Restaurante de BH se transforma em lugar de estudo da cultura alimentar
Dona e chef do Cozinha Santo Antônio, Juliana Duarte é uma grande pesquisadora da obra de Eduardo Frieiro, autor do livro 'Feijão, angu e couve'
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O encontro da gastronomia com a história pode ser muito saboroso. É o que prova a fundadora do restaurante Cozinha Santo Antônio, no bairro de mesmo nome, Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Antes de virar chef, Juliana Duarte trabalhava como historiadora e, naturalmente, entendeu que o seu lugar na cozinha era como contadora de histórias. Como uma grande pesquisadora da obra de Eduardo Frieiro, autor do livro “Feijão, angu e couve”, ela aproxima ainda mais as duas áreas de interesse.
Em entrevista ao podcast Degusta, Ju revela que sua vida é movida a paixões. Primeiro, ela se apaixonou pela história, na época do colégio, totalmente influenciada pelos bons professores que teve pelo caminho. “A história me ajudou muito a entender o mundo”, destaca a historiadora, que se dedicou à profissão por pouco mais de 10 anos. Depois, veio o encantamento pela internet, que a levou a trabalhar por 19 anos em uma agência de comunicação. Mas a gastronomia nunca saiu do seu coração.
Fora as lembranças da avó e da mãe na cozinha, a chef conta que seu pai era um “guloso” e “muito novidadeiro”. “Na época em que eu era adolescente, a minha casa era um lugar onde sempre reunia amigos. Cozinhava, explorava receitas, gostava de novidades. Então, ia pesquisar.”
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Ao longo do tempo, foi crescendo o desejo de ter um lugarzinho para cozinhar e essa antiga paixão falou mais alto. O que ela fez? Formou-se em gastronomia. “Acho que isso foi muito importante para mim, ter me preparado para me tornar uma cozinheira profissionalmente, abraçar essa profissão, e para entender do negócio. E também, como já estava numa idade mais avançada, não teria nem tempo e nem muita paciência para percorrer um longo caminho.”
No fim das contas, Ju juntou duas grandes paixões e, sem planejar, passou a contar histórias através dos pratos. “O que foi intencional foi retomar a minha relação com a história. Durante o curso de gastronomia, tive esse entendimento de que cozinhar em Minas Gerais para mim pressupõe conhecer a história da nossa alimentação. Porque somos um estado onde a comida faz parte da nossa identidade. A gente se reconhece pela nossa comida e somos reconhecidos pela nossa comida. Isso é muito forte.”
Será coincidência?
Pensando em como poderia estudar a nossa cozinha, ela se lembrou do livro “Feijão, angu e couve”. E o destino tratou de dar um empurrãozinho. Ju foi com um amigo a um lançamento de um livro de um historiador. Lá, reencontrou um professor de faculdade, Caio Boschi, e comentou sobre a sua ideia. “Aí ele abre a mala dele e tira um documento: era uma carta do Frieiro doando a biblioteca dele para a Academia Mineira de Letras. Você acredita nisso? Eles estavam começando a organizar o acervo.”
A chef e historiadora se empolga ao contar que achou um “tesouro”, ao se referir aos documentos do intelectual que estudou a fundo a gastronomia mineira. Na sua dissertação de mestrado, quase finalizada, ela refaz toda a trajetória de Frieiro, da pesquisa até o lançamento do livro, por meio de cartas.
Nesse processo, surgiu o prato “Ensaio para Frieiro” – claro, com os ingredientes citados no título do livro. Tem telha de feijão, angu de milho crioulo e couve crocante. Ju usou da licença poética e da criatividade de cozinheira para acrescentar sobrecoxa de frango, quiabo tostado e pipoca.
Outras histórias
Já o “Minha vida de menina” é o nome de um livro marcante para ela, o diário de Helena Morley, que viveu no século 19 em Diamantina. “Esse livro me conectou com a vida no interior de Minas, a vida na fazenda. Porque não tinha avó no interior. Minhas avós, na verdade, mal cozinhavam.” A menina relata que, nos dias de “sacrifício”, na Semana Santa, ela tinha que comer bacalhau, angu, abóbora, feijão e couve. A inesperada combinação é reproduzida pela chef.
    
Com o “Maria da Cruz”, ela conta a história de uma mulher que liderou um motim no sertão no século 18 e ainda traz sabores do Norte de Minas, contrariando a ideia de que mineiro só come porco e galinha. “Questionamos a visão eurocêntrica, mas crescemos com essa mesma visão, olhando muito para dentro, para o centro do estado, e esquecendo outras regiões que fazem parte da nossa cultura alimentar.” A receita leva carne de boi, milho, mandioca, requeijão moreno e um “brochinho” de pequi.
Lugar de pesquisa
Recentemente, o andar de cima do restaurante, onde Ju já havia montado uma biblioteca, virou a sede do Tutu, grupo de estudos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre a história da alimentação, coordenado pelo professor José Newton Coelho Meneses, que é o seu orientador no mestrado. Os encontros quinzenais se propõem a discutir diferentes temas em torno da alimentação.
“Isso me mantém muito viva, alimenta a minha curiosidade. Acho que a curiosidade é algo fundamental para quem cozinha, é o que move a gente. Você não para nunca de pesquisar sabores e ingredientes. Sinto sempre que estou mexendo nos pratos, mesmo que seja o mesmo prato.”
Sabor de boas-vindas
Para o momento de degustação do podcast, a chef escolheu três entradas que são um cartão de boas-vindas do Cozinha Santo Antônio: o jiló empanado da Manu, uma antiga cozinheira do restaurante, servido com purê de limão capeta; as empadinhas de queijo da vovó Marocas, receita da avó paterna que ela aprendeu a fazer com a mãe; e o patê de campagne, uma mistura de porco (barriga, pernil, toucinho, lombo defumado e bacon enrolado, que ajuda na conservação) e fígado de pato. A iguaria chega à mesa com geleia de frutas vermelhas da casa e conserva de cebola roxa. 
Serviço
O programa é quinzenal e vai ao ar sempre às segundas. Acesse o canal do Portal UAI no YouTube ou o Spotify para assistir ao episódio completo.