ABERTA PARA TODOS

Não é só sonho: a cozinha pode ser um espaço de inclusão e oportunidades

Conheça histórias de quem encontrou na gastronomia uma forma de se inserir no mercado e que hoje enxerga novas possibilidades de viver

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A cozinha é um espaço criativo com infinitas possibilidades. Dela saem novos sabores, cores, temperos e texturas. E, se houvesse uma receita para formar bons cozinheiros, o ingrediente principal seria uma cozinha de portas abertas para todos. Um ambiente que conecte a produção de pratos saborosos com a criação de histórias. Seja através do primeiro emprego, do sonho de empreender ou da superação de barreiras, a gastronomia se torna para muitos uma poderosa ferramenta de inclusão social.

Foi justamente a releitura de um doce popular e o aprendizado na cozinha que transformaram a vida de Maria dos Anjos Pereira dos Santos, de 66 anos. Com enorme sorriso e a fala sempre serena, Madu, como gosta de ser chamada, é uma mulher negra que nasceu na comunidade quilombola de Buriti do Meio, no município de São Francisco, Região Norte de Minas Gerais.

Hoje Madu comanda sua própria marca, de nome Kitandu, que tem como carro-chefe uma releitura da famosa palha italiana, com amendoim e gengibre, além do biscoito. A palha africana é vendida junto de outras quitandas, como ambrosia, bolos, mingau de milho verde e cubu (biscoito de fubá enrolado em folha de bananeira), que ela conta produzir com muito carinho em casa.

O sucesso da palha africana impulsionou grandes transformações na vida de Maria dos Anjos Santos

O sucesso da palha africana impulsionou grandes transformações na vida de Maria dos Anjos Santos

Jair Amaral/EM/D.A Press
 

“Me lembro com muita clareza da minha mãe preparando os alimentos no quilombo, sempre com muito zelo, e carrego essa memória com carinho até hoje”, relembra a doceira, que muito cedo teve que deixar o colo da mãe em busca de oportunidades.

Aos 11 anos, Madu começou a trabalhar como doméstica. “De início, as patroas pediam que a gente ajudasse apenas a olhar as crianças. Mas logo surgia a necessidade de preparar o almoço. Comecei a aprender novos pratos e iguarias nesse processo”, conta.

Aos 14, Maria dos Anjos se mudou para Montes Claros e, ainda trabalhando como doméstica, aprendeu a preparar o doce que iria ser um grande pilar para seu futuro: a palha italiana. “A minha patroa da época me ensinou e eu fazia questão de prestar muita atenção. Sempre valorizei muito qualquer oportunidade de aprendizado”, relembra. A receita acompanha desde então Madu, que sempre recebia muitos elogios quando servia o doce para amigos e família.

Foi só aos 55 anos, após se aposentar do serviço público, em 2013, que o doce querido por ela iria se transformar em um recomeço. “Me assustei quando me aposentei. Entendi que iria ter que retornar ao mercado de trabalho para me manter. Foi aí que me lembrei da palha”.

Conhecimentos ancestrais

Incentivada pelos amigos, Madu passou a vender o doce nos eventos de dança afro em Belo Horizonte, outra grande paixão da doceira. E foi justamente o conhecimento da culinária de seus ancestrais que levou Madu a fazer uma releitura da receita. “Na minha palha africana, coloco gengibre e amendoim e, para finalizar, passo o doce em uma mistura de açúcar demerara e açúcar mascavo”, explica.

A palha africana leva gengibre e amendoim e, para finalizar, é passada em uma mistura de açúcar demerara e açúcar mascavo

A palha africana leva gengibre e amendoim e, para finalizar, é passada em uma mistura de açúcar demerara e açúcar mascavo

Jair Amaral/EM/D.A Press
 

Para ela, o sucesso nas vendas resgatou sua autoestima de mulher negra e impulsionou outra grande transformação. Aos 65 anos, ela resolveu terminar os estudos, que foram interrompidos na sétima série. E, embalada pela coragem de retornar às salas de aula, Madu chegou ao Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional Mercado da Lagoinha (Cresan), da Prefeitura de Belo Horizonte, onde realizou cursos gratuitos de tortas de doces, trufas, bolos no pote e confeitaria pascal.

Hoje, ela sonha em levar o Kitandu para as comunidades e dar aulas no Cresan, como forma de retribuir a oportunidade que um dia a salvou. “A falta de escolaridade por muitas vezes me excluiu das oportunidades e ter me reinventado, finalizado os estudos e vender os alimentos que eu mesma preparo é, além de um orgulho muito grande para mim, uma maneira de honrar a minha mãe”, conta.

Madu destaca que hoje é requisitada para grandes feiras e conseguiu colocar as prestações do apartamento em dia. “Faço com muito gosto. Quando alguém compra um doce, gosto de observar o brilho nos olhos. Essa magia da culinária me ajudou a superar muitas fases ruins.”

Sonho de confeiteira

Foi também através de uma política municipal que a gastronomia se tornou uma porta de recomeço para Grazy Lorena de Oliveira Reis, de 46 anos. Mulher trans, ex-moradora de rua e ex-usuária de drogas, Grazy encontrou nos cursos profissionalizantes do Cresan a chance de mudar de vida.

“A gastronomia era o que eu estava precisando, a confeitaria é o que eu amo e me salvou de muitos problemas”, revela. Depois de muito admirar bolos e doces em programas de televisão, Grazy hoje trabalha com o que ama e almeja conquistas ainda maiores para sua vida.

Mulher trans, ex-moradora de rua e ex-usuária de drogas, Grazy Reis encontrou nos cursos profissionalizantes de gastronomia a chance de mudar de vida

Mulher trans, ex-moradora de rua e ex-usuária de drogas, Grazy Reis encontrou nos cursos profissionalizantes de gastronomia a chance de mudar de vida

Leandro Couri/EM/D.A Press
 

Natural de Matozinhos, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, ela trabalha como confeiteira na rede de supermercados Verdemar. Grazy conta que enfrentou muitas barreiras no mercado de trabalho, principalmente por ser uma mulher trans, e mencionou com muito orgulho as conquistas no novo emprego, onde faz bolos, doces como cocada e maria mole, tortas, broas e éclair (bolo francês).

“Para mim tem sido muito bom. Lá eu tenho aprendido muita coisa e ainda tenho muito para aprender”.

Apaixonada pela culinária francesa, ela revela que hoje um de seus sonhos é visitar a França e, futuramente, abrir seu próprio negócio. “Já pensou eu lá na Le Cordon Bleu? (risos)”, conta a confeiteira, revelando o sonho de um dia estar na mais famosa escola de culinária de Paris e aprender a fazer biscuit.

A doçura dos alimentos que Grazy prepara é uma forma de suavizar as amarguras de um passado difícil. “Acredito que tudo que te tira das ruas e das drogas é um meio de inclusão social”, conta. Para ela, a autoestima resgatada através da confeitaria é fundamental para manter sua força em um futuro em que sabe que irá enfrentar barreiras simplesmente por ser quem é.

“É difícil você escutar piadinhas, sentir o tratamento diferente, mas eu já passei por coisa pior, então eu relevo”.

Atualmente, vivendo em um abrigo, ela conta que, com o novo emprego, já vem buscando um lugar só seu para morar. “Além do orgulho de ter uma profissão e poder falar que sou confeiteira, quero morar em um lugar tranquilo, só meu”.

Desafios a vencer

Um espaço tranquilo para trabalhar é uma necessidade para a doceira Clara Faria. Já no ensino médio, Clara vendia brigadeiros na escola, mas não imaginava que um dia o cardápio iria aumentar e ela teria um espaço só seu.

Hoje, aos 25 anos, é dona da “Faria Brigadeiros”, em Santa Luzia, Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde tenta balancear o amor pela culinária com os desafios de manter uma loja sendo uma pessoa neurodivergente – termo que abrange pessoas com autismo, dislexia, transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), síndrome de Tourette, discalculia, disgrafia etc.

A confeitaria abriu caminho para que Clara Faria, diagnosticada com autismo, abrisse o seu próprio negócio

A confeitaria abriu caminho para que Clara Faria, diagnosticada com autismo, abrisse o seu próprio negócio

Pedro Zorzall/Divulgação
 

A descoberta do Transtorno do Espectro Autista (TEA) veio aos 18 anos, durante uma disciplina optativa na faculdade. O diagnóstico, de início, gerou surpresa, mas ela logo entendeu que aquilo explicava algumas dificuldades. “Foi um alívio dar nome às coisas”, explica. “Gosto de estar na cozinha, coloco meu fone (para abafar ruídos) e às vezes até esqueço da hora. Mas ter que se relacionar com o cliente, na loja, já é um desafio para mim”.

Clara explica que costuma usar o colar de identificação para garantir a compreensão dos clientes e que também desenvolveu seu jeito de trabalhar. “O grude do brigadeiro na hora de enrolar às vezes me irrita, então faço quantas pausas precisar para lavar as mãos. E os pedidos de última hora? O cliente às vezes não entende que sou capaz de entregar, fisicamente falando, mas mentalmente é uma situação muito estressante”, explica.

Na época da Páscoa, quando a demanda triplica, a doceira sente que o TEA impacta no seu desempenho e relata ter vivido situações difíceis, em que teve de interromper o trabalho e esperar uma crise passar, embaixo da pia.

Apesar dos desafios, Faria conta que tudo isso fica por vezes pequeno perto de outras emoções. “Já prometi para a mãe de uma criança autista, cliente fiel, que irei comprar um pacote de granulados só da cor que ele gosta. A mãe pedia brigadeiros e tinha que tirar todos os detalhes brancos para ele comer. Acho bonito que posso oferecer acolhimento a essa mãe, já que sei o quanto esse detalhe é importante para a criança”, destaca.

Clara planeja encerrar as atividades da loja pela dificuldade em relações interpessoais e para se dedicar a outros sonhos. Mas destaca que a culinária sempre terá um espaço em seu coração e que jamais vai parar de cozinhar, em qualquer lugar do mundo.

Onde tudo começa

Para testemunhar as transformações que a gastronomia proporciona, a reportagem esteve, no dia 1º, na aula inaugural do projeto De Grão em Pão, da Fundação Bunge em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), que oferece cursos gratuitos de panificação e confeitaria para jovens de baixa renda, de 18 a 29 anos, moradores de Belo Horizonte e cidades vizinhas. As aulas serão realizadas até junho deste ano. Os alunos também recebem bolsa auxílio de R$ 325.

“A gente quer entregar jovens capacitados para o mercado de trabalho. É um curso que vem para permitir sonhos e planejamento de carreiras”, explica Claudete Pereira, coordenadora de projetos da Fundação Bunge.

Claudete conta que a ideia surgiu em 2022 e passou por São Paulo, Recife e Rio de Janeiro. Em 2025, a novidade chegou pela primeira vez a Brasília e Belo Horizonte. Para além das aulas, ao fim do curso, a Fundação promete que irá conectar os formandos a empregadores, facilitando a entrada dos jovens no mercado de trabalho.

O projeto De Grão em Pão oferece cursos gratuitos de panificação e confeitaria para alunos de 18 a 29 anos

O projeto De Grão em Pão oferece cursos gratuitos de panificação e confeitaria para alunos de 18 a 29 anos

Keiny Andrade/Divulgação
 

Davi Henrique Ferreira Coutinho, de 21 anos, conta que é sua primeira experiência na gastronomia e está muito feliz com a oportunidade. “Nem todo mundo pode pagar para estudar, né? Já vou sair com um emprego e dar continuidade aos estudos. Quero tentar uma graduação em gastronomia.”

Natália Pinheiro, professora da turma e ex-aluna de cursos gratuitos do Senai, observa atentamente os novos estudantes. Para ela, é gratificante retornar como instrutora a uma sala de aula. “É um projeto extremamente necessário, tem gente que não tem condições de estudar. Para mim foi muito importante, estou ansiosa para formar minha primeira turma”, conta Pinheiro.

“A gente não ter que pagar é ótimo, material de qualidade e estrutura de ponta para nós. Gosto muito da área e vou poder ajudar minha mãe”, relata, empolgada, a aluna Maria Eduarda da Cruz Costa Lima, de 18.

Já Glaucia Araujo, de 22, garante que quer seguir carreira na culinária e que o curso gratuito é uma grande oportunidade. “É uma área que brilha meus olhos, meu sonho, mas não sentia confiança no meu trabalho. Agora penso em tentar de novo ter meu próprio negócio”, explica.

Terminando o curso, Claudete ainda acompanha os jovens por seis meses: “É muito importante neste período pós curso a gente medir o impacto social do projeto”.

Estágio obrigatório

Também voltado para formação de jovens em situação de vulnerabilidade social em gastronomia, o curso gratuito Instituto de Hospitalidade e Artes Culinárias (Inhac), que tem como diretor o chef Leo Paixão, inclui práticas e técnicas de gastronomia internacional, passando pela história dos queijos e produtos de excelência de Minas.

“É lindo ver o crescimento deles, ver alunos que chegam introvertidos saírem felizes e confiantes para vivenciar a profissão”, comenta o professor do curso Felipe Reis Galastro.

“A minha mãe precisava trabalhar e eu precisava comer, aí eu ia me aventurar na cozinha”, conta a ex-aluna do curso Gabriela Ohana da Silva Almeida, de 30 anos, que declarou ter a gastronomia como sua maior paixão.

“Lá em casa ninguém tem formação, sou a primeira. Aqui nas aulas eu conheci ingredientes que nunca vi na vida. Gastronomia hoje, para mim, é uma arte”, explica.

Atualmente, Gabriela está realizando o estágio obrigatório para a conclusão do curso no Inhac, onde participa das atividades como auxiliar dos professores e ajudando nos eventos. “O estágio vai abrir portas para mim. Meu sonho é trabalhar em uma rede de hotel, onde vou ter contato com outras culturas.”

'Lá em casa ninguém tem formação, sou a primeira. Aqui nas aulas eu conheci ingredientes que nunca vi na vida. Gastronomia hoje, para mim, é uma arte', diz Gabriela Almeida, ex-aluna do Inhac

'Lá em casa ninguém tem formação, sou a primeira. Aqui nas aulas eu conheci ingredientes que nunca vi na vida. Gastronomia hoje, para mim, é uma arte', diz Gabriela Almeida, ex-aluna do Inhac

Marcos Vieira /EM/D.A Press
 

Para o professor, a cozinha é capaz de transformar a vida de alguém: “Tenho um jargão para receber os meninos que é: ‘a cozinha não aceita tudo, porque precisa de regras para funcionar, mas ela certamente aceita todos’”.

Projeto em expansão

Há dois anos participante do Circuito Gastronômico de Favelas – projeto que ocupa lugares em Belo Horizonte com feiras para que cozinheiros periféricos possam comercializar seus alimentos –, Alexandra Lúcia conta, com muita alegria, que a coragem de expor seus brigadeiros e doces é um seus grandes orgulhos, assim como a graduação em gastronomia, aos 54 anos, algo que sempre foi um sonho.

Aos 54 anos, Alexandra Lúcia está fazendo curso de gastronomia e já planeja sua visita à Le Cordon Bleu

Aos 54 anos, Alexandra Lúcia está fazendo curso de gastronomia e já planeja sua visita à Le Cordon Bleu

Arquivo pessoal
 

“Se pudesse, dormiria dentro da cozinha. Cresci em uma casa onde precisava cozinhar para meus irmãos, aprendi na marra. Hoje, na faculdade de gastronomia, junto minha experiência com a universidade e me sinto muito feliz. Já planejo minha visita à Le Cordon Bleu (risos)”, finaliza a cozinheira do Bairro Vila Nossa Senhora Aparecida, na Região Centro-Sul da capital.

Para Danusa Carvalho, criadora do Circuito Gastronômico Favelas, é enriquecedor para todos quando as comidas do morro descem para o asfalto. Ao longo de sua trajetória, Danusa observa que a exclusão social faz os cozinheiros periféricos considerarem a venda de alimentos independentes muito complexa e distante.

“O racismo estrutural reforça esse lugar de apenas servir. E, muito além de carregar a bandeja até a mesa, as pessoas sonham em estar por trás dos pratos e das grandes decisões de uma cozinha”, conta.

Criadora do Circuito Gastronômico Favelas, Danusa Carvalho anuncia novidade: a Casa da Gastronomia Social

Criadora do Circuito Gastronômico Favelas, Danusa Carvalho anuncia novidade: a Casa da Gastronomia Social

Túlio Santos/EM/D.A Press
 

Para 2025, Danusa prepara um projeto especial na área da gastronomia periférica, já aprovado na lei de incentivo à cultura do estado de Minas Gerais: a Casa da Gastronomia Social. Atualmente, está em busca de patrocínio e um local adequado para implantar o centro onde 30 cozinheiros do circuito tenham seu próprio espaço.

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A Casa da Gastronomia Social será dedicada à pesquisa, aprendizado e criação na arte culinária. “Uma cozinha comunitária autossustentável, onde eles podem gerar renda, organizar suas atividades e ofertas em um mesmo espaço empreendedor. Uma casa dividida por seções, onde eles aprendem sobre gestão de negócio também.”

*Estagiária sob supervisão da subeditora Celina Aquino

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