GASTRONOMIA

Leite cru, coalho, pingo e sal: conheça a Rota do Queijo na Região do Serro

As opções e, mais ainda, as harmonizações para tornar o Minas Artesanal sempre bem-vindo ao paladar

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 Onde a Mata Atlântica e o cerrado se encontram, deixando aflorar cores, texturas, aromas, o Espinhaço, cordilheira que atravessa Minas Gerais e vai até a Bahia, é o fio condutor de histórias, produção agrícola, criatividade na cozinha e trabalho...muito trabalho. No cenário iniciado com o nascer do Sol e concluído – ou não – com as primeiras estrelas no céu, o casal Rafael Batista de Carvalho e Estela Mares Simões de Carvalho leva adiante as atividades da Queijaria Dona Iaiá (@queijodonaiaia), na Fazenda São Jorge, localizada a 18 quilômetros do Centro de Conceição do Mato Dentro (MG).


Para entender melhor essa história, é bom começar pelo nome do empreendimento. Dona Iaiá, de 84 anos, mãe de Estela Mares, é o símbolo da tradição familiar no setor queijeiro. A família está no ramo há mais de um século, e Estela representa a terceira geração. “Desde 2017, produzimos o Queijo Minas Artesanal Casca Florida Natural, que representa 95% de nossas vendas e veio agregar valor”, conta a produtora, que retornou à localidade – ou “roça”, como gosta de chamar – para dar continuidade ao negócio.

Queijo “casca florida” ou “mofado”, vale explicar, é do tipo coberto por uma camada branca que parece neve. Umidade e temperatura adequadas favorecem, nesse território (ou ‘terroir’, como dizem os franceses), o aparecimento de um fungo “Geotrichum candidum”, responsável por dar mais sabor e textura ao produto. “É um queijo gourmet”, conta Estela Mares, que está feliz da vida: o queijo Dona Iaiá, já premiado na França, acaba de ser o grande vencedor na primeira edição do Prêmio Sudeste de Queijos Artesanais realizado em Cunha (SP).

Da varanda da propriedade, preparada para receber os visitantes, se vê ao longe o Espinhaço. Há beleza por todo lado, e também labuta diária. “Enfrentamos muitos desafios nos últimos oito anos mas, hoje, temos bons resultados nessa combinação de queijo e turismo”, afirma. O mais importante para tudo dar certo vem das boas práticas agropecuárias e de produção, do manejo, do cuidado sanitário, da higiene.

“A ordenha é toda mecanizada, não há contato de nossa mão com o leite”, conta Estela Mares, ao mostrar os equipamentos e o cano que leva o leite cru do curral até a sala onde se produz o legítimo Queijo Minas Artesanal. Dessa forma, os visitantes podem ver o produto apenas através de uma vidraça. E uma curiosidade: para se fazer um queijo de 850 gramas, são necessários oito litros de leite cru. A produção na fazenda é de 18 queijos (do maior) por dia. Já para se fazer o merendeiro (de 350g), são necessários 3,5 litros de leite cru.

“Vendemos aqui, na fazenda, aos visitantes, e enviamos para empórios no Serro e estabelecimentos comerciais em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Poços de Caldas, no Sul de Minas”, conta Estela Mares, olhando agora, pela vidraça, a sala de maturação climatizada. No final da tarde, vem o melhor: uma mesa com os queijos da casa acompanhados de geleia e mel, e várias quitandas com o gostinho de “quero mais”.

ATRIBUTOS SENSORIAIS

O modo de fazer o Queijo Minas Artesanal já tem cerca de 300 anos, o que se confunde com a própria história de Minas. Para entender o processo de produção, é preciso saber que leite cru é ou não pasteurizado, daí a importância da adoção de boas práticas. O “pingo”, por sua vez, é o fermento natural obtido do soro do leite que sobra após a produção do queijo.

A analista de negócios do Sebrae Minas, Kele Vespermann explica que o queijo do Serro tem “atributos sensoriais” únicos, conferidos pelo modo de fazer tradicional, com maturação do produto por no mínimo 17 dias, associado às características particulares do território. Por isso, em 2008, o Queijo do Serro foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sendo o primeiro bem cultural registrado como Patrimônio Imaterial do Brasil. Seis anos antes, as técnicas para fazer o queijo foram reconhecidas como Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais.

Eduardo e Alice Pires, proprietários da Fazenda Ventura, dedicam tempo integral e muito amor à produção de queijo
Eduardo e Alice Pires, proprietários da Fazenda Ventura, dedicam tempo integral e muito amor à produção de queijo Gustavo Werneck/EM/D.A Press

A viagem segue agora rumo ao Serro, cidade com 22 mil habitantes que tem no queijo o esteio da economia, com cerca de 70% da população vivendo direta ou indiretamente da atividade. Entre os produtores, está o casal Eduardo Pires e Alice Maria Moisés Pires, unido há 44 anos e proprietário da Fazenda Ventura, distante 22 quilômetros do Centro da cidade. Em clima de paixão conjugal e total atenção ao empreendimento, os dois dedicam tempo integral à atividade, e, pelos bons resultados conquistados, receberam prêmios no Brasil e na França.

A Fazenda Ventura (@queijofazendaventura), hoje com 100 hectares, foi adquirida na década de 1940 pelo pai de Eduardo, José Pires, já falecido. Mas as técnicas para fazer o queijo são velhas conhecidas da família: começaram com o avô e, pelo cuidado, terão vida longa. “Imagina! Eu nasci em Cachoeira do Itapemirim, no Espírito Santo. Sempre gostei de praia, mas me adaptei bem aqui”, conta a bem-humorada Alice.

A qualidade do queijo tem seus segredos, e, em resumo, resulta de técnica e do prazer em oferecer um bom produto ao consumidor. “Sou ‘enjoado’ mesmo quanto à questão de higiene, seguimos todas as recomendações das autoridades”, afirma Eduardo. Com a larga experiência no setor, o casal aprendeu muito sobre o ‘comportamento’ do queijo. “Ele não gosta de ‘zoeira’, de barulho. Também não gosta de odores”, avisa o fazendeiro.

No giro pela propriedade, o casal, que tem duas filhas residentes em Belo Horizonte – uma veterinária, outra nutricionista – mostra, com orgulho, as salas de produção, maturação e expedição. Os queijos produzidos (de 10 a 15 por dia) são comercializados na própria fazenda e em outros estados, incluindo Pernambuco. No mais, é muito empenho. “Quem trabalha com fazenda sabe que não tem dia nem noite. O gado, a lavoura, enfim, tudo aqui não sabe se é sábado, domingo ou feriado. Então, serviço é o que não falta”, diz Eduardo com total aprovação de Alice. Ao final do passeio, eles oferecem “um banquete” ao ar livre, com produtos caseiros e o essencial: a genuína hospitalidade mineira.

PALADAR

As opções de queijo são muitas na Região do Serro, e mais ainda as harmonizações para tornar o Minas Artesanal sempre bem-vindo ao paladar. É o que mostra Rômulo Sabarense da Costa, empresário do setor queijeiro, dono do empório Serro do Queijo (@serrodoqueijo), no Centro da cidade. Com sua experiência de “queijista”, profissional especialista em queijos (divulgação, comercialização e consultoria), ele informa que a nova rota deu visibilidade aos produtores e trouxe ânimo a partir da valorização do produto. Para alegria dos visitantes, Rômulo faz a elegante combinação de queijos com vinhos, frutas, castanhas e deixa a pessoa à vontade para usar a criatividade à mesa.

Já aos pés da escadaria que leva à Igreja Santa Rita, cartão-postal da cidade, estão o Café da Praça (@cafedapracadoserro) e empório, que têm à frente a turismóloga Grizielle Campos. Nascida em família de produtores de queijo, ela sabe como usá-lo bem na harmonização com doces, geleias, sorvete de queijo e vinho.

Eis o relato de Grizielle: “Há cinco anos, meu marido, Humberto Figueiredo, e eu decidimos investir nessa área, e acompanhamos a evolução no fluxo de turistas. Desde a criação da Rota, não ficamos um fim de semana sem atender clientes de fora, inclusive, estrangeiros. Isso nos motiva a inovar. Já estamos com projeto para desenvolver uma versão do cardápio em inglês”. A empreendedora conta que o apoio do Sebrae Minas ajudou a estruturar processos e dar maior visibilidade ao negócio. “A reorganização foi essencial para fortalecer a marca da região e aproximá-la ainda mais da comunidade”, observa.

Lançada em novembro de 2024, fruto de trabalho conjunto entre Sebrae Minas e Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult-MG), a Rota foi idealizada para transformar as queijarias, empórios e experiências com chefs de cozinha – a exemplo de Elza Maria Nunes, conhecida por Elzinha, filha da renomada Dona Lucinha, uma das principais representantes da culinária mineira –, que oferecem vivências gastronômicas em pontos de visitação preparados para receber turistas.

Sobre a mesa da sala do casarão dos tempos coloniais, pertencente à família, o farto café imperial aguça todos os sentidos. A exemplo da mãe, Elzinha traz no sorriso a simpatia de Dona Lucinha; na memória, a história da região; nas palavras, todo o conhecimento de culinária; e, no coração, o amor pelo Serro e suas tradições.

Formada em gastronomia e residente em São Paulo (SP) durante quatro décadas, Elzinha retornou à cidade natal para enriquecer ainda mais a cultural local com receitas que poderiam se perder no tempo, não fosse o zelo para resgatá-las. São servidos aos visitantes: fubá suado, cuscuz de rapadura e queijo, palito (um antepassado do biscoito “champagne”), canudinhos com fios de ovos, bombocado com queijo curado, o curioso chá de cabeça cansada, feito com frutas e ainda uma variedade de sucos naturais.

Ao centro da mesa, se vê uma galinha “esculpida” em doce de leite numa fôrma de metal. “Temos também uma no formato de peixe”, conta Elzinha, fã do guisadinho mineiro, “bem molhadinho”, feito com carne de lata. Reservas podem ser feitas no Instagram @chefelzinhanunes ou pelo Whatsapp (011) 99644-3223.

O dia termina no Quintal de Vó (@quintaldevo.serro), restaurante de Simone Cardoso, que tem no bolo de rala um dos seus atrativos. E o que é rala? São as aparas do queijo recolhidas logo após ele sair da fôrma (para ficar bem redondo e certinho), antes de ir para a maturação. A rala é usada no pão de queijo, broas, cuscuz e outras delícias. No restaurante, a funcionária Tatiele Brandão prepara o saboroso bolinho, que servido com calda de goiabada e cachaça, ganha o sugestivo nome de Dona Julieta e Seu Romeu.

CAPACITAÇÃO

Além de capacitar os empreendedores por meio de ações que compreendem desde oficinas sobre gestão do negócio e programa para melhoramento genético do rebanho, até cursos sobre harmonização de queijos, consultorias de marketing e outros aspectos, o Sebrae Minas também atua para que o novo produto turístico seja oferecido de forma mais estruturada, promovendo toda a região.

Qualidade e valor agregado do Queijo Minas Artesanal são fundamentais para ampliar o acesso às certificações e premiações, e garantir competitividade no mercado nacional e internacional. Por isso, uma parceria entre a Cooperativa dos Produtores Rurais do Serro (CooperSerro), empresa Herculano e Universidade Federal dos Vales Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), com apoio do Sebrae Minas, irá viabilizar um laboratório para a análise do queijo da Região do Serro.

O presidente da CooperSerro, Francisco de Moura e Silva Neto, explica que a estrutura deverá ser entregue até o fim do ano: “Nosso intuito é oferecer a análise de água e do queijo, sem custo para o produtor. Isso permitirá maior rigor no controle de qualidade, criando um parâmetro e estabelecendo um preço justo, que motive o produtor a investir em boas práticas e melhorar o padrão do nosso queijo”. Hoje, a cooperativa conta com 49 produtores que produzem somente o queijo, e mais de 100 produtores fornecedores de leite. São cerca de 130 toneladas de queijo por mês, sendo 50t do produto em sua forma artesanal, e 80t da indústria.

Ao final da viagem, vem a constatação de que é na prática que tudo se materializa: projetos ganham sabor, planejamentos ocupam espaços, conceitos dão lugar à sabedoria popular. Pairando sobre esse cenário, a alma mineira se une à história para mostrar os sabores do território. E ganhar o mundo.


*O repórter viajou a convite do Sebrae Minas

A funcionária do Quintal de Vó Tatiele Brandão prepara o tradicional bolo de rala
A funcionária do Quintal de Vó Tatiele Brandão prepara o tradicional bolo de rala Gustavo Werneck/EM/D.A Press

“JEITINHO” MINEIRO

Conheça as particularidades do Queijo Minas Artesanal do Serro

• Tem o nome da “origem produtora” pela tradição de aproximadamente de 300 anos no modo como é feito. O “jeitinho mineiro” é preservado nas fazendas da região

• Cerca de 800 produtores e agricultores familiares integram a cadeia produtiva que transforma o queijo em grande potencial econômico

• Os municípios da Rota do Queijo da Região do Serro são os seguintes: Conceição do Mato Dentro, Dom Joaquim, Alvorada de Minas, Serro, Sabinópolis, Materlândia, Santo Antônio do Itambé, Paulistas, Serra Azul de Minas, Rio Vermelho e Coluna

• Em Conceição do Mato Dentro, Serro e Santo Antônio do Itambé, há propriedades rurais preparadas para receber visitantes interessados em conhecer o modo de fazer o queijo e curtir a degustação. O próximo município, em outubro, será Materlândia. Informações sobre visitação e roteiros turísticos podem ser obtidas no site do receptivo Minhas Gerais (minhasgerais.com.br)

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