaria a existência da Justiça Especializada. Mas há mais. Imperioso considerar as regras de comportamento que envolvem os integrantes da caserna, bem como as características sui generis da carreira. Inolvidável serem os militares agentes administrativos distintos daqueloutros que não se encontram sob os auspícios dos regulamentos marciais, não podendo, seus deslizes, serem apreciados sob idêntico olhar do Estado-Juiz. Ao contrário das demais profissões, nenhuma outra tem por imposição constitucional o patriotismo e a fidelidade à pátria, a demandar, em situações extremas, o sacrifício da própria vida do soldado ou de outro ser humano. Neste contexto, a atuação e a vivência bicentenária da Justiça Militar da União, cujo processo institucional amalgama a História do Brasil, projeta a afirmação do Estado como ethos e o permanente comprometimento com o democratismo estatal.


Quando uma comissão foi criada para avaliar a relevância da Justiça Militar, a Sra., então vice-presidente do STM, se manifestou no sentido de que a “importância da Justiça Militar não se apura em números”. A Sra. pode explicar esse raciocínio para o leitor.


Quando o então ministro presidente do STF Joaquim Barbosa instituiu uma Comissão no Conselho Nacional de Justiça para discutir as Justiças Militares no Brasil, fui incumbida de defendê-las junto àquele órgão de controle. Na oportunidade, salientei que a importância do Poder Judiciário não se afere em quantitativos processuais, mas sim na sua relevância para o bom funcionamento do Estado de Direito.


Em se tratando, particularmente, da Justiça Castrense Federal, nossos jurisdicionados são civis e militares, estes últimos em maior número. Ora, não se pode esperar que a delinquência na caserna se equipare ou supere à civil, do contrário não estaríamos a julgar militares e Forças Armadas, e sim, as FARCs, comandos criminosos ou terroristas. Os militares, por força da própria profissão que elegeram, são submetidos à filtros prévios como regulamentos disciplinares e sanções administrativas, antes de se submeterem à ultima ratio, que é a legislação penal. Eles se subordinam às chamadas relações especiais de sujeição, por meio das quais seus direitos civis e políticos são coarctados para o bem da hierarquia e disciplina. E a razão é serem eles investidos do monopólio da força legítima do Estado, de portarem legalmente as armas da Nação. Se a tropa se subleva, é a sociedade civil, desarmada e vulnerável, quem sofre as consequências. Daí a importância da Justiça Castrense, a jurisdição responsável por julgar e apenar aqueles que violam a rigidez da cadeia de comando, com celeridade e presteza.


Por ser uma justiça especializada militar, existe um certo desconhecimento da população sobre suas atividades e um sentimento de que a Justiça Militar possa ser branda com os militares. Isto é uma verdade?


Absolutamente! É uma justiça que julga com equidade e proporcionalidade os réus, na medida de seus atos e responsabilidades penais.


A Justiça Militar continua competente para julgar também civis em tempos de paz, como elogiou um dos maiores defensores de presos políticos e da liberdade no Brasil, o ilustre criminalista Técio Lins e Silva, quando da instalação do Superior Tribunal Militar, em Brasília, em 1973? Em que situações isso tem ocorrido?


Basicamente o civil poderá cometer delitos castrenses quando se tratar dos crimes impropriamente militares e/ou nas hipóteses previstas na Lei nº 13.491/2017. Explico: a excepcionalidade da sujeição do civil à Justiça Federal Castrense, e só ela, já que a Estadual não o julga, causa polêmicas e discussões nas Academias, na sociedade civil, na Suprema Corte Brasileira e nos tribunais internacionais, mas ela observa os estritos termos previstos pela Lex Magna com a qual o legislador ordinário guarda conformidade. Sem embargo, a permissão legal não autoriza que o civil ingresse na classe de sujeito ativo dos crimes próprios da profissão militar ou na condição de militar do sujeito ativo. Isso porque nos crimes propriamente militares, a lei protege a disciplina, a hierarquia e o dever militar que somente podem ser vulnerados pelo soldado, jamais pelo cidadão civil. Aclarando melhor, os delitos castrenses impróprios são os definidos de forma semelhante pela Legislação Penal Ordinária e pelo Código Militar, certo ser possível a sua incidência se houver a observância do art. 9ª incisos, II e III do CPM.


Para além, a Lei nº 13.491/17 inovou o ordenamento jurídico pátrio e alterou as hipóteses de incidência do artigo 9º do Código Penal Militar, ampliando o rol delitivo e criando os chamados crimes militares por extensão. Com esta ampliação pela novel norma, restou estabelecido que, além dos tipos definidos no CPM, serão agora considerados crimes militares os previstos na legislação penal comum e leis criminaisesparsas se atenderem as condições do art. 9º, do CPM. À evidência o conceito de delito castrense não é tarefa simples e diversos critérios o norteiam: o critério do autor e vítima; o critério da natureza do crime; o critério do motivo do crime; o critério legal; o critério conjugado da autoria e da natureza da infração; o critério fundado no local do evento ou o critério de estar de serviço. Mas, resumida e superficialmente, para o civil cometer um delitomilitar mister que o tipo penal previsto no CPM, e agora também na legislação penal comum por força da Lei 13.491/17, se subsuma a uma das hipóteses contidas no artigo 9º, inciso II, do Código Penal Militar, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

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