De filho para mãe: como a maternidade transforma a vida dentro da cozinha
Um nascimento é capaz de construir restaurantes e modificar completamente a rotina e a vida de uma chef ou cozinheira que passa a ser, primeiramente, uma mãe
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Siga noMuitas mulheres consideram a maternidade um privilégio ou um sonho. O desejo de ser mãe, inclusive, é o que une grande parte do público feminino, apesar da diversidade de gostos e personalidades entre as mulheres.
A geração de uma vida, seja ou não algo planejado, é, sem dúvidas, um divisor de águas na vida de uma mulher. A maternidade, afinal, emerge novas preocupações que passam a figurar nos pensamentos dos pais, principalmente os de “primeira viagem”.
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Apesar da maior parte das mães serem amparadas com a licença maternidade, pouco se fala sobre o trabalho diário e sem fim que a maternidade requer após esse período. Filhos pequenos, mesmo que não sejam recém-nascidos, que demandam mamadas e cuidados diversas vezes ao dia, também exigem das mães muito tempo, paciência e dedicação.
Tudo isso, quando atrelado ao trabalho de uma mãe que atua dentro da cozinha de restaurantes, se torna um desafio ainda maior. Os horários de quem trabalha nesse setor são complexos, com turnos noturnos e aos fins de semana, por exemplo. Com essa realidade, mães chefs precisam equilibrar o tempo na cozinha com o tempo em casa com os filhos, onde, diga-se de passagem, também trabalham.
Dois filhos viraram quatro
Em casos como o de Ana Clara Valadares, chef mineira, dentre as portas que a maternidade abriu estão a de dois estabelecimentos comandados por ela. Junto com o marido, já tinha outros empreendimentos, mas foi com o nascimento dos filhos que Ana decidiu chefiar outras casas.
O primogênito, Antônio Bento Valadares, tem quatro anos de idade, quase o mesmo tempo que a mãe passou chefiando a cozinha do Birosca, em Belo Horizonte. Ela foi convidada para trabalhar lá ainda no puerpério, e, logo quatro meses após o parto já assumiu esse desafio. Lá, ela pôde contar com a parceria com a chef e amiga Bruna Martins para os momentos em que precisava dar atenção ao filho e delegar as funções da cozinha a algum colega. “Quando eu tive o Antônio, entendi que eu precisava trabalhar e cuidar de uma criança”, conta Ana Clara.
O nascimento do segundo filho, José Francisco, que hoje tem seis meses, fez com que Ana Clara batesse o martelo sobre chefiar um espaço que fosse realmente seu. “Eu vi que era capaz de ter algo meu, que não precisava mais estar por trás de alguém”. E foi assim que, com apenas 20 dias de nascimento de José, ela e seu marido decidiram montar a Charcutaria Central. Nesse espaço, além de ser sócia-proprietária, passou a atuar na cozinha, onde até hoje faz o pastrami (carne bovina curada e defumada), as manteigas, o guanciale (bochecha de porco curada), dentre outros produtos.
“A partir do momento em que meus filhos nasceram virou uma chave e passei a ser a Ana Clara ‘mãe’, porque a Ana Clara ‘pessoa’, antes deles, só trabalhava, e só trabalhava para os outros”, conta a chef, destacando mudanças significativas que a maternidade trouxe para a sua vida profissional.
E foi justamente a Ana Clara “mãe” que optou por criar mais um filho, o seu mais novo restaurante: Tom Cozinha de Herança. Essa foi a mais demorada de suas gestações, o projeto precisou ser amadurecido por três anos até que chegasse onde está no momento atual, com a obra quase finalizada. “Até o José nascer, eu ainda não tinha entendido que o Tom nasceria”, explica.
Embora já tivesse forte atuação na Charcutaria Central, o Tom será o empreendimento com mais cara – e alma – da Ana Clara, que destaca o “friozinho na barriga” antes desse “filho” de fato nascer. “Enquanto eu estou com essa ‘gestação’ do restaurante, enquanto ele está no ‘forninho’, não sei como ele vai ser visualmente”, comenta a chef.
No menu da nova casa, a chef busca justamente trazer a herança que carrega de seu lar e que faz parte da vida dos filhos. Sem pretensão de focar em alguma culinária típica específica, ela pensa em abraçar diversos sabores e origens, como faz em casa para as crianças.
Importância da rede de apoio
Ana Clara destaca que sem uma rede de apoio forte, que, além do marido, é composta pela mãe e pela sogra, sequer teria sido possível sonhar com o novo empreendimento. “A oportunidade de abrir um restaurante, de conseguir pensar nessa viabilização, se deu pela rede de apoio que eu tenho, que também me ajuda muito com os trabalhos na parte da noite e aos fins de semana”, comenta.]
A chef Ana Gabriela Costa, do restaurante Trintaeum, mais conhecida como Ana Gabi Costa, também ressalta o privilégio que teve ao ter uma rede de apoio e, acima de tudo, uma divisão de tarefas domésticas com o marido. Principalmente na primeira gravidez, que não foi planejada, a dificuldade de conciliar o trabalho com a maternidade foi muito amenizada por essa “sorte” que a chef teve, mas que tantas outras mulheres não têm. “Naquele momento eu não tinha condição profissional de ter mais flexibilidade, eu não tinha autonomia profissional, então tive que contar muito com a minha família”, explica.
O Tarcísio, primeiro filho de Ana Gabi, tem 12 anos e, apesar da dificuldade da mãe com os horários de trabalho na infância e nos primeiros anos de vida dele, nunca ficou sem ter algum dos pais por perto. “Me tranquilizava saber que se eu não conseguisse estar com ele, meu marido ia colocar ele para dormir, ele ia estar com o pai”.
Na segunda gestação, que deu vida a Raul, de seis anos, Ana Gabi já pôde ter uma experiência mais estável. “Eu e o pai decidimos que a gente precisava se adequar a mudanças para que a gente não precisasse levar da mesma forma. Então quando o Raul nasceu, decidimos que pelo menos naquele período inicial iríamos estar os dois bem presentes”, diz.
Quando a equação tem saldo positivo
Administrar a maternidade e a vida profissional dentro da cozinha não é tarefa fácil, e requer alguns sacrifícios. O que Ana Gabi conta é que encontrar o espaço correto para a maternidade e para a profissão foi algo essencial na sua trajetória como mãe. Hoje, além dos dois meninos, a chef tem a Carmen, de apenas um ano e dez meses. “Quando eu comecei a encontrar espaço para administrar melhor a maternidade e a profissão, foi o momento em que comecei a entender que o que mais me aproximava das crianças, que mantinha nossa relação viva e proporcionava conforto era, justamente, ao redor do alimento”.
Ainda que não consiga estar ao lado dos filhos em todos almoços ou jantares, a chef busca maneiras de acompanhar de perto a alimentação deles, algo tão importante para ela. “Eu faço muita questão de preparar o lanche da escola, aquilo é importante para mim como mãe”, explica.
Uma das grandes transformações que a maternidade trouxe para Ana Gabi foi enxergar crianças como pessoas que têm suas particularidades como qualquer outro ser. O Raul, por exemplo, seu filho do meio, é vegetariano desde pequeno. Por isso, a chef se dedicou a apresentar o mundo vegetal ao filho da melhor forma. Hoje, ele se envolve muito com os ingredientes e tem um paladar aguçado para temperos também.
Porto seguro
A maternidade, o fim de um empreendimento e um divórcio foram três coisas que tiveram de ser enfrentadas em um mesmo momento por Cristiane Rocha, proprietária ao lado de sua mãe, Edy Lamar Rocha, do Sinhá Erozitha Bistrôteco. Nesse período de angústia, o colo de sua mãe, a Edy, foi valioso. Tão valioso que, pouco tempo depois, as duas abriram juntas o bar, que já funciona há cerca de dez anos.
Quando abriram o estabelecimento, em 2015, tinham gastado quase todo o dinheiro que guardaram na construção de um galpão, após a gráfica da família ter fechado as portas. A ideia inicial das duas para o novo rumo a ser tomado era abrir um bar para servir as comidas de Edy, que eram um sucesso entre amigos e familiares no espaço desse galpão, em Itabirito.
Depois de pensarem sobre o deslocamento até o local, que poderia ser difícil para elas e muito clientes, o plano mudou completamente, e as duas decidiram abrir o bar no quintal de casa. Isso foi essencial para a criação do filho de Cris, João Fernando, que tem hoje 16 anos e naquela época ainda era bem pequeno. “Além de ter um trabalho, tive a oportunidade de não me separar do meu filho”, ressalta.
O Sinhá Erozitha surgiu nos primeiros anos de vida de João e, para cuidar do filho e do salão, Cris fazia um “malabarismo”, mas sempre contava com a ajuda da mãe. Quando tinham um intervalo nos atendimentos ou na cozinha, no caso de Edy, iam dar atenção ao João.
Depois de um tempo, quando cresceu um pouco, ele começou a frequentar o espaço do bar, mas sempre com o acompanhamento de perto de sua mãe, que se preocupava muito com influências de um ambiente aberto e com o consumo de bebidas alcoólicas.
Antes da mãe, existe uma mulher
Como a maternidade e o divórcio chegaram praticamente no mesmo momento na vida de Cris, que se separou quando João tinha apenas oito meses, ela precisou descobrir outras versões de si mesma. Tudo isso precisava ser atrelado ao cuidado com o filho, estudos de gestão gastronômica que passou a fazer e a necessidade de ganhar dinheiro.
“Eu estava perdida como mulher naquele período”, explica. Por isso, a maternidade para ela foi, além de um momento de descoberta do que é ser mãe, um tempo de entender quem ela era sem um homem por perto, já que namorou desde nova.
A chef, física e artista plástica Agnes Farkasvolgyi, conta que percebia algo parecido na época em que foi mãe, por volta do início dos anos 1990. “Naquela época, as mães do fim da década de 1980 e início da década de 1990 queriam cuidar dos filhos, mas também se afirmar como pessoas que queriam trabalhar, mostrar que era sim possível trabalhar e criar uma família”. Hoje, a chef enxerga um retorno à ideia das mães tirarem pausas da vida profissional para ficarem na maternidade, assim como outras gerações passadas faziam.
Em busca de concretizar sua imagem como uma mulher trabalhadora, logo após parar de dar aulas de física, Agnes administrou os cuidados com Camilla Farkasvolgyi, sua primeira filha, com a produção de geleias, picles e outros produtos artesanais que fazia para vender ao lado de Karen Piroli, que viria a ser sua sócia em outro empreendimento no futuro, o bufê Bouquet Garni.
Assim como Cris, Ana Gabi e Ana Clara, Agnes pôde contar com o apoio da família, principalmente da mãe, para conciliar seu trabalho com a criação de Camilla e João Pedro, filho três anos mais novo que a primogênita.
Troca de aprendizados
Desde 2016, Camilla trabalha com sua mãe na cozinha. A filha passou por áreas como turismo, história e moda até optar por fazer um curso de gastronomia. Essa formação variada é algo de família, afinal, a mãe tem três formações e se orgulha muito disso e de ter conseguido passar isso para os filhos.
Apesar de trabalharem juntas, Camilla e Agnes cozinham de formas bem diferentes. A filha busca adaptar os preparos da mãe para um modo de vida mais saudável, que é o que ela adota para si. Receitas com o mínimo de gordura e nada de açúcar são o que ela explora e desenvolve. “A Camilla tem traduzido a minha cozinha para os tempos de hoje”, comenta Agnes.
De fato, uma aprende com a outra, afinal, a diferença das gerações e das vivências até mesmo acadêmicas é algo muito precioso. E ambas as chefs buscam inspiração em outra mãe, a avó de Agnes. “A minha referência de cozinha sempre foi a avó materna, era uma cozinheira que agradava, que fazia carinho na família inteira com a cozinha”, diz Agnes.
Cozinhas que atravessam gerações
Há restaurantes e bares que mais se parecem casas. Às vezes, pela própria decoração aconchegante e pela disposição de itens que carregam histórias. Em outros casos, além disso, os espaços carregam sonhos, referências e inspirações familiares e, dessa forma, nos apresentam tradições por meio da comida.
É justamente isso que acontece na A Casa de Agnes, restaurante comandado pela chef Agnes Farkasvolgyi e sua filha Camilla Farkasvolgyi. O objetivo delas é fazer com que os clientes se sintam em casa. “Eu recebo as pessoas lá da forma como via minha avó fazendo na casa dela”, conta a chef. Sua avó, aliás, foi sua grande inspiração para mergulhar no mundo da culinária. Natural de Santa Bárbara, Judith dos Mares Guia sempre cozinhou para toda a família, que era encantada pelos preparos dela.
Do outro lado de sua árvore genealógica, nas raízes de sua família paterna de origem húngara, Agnes conheceu uma gastronomia completamente diferente da casa de sua avó. Na primeira viagem que fez para conhecer seus parentes europeus, ela teve acesso a um lado “glamuroso” da cozinha.
Hoje, com essas referências familiares, ela constrói o cardápio de seu restaurante com cara de casa. Para completar, sua filha Camilla e sua mãe Letete Farkasvolgyi trabalham ao seu lado, trazendo ainda mais aconchego para o local. Mesmo aos 84 anos, a mãe de Agnes optou por continuar trabalhando. Historiadora que trabalhou anos com moda, Letete hoje é responsável por montar as mesas da Casa da Agnes. Quando pode, também ajuda a finalizar os pratos na cozinha.
Realização de um sonho
Assim como Agnes, Cristiane e Edy Lamar Rocha, proprietárias do Sinhá Erozitha Bistrôteco, também servem uma comida que perpassa gerações. Edy sempre foi cozinheira de mão cheia, e conquistou muito amigos e familiares pelo estômago. Antes de abrir o bar, recebia pedidos para que tivesse um espaço para vender as delícias que cozinhava e esse já era, inclusive, um sonho dela.
O Sinhá Erozitha foi batizado com o nome de Edy, que foi quem a ensinou a cozinhar. “Desde menina eu sonhava em ter um bar ou restaurante, fui sonhando tanto com isso que se tornou uma realidade”, conta Edy. O que ela não imaginava é que teria a oportunidade de fazer isso ao lado da filha, que fica responsável pelo salão enquanto ela chefia a cozinha. “A gente é muito companheira, estamos sempre juntas”, ressalta a mãe.
Além do vínculo entre mãe e filha, hoje já contam com a ajuda de João Fernando, filho de Cris, no caixa do bar. Com apenas 16 anos, já está experimentando as vivências do setor gastronômico e em um lugar de muita responsabilidade. Desde pequeno, na realidade, ele conviveu com o bar, afinal, é situado no quintal de sua casa.
*Estagiária sob supervisão de Isabela Teixeira da Costa
Receita: Lasanha Pinga e Frita do Restaurante Trintaeum
Ingredientes:
- 480g de farinha de trigo
- 100g de fubá
- 12 gemas
- 2 ovos
- 750g de sobrecoxa de frango
- 150g de cebola (cortada em cubos)
- 30g de extrato de tomate
- 10g de alho (picado)
- 15g de sal
- 1 colher (sopa) de óleo
- Pimenta-do-reino a gosto
- Água (o quanto baste)
- 1l de leite
- 80g de manteiga
- 3g de noz-moscada
- Queijo prato (o quanto baste para a montagem)
Modo de preparo:
Para fazer a massa (que pode ser substituída pela massa de lasanha grano duro pronta):
Misture o fubá com 400g de farinha de trigo, abra um espaço no meio e adicione os ovos misturando inicialmente com a ajuda de um garfo. Comece a misturar a massa em movimentos de sovar, até que fique bem homogênea. Embrulhe com um plástico filme e deixe descansar por 30 minutos. Abra a massa com a ajuda de um cilindro, até ficar na espessura de massa de lasanha.
Para fazer o recheio de frango:
Tempere a sobrecoxa com sal e pimenta-do-reino. Deixe uma panela larga e de fundo grosso aquecer bem e disponha uma camada de sobrecoxa com uma colher de óleo. Quando a parte de baixo já estiver dourada, vire a sobrecoxa para dourar do outro lado também. Neste momento em que a panela estiver com um fundo dourado grudado, acrescente alho e cebola, deixe dourar, adicione então o extrato de tomate e regue um pouco de água para soltar este fundo, envolvendo na carne. Continue mexendo enquanto seca o líquido, assim mais fundo de carne será produzido e novamente regue mais líquido. Continue este processo até que o frango esteja completamente cozido. Desmanche a carne retirando os ossos e a cartilagem.
Para o molho bechamel:
Em uma panela, derreta a manteiga em fogo médio. Adicione 80g de farinha de trigo e mexa bem, cozinhando por cerca de 1 minuto até formar uma pasta dourada clara (que leva o nome de roux). Aos poucos, acrescente o leite, mexendo constantemente com um fuê para evitar grumos. Cozinhe por cerca de 5 a 10 minutos, até engrossar e obter uma textura cremosa. Tempere com sal, pimenta-do-reino e noz-moscada a gosto.
Para montar a lasanha:
Em uma travessa refratária, comece a montagem colocando um pouco de bechamel no fundo. Dê sequência dispondo uma camada de massa, em seguida outra camada de frango, depois uma camada de queijo e finalize com bechamel. Comece mais uma camada nesta mesma sequência, até que preencha o refratário.
Serviço
A Casa da Agnes (@acasadaagnes)
• Rua Paulo Afonso, 833, Santo Antônio
• (31) 3465-0101
• De segunda a sexta, das 11h às 15h Sábado, das 11h às 16h
Sinhá Erozitha Bistrôteco (@sinhaerozitha)
• Rua Santo Amaro, 257, Sagrada Família
• (31) 98218-6427
• De terça a sexta, das 19h à 00h
Sábado, das 14h à 00h
Trintaeum (@trintaeumrestaurante)
• Rua Professor Antonio Aleixo, 20, Lourdes
• (31) 971417308
• De terça a sexta, das 12h às 15h30 e das 19h às 23h
Sábado, das 12h às 16h e das 19h às 23h
Domingo, das 12h às 16h