Veredas globais: Camões, Cervantes e Rosa na política do espírito
A política contemporânea reproduz as polaridades que estes três autores dramatizaram
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Siga noLeônidas Oliveira*
Dizer Guimarães Rosa no Brasil de 2025 é acender um fósforo dentro de um datacenter: o clarão dura pouco, mas lembra que, na era dos algoritmos, a palavra ainda decide quem somos. Ao recolocar Rosa no centro da Bienal Mineira do Livro, que acaba neste sábado (10/5), Minas reabre diálogo com uma linhagem que atravessa séculos – Camões e Cervantes – para perguntar que imaginação pode refundar o pacto democrático quando o debate público se esfarela em likes.
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Camões viu o Império nascer e ranger. “Os lusíadas” transforma caravelas em metáfora da condição humana: navegar é preciso porque o mundo é inconstante. Cervantes escreveu em ruínas semelhantes: “Dom Quixote” descobre que os cavalos de batalha viraram moinhos que giram com o vento do capital. Rosa, três séculos depois, faz o sertão ressoar como zona de contato entre mito e motoniveladora. Três tempos, a mesma fissura: quando o real se torna inabitável, o escritor ergue uma língua que o reinscreve no território sensível, devolvendo corpo ao que parecia pó de arquivo digital.
Essa permanência nasce da imanência. Camões planta o épico no sal do mar português; Cervantes finca o romance na poeira de La Mancha; Rosa garimpa léxico novo no cascalho das veredas. Não há exotismo: o local é laboratório de universalidade. A crítica de world-literature, de David Damrosch a Pascale Casanova, reconhece na travessia do texto entre línguas a prova da sua potência. Por isso Rosa hoje cabe nas mesmas estantes que Faulkner ou Rulfo: quem decifra “nonada” encontra a chave do humano, esteja em estepes asiáticas, arranha-céus de vidro em Xangai ou vielas de Medellín.
Mas por que convocá-los agora? Porque a política contemporânea reproduz as polaridades que eles dramatizaram. Camões põe lado a lado conquista e naufrágio; Cervantes, utopia e desengano; Rosa, fé e diabo.
Essas tensões recusam soluções binárias – a coragem está em habitar o entre. Num Brasil rasgado por bolhas de indignação instantânea, reler esses autores é um exercício de paciência democrática: ensinam que a verdade se adensa nos interstícios e que toda travessia é plural.
A metáfora, nesse processo, é ferramenta de sobrevivência. António Lobo Antunes lembra que “a literatura é mentira que diz a verdade”; Rosa advertia: “viver é muito perigoso”. A mentira literária, ao contrário da fake news, não oculta a ambiguidade: expõe-na para que o leitor escolha melhor. Se a inteligência artificial oferece atalhos de decisão, Camões, Cervantes e Rosa oferecem demora. E demora é pré-requisito de responsabilidade. Automatizar o juízo sem burilar o sentido repete o erro de Dom Quixote: trocar imaginação crítica por um template de honra resulta em cômica desgraça – lição preciosa para quem terceiriza dilemas morais a algoritmos que apenas replicam vieses.
Há, ainda, um programa de estado implícito nessa leitura. Antonio Candido via “Grande sertão” como “infraestrutura moral” da vida brasileira. Investir em literatura é construir densidade cidadã, não ornamento. Ao batizar espaços da Bienal de Arena Rosiana ou Espaço Diadorim, Minas e suas instituições culturais, sinaliza-se que política cultural não é vitrine, mas profundidade pública.
O sertão, diz Rosa, “é dentro da gente”; o estado, portanto, precisa cuidar desse interior invisível com a dedicação que consagra ao concreto das estradas que transportam corpos, bens e esperança.
No plano do eu, os três autores desmontam a fantasia da identidade monolítica. Vasco da Gama só se torna herói ao narrar-se; Riobaldo só se entende conversando com o ouvinte anônimo; Quixote existe no espelho de Sancho. É a lição maior para as redes: a subjetividade é relacional.
Se o feed é terreno de disputa, precisamos depurar a escuta. Camões obriga a respirar versos longos; Cervantes, a rir de nós mesmos; Rosa, a reinventar o idioma.
Cada gesto suspende o reflexo imediato e abre espaço para a elasticidade do pensamento, condição de dialogar com diferenças sem reduzi-las a caricatura.
Camões advertia que “o fraco rei faz fraca a forte gente”. Cervantes definia a liberdade como “o bem mais caro que os céus deram aos homens”. Rosa sussurra que “o real se dispõe no meio da travessia”. Tomadas em conjunto, as frases compõem um manual de navegação para democracias inquietas: é preciso liderança ética, liberdade crítica e coragem de viver na incerteza. Entre marés, moinhos e veredas, o horizonte permanece comum: atravessar o perigo com imaginação e linguagem.
Minas, que exporta minério de ferro, exporta também minério verbal. Ao celebrar Rosa em 2025, reafirma-se como território de travessia entre o local e o global. E oferece ao Brasil, cansado de slogans fáceis, a lição mais dura: não há chegada definitiva; há apenas o meio do caminho – esse lugar onde a palavra continua riscando faíscas contra a escuridão.
BIENAL MINEIRA DO LIVRO 2025
Até este sábado (10/5), no Centerminas Expo (Av. Pastor Anselmo Silvestre, 1.495, 4º andar, União). Atividades das 10h às 14h; das 14h às 18h; e das 17h às 22h. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), à venda no site da Bienal Mineira do Livro.
* Leônidas Oliveira é secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais e doutor em teoria da arte e arquitetura