Por que Tiradentes vira a cidade do churrasco em maio
Festival Caminhos de Fogo reúne chefs e turistas do Brasil todo em volta do fogo
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Siga noCarne, fogo, sal, música e diversão. Mistura que mais uma vez levou mais de duas mil pessoas para Tiradentes, no Campo das Vertentes, no último sábado (3/05). Em sua quarta edição, o festival Caminhos de Fogo reuniu 26 chefs de todo o Brasil, que passaram oito horas assando carnes variadas, frutos do mar, vegetais e até sobremesas.
"Acompanhei o desenvolvimento da gastronomia na brasa em São Paulo e fiquei encantado com essa diversidade. Então, veio a ideia de trazer isso para o público aqui da região de Tiradentes e para os turistas. O que fazemos é descentralizar a riqueza gastronômica que encontramos com facilidade em grandes centros e deslocar para uma cidade turística", destacou o idealizador, Guilherme Macedo.
Mostrar essa riqueza envolve, naturalmente, a escolha dos chefs. Por isso, o time era de vários lugares do Brasil. Guilherme acrescentou que a equipe acompanha o que os profissionais fazem ao longo do ano em busca de novidades. "Assim como trazemos a riqueza gastronômica que se encontra nos grandes centros, essa é uma maneira de levar Tiradentes para as pessoas que estão nos grandes centros."
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O trabalho dos chefs era um espetáculo à parte. Além de sentir, bem de perto, o calor da brasa, o público podia acompanhar o fogo assado os mais diversos ingredientes e levantando apetitosos aromas através da fumaça.
O gaúcho Marcos Livi hipnotizou quem esteve no festival com uma churrasqueira inspirada no giroscópio
O gaúcho Marcos Livi hipnotizou quem esteve no festival com uma churrasqueira altamente tecnológica, a Scheeroscopio, inspirada no giroscópio. O equipamento assava o costelão de boi em movimentos circulares. Na hora de servir, o chef fazia questão de exaltar a maciez da carne. “Peço desculpa a vocês que estão na fila se ela solta do osso”, brincava. Para acompanhar a costela, batata doce com rapadura e salsa criolla.
Pirarucu no moquém
A modernidade da invenção gaúcha dividia as atenções com a ancestralidade da cozinha amazônica, representada por Edvaldo Caribé, de Belém. Não tinha como não parar de frente para o varal de pirarucu, escolhido por ser o rei dos peixes amazônicos. “Digo que é o animal mais emblemático da Floresta Amazônica pela sua exuberância, beleza e força. É um peixe que consegue sobreviver naqueles rios cheios de piranhas, então remonta à força do povo nortista.”
A bandeira do Pará hasteada na estação evidenciava o orgulho do chef pela sua terra natal. Segundo ele, também era um convite para o brasileiro conhecer mais as riquezas do seu país.
Edvaldo Caribé, do Pará, mostrou no prato duas formas ancestrais de preparar a ventrecha (barriga) de pirarucu
O peixe era assado no moquém, “estrutura elevada de madeira onde você assa, defuma e desidrata o alimento com a queima da lenha. Os indígenas usavam isso para consumir a proteína por diversos meses”, acrescentou. Caribé é autor do livro “O barbecue brasileiro - do moquém ao pit smoker”, onde mostra que o “american barbecue” dos Estados Unidos foi influenciado pelo moquém da Amazônia.
No prato, havia duas formas ancestrais de preparar a ventrecha (barriga) do peixe. Uma, de salga e defumação, resultava no “pirarucu de sol”. A outra, chamada pokeka, apresenta a carne envolta em folha de taioba (lá se faz com folha de bananeira). Antes disso, ela foi marinada no tucupi negro com redução de cebola e pincelada com ervas amazônicas.
Os acompanhamentos também seguiam a tradição dos indígenas: caldo de tucupi, extraído da mandioca brava, e purê de batata-doce roxa (no lugar do amazônico cará roxo, difícil de encontrar em Minas Gerais) com alho confitado, ervas e manteiga.
Homenagem aos Pampas
Único representante de BH, Cristóvão Laruça, à frente dos restaurantes Caravela, Capitão Leitão e Mitra, atraiu o público com um prato que tinha como protagonista a fraldinha do Uruguai, onde ela é conhecida como “bife de vacío”. O corte era da raça britânica Hereford, 100% criada a pasto, ou seja, não passa por confinamento e não come ração.
“Arrisco dizer que essa é uma das carnes favoritas do brasileiro. É mais saborosa que a picanha e tem menos gordura. Ela tem um sabor incrível, além de ser muito macia”, comentou o chef português, que já pensa em usar a fraldinha uruguaia em seu novo restaurante, Pastus, que deve ser inaugurado ainda eeste mês no shopping BH Outlet.
A fraldinha foi preparada por Cristóvão Laruça em fogo de chão para reverenciar a tradição da região dos Pampas, que abrange Brasil, Argentina e Uruguai
A carne foi preparada em fogo de chão para reverenciar a tradição da região dos Pampas, que abrange Brasil, Argentina e Uruguai. Pelo mesmo motivo, Cristóvão explorou a erva mate como tempero. Além de peneirar a erva mate e misturar o pó com a flor de sal para salpicar por cima da fraldinha, usou a palha para fazer a defumação das batatas, outro acompanhamento. Completava o prato o molho romesco de chimichurri.
“A minha ideia é sempre trazer uma provocação. Então, peguei um molho clássico espanhol, que é o romesco, tirei o tomate e o pimentão, mantive a avelã, o pão, a cebola e o alho e entrei com as ervas frescas do chimichurri, tão característico da América do Sul. Também mostrei como pode ser além do chá. Esse é o meu trabalho enquanto cozinheiro, olhar para os ingredientes de outra perspectiva”, disse.
Especialista em cordeiro
Priscila Deus, do Cór Gastronomia, em São Paulo, espaço especializado em dry aged (técnica de maturação de carnes), reforçou sua fama no Caminhos de Fogo. Essa fama vem de 10 anos atrás, quando foi a única mulher a participar de um evento de churrasco em São Paulo, preparando um prato com cordeiro descrito pelo público como “dos deuses”, como conta. Desde então, a chef é referência quando se fala nessa carne.
A chef levou para Tiradentes uma receita inédita: t-bone de cordeiro na brasa ao massala e especiarias amazônicas com farofa com farinha de uarini, da Amazônia.
A Amazônia inspirou Priscila Deus a servir t-bone de cordeiro na brasa ao massala e especiarias amazônicas com farofa com farinha de uarini
“Como eu morei em Londres muito tempo, adorava aquela cena da comida de rua, os sabores que você tinha ali, muita comida indiana, tailandesa, então fiz uma fusão desses sabores usando as especiarias da Amazônia. Tem priprioca, cumaru, puxuri... Também fiz o meu leite de coco com jambu. Ficou uma explosão de sabores com um leve toque apimentado”, descreveu.
A inspiração veio de uma viagem à Amazônia, em 2022, para conhecer o manejo sustentável do pirarucu. “Ali eu senti que era brasileira, não sabia o que era o Brasil até chegar lá. Quero mostrar o quanto o nosso país é rico. Aonde eu puder levar nossos sabores e aromas vou levar”, disse Priscila, uma das cinco mulheres que participaram do festival como assadoras.
Mulheres ainda são minoria
Sobre o time feminino ainda ser minoria, ela comentou: “Sou muito orgulhosa de onde cheguei, quebrando paradigmas, mas pela minha força. Sinto em todos os contextos que ainda é muito presente essa imposição do homem com a mulher. Mas a gente tem que seguir aquilo que a gente acredita sempre.”
Paula Labaki serviu um prato clássico de steakhouse: t-bone bovino com molho de três mostardas e espinafre salteado
Presente desde a primeira edição, Paula Labaki sente que ainda existe machismo nesse mercado, mas não tem do que reclamar. "Acho muito legal ter reconhecimento, não só no Brasil, mas fora, em um mercado tão masculino”, apontou. A chef grelhou 160 quilos de carne durante as oito horas de evento, divididos em duas etapas, para que não acabasse cedo demais.
Seu prato era um clássico de steakhouse norte-americana: t-bone bovino com molho de três mostardas (amarela, Dijon, ancienne) e espinafre salteado com manteiga, alho, sal e pimenta-do-reino.
Pizza de pão de alho
Clássico do churrasco brasileiro, o pão de alho virou pizza no Caminhos de Fogo. A ideia foi de Silas Gomes, pizzaiolo há 19 anos e dono dos restaurantes Bertaglia e Figo, em Osasco e São Paulo, respectivamente. “O que um chef da cozinha italiana que faz pizza poderia servir que combinasse com churrasco? Aí pensei em fazer pizza de pão de alho”, explicou o baiano, que estreou nesta edição como chef (em todas as anteriores trabalhou como assistente).
Silas Gomes transformou em pizza um clássico do churrasco brasileiro: o pão de alho
A base era uma massa de pizza de longa fermentação assada em forno a lenha. Por cima, o creme de alho. “Fizemos 40 quilos de alho confitado com alecrim, tomilho, orégano e manteiga por umas oito horas em fogo baixinho”, descreveu. Para alcançar a cremosidade desejada, ele misturou o alho com creme de leite fresco e purê de batata. O pesto de rúcula entrou para dar frescor e colorir a pizza.
Aos curiosos que não estiveram em Tiradentes, Silas avisa que deve deixar a pizza de pão de alho no cardápio dos seus restaurantes por uma semana.
Sobremesas no fogo
Em um evento de churrasco, até mesmo as sobremesas passavam por fogo e brasa. O confeiteiro Lucas Corazza, de São Paulo, serviu o s'mores, doce de acampamento norte-americano com chocolate, biscoito e marshmallow, finalizado na fogueira. E o mais interessante é que a estação era interativa, então as pessoas queimavam o seu próprio marshmallow no fogo e montavam a sobremesa. Sempre com longas filas, atraiu muitas crianças – mas os adultos também se divertiram.
“O s'mores é meio que saudades do que não vivi. É algo que você vê em muitos filmes, mas que não temos o hábito no Brasil. Acho que a confeitaria tem sempre esse lado lúdico, então quis apresentar uma sobremesa de forma que as pessoas pudessem interagir com o fogo”, destacou.
S'mores: o doce de acampamento do confeiteiro Lucas Corazza, com chocolate, biscoito e marshmallow, era finalizado na fogueira
O espetinho de brigadeiro era envolvido por uma camada de marshmallow. A pessoa derretia o marshmallow nas pequenas fogueiras e o apertava entre dois biscoitos Maria, formando um sanduíche. Depois era só morder para sentir a crocância dos biscoitos em contraste com a maciez do recheio, assim como o defumado do marshmallow, que tinha um toque de limão, combinado com o doce do brigadeiro.
“É um desafio participar de um evento de churrasco. O defumado não é um sabor que associamos à confeitaria, mas fica muito bom”, pontuou o chef, que ficou famoso na TV como jurado do programa do GNT “Que seja doce”.
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A outra opção de sobremesa era uma criação do chef Rodrigo Martins, também de São Paulo: banana assada e flambada na cachaça com queijo coalho grelhado, folhas de manjericão e uma colherada bastante generosa de doce de leite.